terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Crônica - Sprito de mico

S P R I T O   D E   M I C O

               Lá pelo ano de 2002, encontrei, não lembro onde, cinco páginas avulsas de um livro de nome “Cidades Vizinhas”. O capítulo estava incompleto e faltava o final da sátira. Não consegui saber o nome do autor.  O tema me interessou pois eu fora testemunha dessas ocorrências ainda menino. Fiz xerox das páginas e coloquei uma folha de papel dobrado servindo de capa com o título do conteúdo.
           Guardei o impresso tão bem guardado que nunca mais o encontrei. Em fins de abril de 2015, numa pasta de couro, junto com outros trabalhos históricos meus que não seriam divulgados, encontrei o dito xerox. Ufa.
           Como o tema era uma briga generalizada, em Estrela, depois de uma partida de futebol vencida pelo Estrela Futebol Clube contra o Clube Esportivo Lajeadense, por 2 x 1, passei a procurar o nome do autor. Pedi socorro a vários amigos e J. A. Schierholt descobriu e me indicou o nome, mas desconhecia o teor do livro. Era Olides Canton, de Arvorezinha, autor de várias obras editadas. Ele deve ter interrogado muitas pessoas, pois fez um relato saboroso e debochado da peleia ocorrida em 1940. Nem tudo confere com o que eu vi, mas decorridos mais de 60 anos, talvez, a memória dos entrevistados se confundira um pouco.
           Entre meus amigos de Lajeado ou Estrela, nenhum sabia da existência desse livro.
           Esclareço que o apelido de Spritu ou Sprito de Mico, apodo do personagem e sub título, foi originado por discussão com um cliente à respeito de um serviço de mecânica de automóvel. O mecânico acusou o outro de estar com espírito de mico com ele, tentando lográ-lo.
           A seguir, o capítulo xeroqueado das páginas 55 a 59.

                                               ESTRELA  X  LAJEADO

“Spritu de Mico”

