segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Crônica - A nenê

                                              A NENÊ

  Acordei da sesta e fui ler. A Lucy permaneceu na cama. Um pouco mais tarde, com os olhos marejados perguntou-me – Adivinha do que eu estava me recordando. – Te lembras, ainda em Bom Retiro do Sul, quando estávamos num baile do CTG, uma mulher apareceu com um filhinho no colo ……. – Lembro, e passamos a reconstituir o episódio ocorrido em 1960.
No recém construído salão de festas do CTG “Querência da Amizade”, participávamos de um baile tradicionalista. Todo o mundo vestido a caráter e alegria generalizada. Participávamos ativamente.
Lá pelas tantas, vimos um movimento incomum na porta de entrada e fomos ver o que estava acontecendo. No lado de fora, uma mulher jovem, roupas modestas, com um filhinho no colo e seu marido ao lado, em pânico e chorando convulsivamente. Nos contou que seu nenê estava muito doente e se digira ao hospital da vila. Fora informada pela plantonista que o médico estava viajando e, vendo o bebê, aconselhou que fossem até o hospital de Estrela procurar um médico. Precisava de ajuda. Comovido, olhei para a Lucy e li nos olhos dela a palavra “vamos”. Nos oferecemos para levá-los. Estavam numa charrete e se transladaram para o nosso carro. Partimos. Em seguida, num gesto de pedido de apoio, passou a nenê para o colo da Lucy. Precisava de uma fada que, num milagre, lhe salvasse a vida da filha.
Meia hora depois, chegamos ao hospital de Estrela. A recepcionista encaminhou a Lucy e o bebê para uma sala, fez uma análise rápida e disse: O médico não está, mas vou chamá-lo. Em dez ou quinze minutos estará aqui.
Após o telefonema, já surgiu com uma seringa e deu uma injeção na criança ainda no colo da Lucy, certamente por determinação do médico. O caso era urgente.
Após alguns minutos, a Lucy sentiu um estremecimento da nenê e um amolecimento no corpo. Disse que achava que a nenê tinha falecido, logo confirmado pela enfermeira. Em seguida chegou o médico que reconfirmou o óbito.
Explicamos ao médico nossa participação na presença daquele casal e seu filho.
- Doutor, quanto lhe devemos?
- Não devem nada, vocês fizeram a sua parte e eu estou fazendo a minha.
- Obrigado doutor.
Retornamos, com um choro e desespero ainda maior e a criança com cerca de seis meses ainda no colo da Lucy, que procurava, instintivamente, passar-lhe o calor de seu corpo.
Chegados a Bom Retiro, o baile já havia terminado e a Lucy, desembarcando entregou o filho morto à sua mãe inconsolável. Que cena amarga.
Nessa altura, já estávamos todos banhados em lágrimas.
Embarcaram na charrete, deram um breve aceno e partiram. Moravam entre a vila e o atual trevo de acesso a Bom Retiro na BR 386. Não perguntamos o nome deles e nem eles perguntaram o nosso.
Partiram e nos pareceu que estavam no máximo do desamparo e carentes de conforto. Sozinhos na noite escura e com sua filha morta nos braços.
Eu e a Lucy estávamos com o coração em frangalhos e o corpo cansado. Fomos para casa dormir, pois o dia logo iria amanhecer.
Cerca de um mês depois, a Lucy estava sentada nos degraus da porta de nossa casa, dois quilômetros além da vila, quando notou que pela estrada, vinha uma mulher a pé e com uma cestinha na mão. Ela aproximou-se, o portão estava aberto e ela perguntou – A senhora é a dona Kiko?
 – Sou eu mesmo (A Lucy era conhecida apenas por seu apelido Kiko)
         - Eu sou a mãe daquele nenê que vocês levaram para o hospital de Estrela. Eu estava procurando saber o seu nome e onde morava. Vim me apresentar e agradecer. Trouxe também um pequeno presente, uma cestinha com ovos de galinha.
  - Não precisava, mas de qualquer forma muito obrigado.
Abraçadas, ainda choraram mais um pouco. A mulher informou o seu nome e o da filhinha falecida, agora já esquecidos e despediu-se. Nunca mais tivemos contato com aquela mulher que, com dignidade, tentou e conseguiu localizar quem a tinha ajudado.
Nosso primogênito tinha nascido em 1955 e esperávamos mais filhos, que demoravam a aparecer. Talvez apenas por coincidência, logo após o socorro ao casal, a Lucy ficou grávida novamente e nossa filha Luzia nasceu em agosto de 1961.
O que teria acontecido para que o episódio retornasse novamente ao cérebro da Lucy 56 anos depois?

                                         Leandro Lampert
                                              Historiador


Janeiro de 2016

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