terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Crônica - O Desembarcador

O DESEMBARCADOR

       Lajeado, como outras localidades às margens do rio Taquari, era uma cidade eminentemente fluvial. Tudo girava em torno do cais do porto. Transporte de pessoas e cargas entre Muçum e uma dezena de portos intermediários até Triunfo e depois Porto Alegre.
            Empresas de comércio de cereais por atacado, reuniam e beneficiavam os produtos agrícolas vindos do interior do município, a maioria em lombo de mulas que formavam filas de até vinte animais encordoados, precedidos por um menino montado no primeiro, que tinha um cincerro pendurado no pescoço com badalar monótono sincronizado com o passo do animal.
        Indústrias também tinham seu estabelecimento à beira do rio, com depósitos, machambombas e trapiches de atracamento de barcos de carga particulares.
            Toda a população tinha conhecimento dos dias e horários de partida e chegada de barcos, uns diurnos e outros noturnos. Todos sabiam distinguir um vapor duma lancha-motor, gasolina ou chata.
       A gíria profissional praticada no porto era conhecida de todos, entre elas o embarcador, responsável pelo colocação das mercadorias à bordo, de maneira que a carga ficasse equilibrada favorecendo as manobras da viagem e atracamento. A descarga era praticada na forma inversa do carregamento e não necessitava de comando. O que se carregara por último, era descarregado por primeiro.
            Um belo dia, no Ginásio São José, no recreio, um menino informava aos demais que no dia de domingo, na semana da pátria, entre o dia 1º e o 7 setembro de 1939 ou 1940, um DESEMBARCADOR, faria uma palestra para os alunos de todas as escolas, em frente à Prefeitura, sobre o tema da Independência do Brasil.
            Os desfiles patrióticos dos alunos ocorriam no dia 5, dia da Mocidade Brasileira e no dia 7, dia da Independência, com grande garbo, fardados e com bandas marciais. Autoridades presentes, assim como grande número de espectadores.
            Era comum, alguns descendentes de germânicos, trocarem o “g” pela fonética do “c”, o “b” pelo “p”, o “d” pelo “t” e outros mais. Todos entenderam que seria um graúdo da administração do cais do porto de Porto Alegre. Que venha o homem.
            Na hora do almoço contei a notícia ao meu pai. Menino, não é  desembarcador e sim um desembargador, juiz de direito de nível superior e se chama Dr. Solon Macedônia Soares, de Porto Alegre, de alto conceito no meio jurídico.
            Viria para Lajeado de “noturno” e chegaria de manhã bem cedo à cidade. O evento foi marcado para as dez horas da manhã de domingo. Todos em frente da Prefeitura.
            Como sempre, antes do horário previsto, os alunos, em pé, já estavam em forma no lugar a eles designado, separando cada unidade educacional.  
            Um pequeno coreto, uma mesa e uma cadeira estavam reservados para o convidado.
            Era um dia de primavera antecipada com sol radiante e inclemente.
           Já passava das 11:00 e alguém trouxe à mesa uma jarra com água e um copo.  Tímidas palmas irônicas saudaram o funcionário da Prefeitura. Agora vai.
            Telefonema de Estrela avisava que o barco havia tido pane na viagem e que o Dr. Solon estava tomando um auto de praça para ir à Lajeado.
            Chegado às 11:30, Dr. Solon tirou de uma pasta um gordo calhamaço de papel. Ouviu-se um gemido surdo na plateia e começou a sua palestra. O evento seria demorado.
            Iniciou com as naus de Cabral partindo de Lisboa para o descobrimento do Brasil. Quando relatou a chegada ao Brasil da família real portuguesa, fugindo do flagelo napoleônico, uma das meninas presentes desmaiou. Descrevendo a partida da nobreza de volta para Portugal, uma segunda menina desmaiou e o palestrante compreendeu a situação inusitada existente, fechou a obra que relatava, com um pequeno preparo improvisado encerrou o tema e num gesto imitativo sacou uma espada inexistente e bradou Independência ou Morte. Palmas e debandada apressada geral. Já passava muito do meio dia.
       Causador e vítima involuntária, Dr. Solon deixou o fato na minha memória, a recordação saliente do seu nome e a presença em Lajeado do renomado desembargador que, por este pequeno incidente, serviu para ser lembrado com respeito e consideração.

  Crônica publicada integralmente pelo jornal A HORA, de Lajeado, em 10-7-2014

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