           Lá pelos idos de 1940, em plena ditadura do “bom velhinho”, o então chefe de polícia do Rio Grande do Sul, Cel. Dagoberto, baixou uma portaria e PROIBIU jogos de futebol entre o ESTRELA F.C. e SPORTIVO LAJEADENSE! Os antecedentes indicavam memoráveis peleias, que embora não alcançassem as famosas degolas de 23, estremeceram o Alto-Taquari. O rio cristalino e limpo daquele tempo era o divisor do ódio entre estrelenses e lajeadenses, rivais além do futebol. De repente, o bom senso voltou, foi instituída a Taça da Paz, para selar o reatamento das relações entre as margens esquerda e direita do Taquari. A Agência Chevrolet, capitaneada pelo velho Spohr, caprichou no troféu.
       Trombetas e fanfarras saudaram a boa nova. A pomba da paz voltara a voar. Os bodoques e estilingues foram aposentados e os guerreiros das duas bandas deixaram enferrujar suas gloriosas adagas enfiadas em bainhas de couro de mula.
          A “Baixada” estrelense viveu um dia de esplendor no dia do jogo. Gente até debaixo da cama da velha Moda, que fazia uns pastéis de carreira e “nariz entupido”, recheado com creme de ovos, amarelinho, amarelinho. Não era, porém, parecia.
 Nosso glorioso Estrela tinha o Negrão no golo e logo na primeira investida do ataque do Lajeadense, o joelho de nosso arqueiro atingiu abaixo do umbigo do ponteiro Cé. A voz de comando veio do velho Caboclo, lá das bandas de Cruzeiro do Sul, território “inimigo” dos estrelenses. O pai do Ênio, um dos maiores craques de todos os tempos do Alto Taquari, deu o berro e as tropas adversárias passaram por baixo dos parapeitos (não existia alambrado) e tentou fazer uma manobra de “pinça”. O entrevero foi dos mais lindos, começando com uma bocha nos beiços do Cunha, um gurizote debochado barbaridade. A cerca de tábuas não resistiu ao entrechoque e ruiu como o muro de Berlim, deixando a alemoada e os pelos duro numa guerrilha de ruas, todas elas repletas de cascalhos das barrancas do Taquari.
       Enquanto o João Porto mordia a mamica do Klein, o Mário Lampert, que chegou a ser deputados estadual levou um ½ tijolo na cabeça, protegida por um daqueles capacetes que os ingleses usavam quando saquearam o continente africano.                  Foi farelo para todos os lados e o sangue brotou na cabeça da grande figura que foi o Mário Lampert. Em um dado momento, as fileiras estrelenses estavam caindo feito pinos de bolão. Era o Spritu de Mico. Um negrão tipo os armários antigos de quatro portas, que vinha fazendo grande estrago. Tinha gente até cuspindo os dentes, perdendo a “chapa” e sangrando pelas ventas. Então os soldados da Brigada Militar, ainda herdeiros belicosos e valentes de seus antepassados guerreiros entraram em ação. Destaques para o Francelino e o Aires. Desembainharam suas espadas “rabo de galo” (parecidas com uma cimitarra) e afofaram as paletas do Spritu. Já com o matambre prá lá de espichado, o negrão procurou refúgio debaixo do Ford 23, acho que do seu Lulú Ruschel. Cercado e apertado como rato em guampa, reuniu as últimas forças e se mandou ladeira abaixo na Rua da Praia em direção à barca do Adelino Englert, que fazia a travessia do rio. Começou para os lajeadenses a longa retirada aquática, tipo a de Dunquerque dos ingleses na 2ª Guerra Mundial. Os estrelenses, com o farto material de cascalhos, bombardeou os lajeadenses encurralados e desprotegidos dentro da barcaça. Os “hospitais de campanha”, comandados pelo Dr. Breier, ficaram lotados com gente de côco quebrado pela mira certeira dos estrelenses. A paz, que nem fora selada, já se transformava em guerra declarada.
            Anos mais tarde, com as feridas já lambidas e saradas, após muitas conferências de cúpula, a normalidade voltou a imperar. Surgiram os grandes times. O do Estrela (5x0) em cima do Lajeadense, com Negrão; Madeira e Nelsinho; Duca, Gregório e Markus; Lino, Ovídio, Acosta, Ado e Élico. Do lado direito surgiram craques de primeira grandeza, como Ênio Azevedo, que tinha um chute mais forte do que “peido de burro atolado”; os zagueiros Baldo e Klein, os arqueiros Schimitão, mais tarde Assis; Darcy Schmidt, Brauner (que jogou ao lado de Pelé no Santos), os irmãos Crespo, Pintado (jogaram no Grêmio POA), e o grande Pequeninho, Costinha, Ilmo Fleck, Boris, Moacir (jogou no Cruzeiros POA), Paulo Kieling e Paulinho Heineck.
            Quase ao nascer dos anos 50, brotou na Baixada e se consagrou no então estádio Walter Jobim (hoje municipal), o campeão do Alto Taquari, defendido por Amaury (atuou pelo São Paulo, na capital bandeirante); Lamão e Nelsinho; Ataíde, Tito e Laurinho; Talo (adivinhem quem é este veloz e aguerrido pioneiro?)
            Yéyé, Prego (que foi craque do Grêmio POA), Mirinho e Polaco ou Loy (que jogou com o Geada no Floriano NH), Renato Porto, Vicente Meira, Wilson Onzi o negro Chipi, Geraldo, o zaguero Carrion, o goleiro Stefani, o Bepi e tantos outros.
            Entretanto, em todos os tempos, os dois símbolos do clássico, às vezes sangrentos entre Estrela x Lajeado, foram o zagueiro estrelense Nelsinho, o famoso pé de ouro, e um dos maiores atacantes de todos os tempos do futebol gaúcho, o grande comandante Ênio Martins de Azevedo.
            Evocar este passado, sem lembrar as figuras magistrais de Aloysio Schwertner, Achiles de Vianna Morais (o eterno Quilote); o velho Viola, jogador da seleção uruguaia dos anos 20/30, Bertold Gaussmann, Edmundo Hergoemöler, Heitor Kist, Calvino Reis, o tesoureiro Kreutz, chefe da copa Edgar Müller (o schnaps e a cerveja davam mais renda que as bilheterias), Wilimar Schneider, Nilo Luchesi, Armando Gemmer, Salvo Abech, Fritz Seibot, pelo lado estrelense e de Lajeado, o Carlos Trierweiler, o Carlos Marques, o Roque Lopes e tantos outros abnegados e heroicos seria uma lacuna. A eles a nossa saudade e as nossas homenagens. No apresilhar destas linhas, destaco como craque que foi, dirigente que ia aos últimos sacrifícios, o grande Eugênio Noll, o Óigen. Com ele e já com quase mais ninguém reparto, quando nossos encontros, as evocações e um passado romântico, doce e que nos proporcionou, talvez, os mais significativos momentos de nossas vidas.
            Ainda hay peleas nas barrancas? Não. Os peleadores morreram agarrando a alça do caixão do Estrela F. C. Sem inimigo, o Sportivo Lajeadense, ainda ativo e glorioso, perdeu a joia mais rara de sua já longa existência: o clássico das barrancas. Era a nossa Copa do Mundo. Podia se ganhar do Grêmio, do Inter, do Juventude, do Floriano, do Esportivo de Bento, do Santa Cruz, do …….. e aqui termina o Xerox, na página 59 do livro Cidades Vizinhas – Amor e Ódio, do escritor de Arvorezinha Olides Canton. De forma nenhuma consegui encontrar o restante do capítulo. Um dia irá aparecer.
            Em 1940, eu tinha onze anos e fui testemunha ocular de alguns episódios acima referidos e de outros tomei conhecimento pelo depoimento do meu pai Mário Lampert, também presente no jogo e espectador da briga.
            Me permito algumas retificações no trabalho do Olides, seguindo a sequência de sua sátira:
            Durante a partida daquele domingo não houve briga, nem de jogadores nem de torcida, apesar das trombadas e caneladas recíprocas entre os atletas, saudadas com um “bah” pelas torcidas. Muito menos invasão de campo por torcedores e derrubada da cerca, fatos ocorridos anteriormente em outros jogos.
            Entre as figuras proeminentes do Clube Esportivo Lajeadense, é citado Carlos Trierweiler. O Carlos tinha a minha idade e o dirigente lajeadense era seu pai Octávio Trierweiler
            O campo de futebol do Estrela F.C. era na barranca do rio, na beira do local denominado Buraco dos Cachorros, propriedade do meu avô materno Mathias Ruschel Sobrº, que o alugava ao Clube estrelense.
            A copa era explorada pelo clube, mas minhas tias, numa lateral, mantinham uma pequena banca, onde vendiam fatias de bolo aos espectadores.
            A torcida estrelense ficava no lado da barranca, com o sol nas costas e os visitantes de frente para o rio e para o sol.
            Assisti o jogo do segundo time (1 a 0) para o lajeadense e o jogo do primeiro time (2x1) para o Estrela, já mencionado.
            Terminada partida, a retirada coletiva dos jogadores misturados ao público, pela rua perpendicular e contrária ao rio.
            Eu, que assistira o jogo com outros meninos, decidi ir até a banca da  tia Lena no lado oposto do campo e filar uma lasca de bolo: Leandro. Queres uma fatia de bolo? - Quero, e me dirigi ao portão de saída. Fui o último a sair.
            Poucos metros à minha frente, um grupo de seis adultos, bem vestidos, caminhava em linha.
            De repente, ouço passos apressados atrás de mim e alguém me ultrapassou, vestido com calças compridas e botina de futebol nos pés. Tinha o cabelo molhado e uma trouxa de roupa enrolada dentro de uma toalha debaixo do braço. Não o identifiquei.
            Ao ultrapassar os seis, dois deles correram e um deles acertou um chute no traseiro do cidadão, que parou e voltou-se para ver quem era o agressor.  Logo foi cercado pelos outros e deram chutes a vontade no coitado. Eu, surpreso, dava gargalhadas ao ver a cena inusitada. Não me dei conta que o ato era uma covardia desnecessária e sem motivos. Hoje, creio que ele deveria ser um jogador do 2º time do Lajeadense. Mesmo cercada, a vitima conseguiu uma brecha e disparou rua afora, sumindo-se dobrando a esquina para a rua da praia em direção à barca. Acho que vi sair faíscas da botina dele nas pedras do calçamento.
            Logo que dobrei a mesma esquina, já vi meia quadra adiante o rolo. As torcidas, lajeadense no passeio esquerdo (iriam dobrar depois para o rio) e a estrelense no passeio direito. Iriam continuar pela rua da Praia ou subiriam o zigue-zague até a praça da matriz. No meio da rua, com calçamento de paralelepípedos estavam os guerreiros e muitos populares. Pugilatos, tapas, empurrões, desaforos, muitos pontapés nos traseiros e nas canelas, o diabo. O Sprito já debaixo de um fordeco, todo sovado de pranchaços de espada. Ele era um pacato mecânico em uma oficina de automóveis, grande e de porte atlético 1,90 m x 100 kg. Me assopraram que seu nome seria Benedito dos Santos. O Ubaldo Plein aos socos com um adversário, o Arno Klein também, só que nas costas dele havia mais um que lhe aplicava mordidas na paleta e depois encarapitou-se em seu dorso. Vi a esposa do seu Caboclo, vociferando desaforos e ameaçando com uma sombrinha já com o cabo quebrado e as varetas apontando para o chão. Muita gritaria de mulheres. Dá nele. Separa. Ataca. Cuidado. Aparta. A briga era volátil. Dá um soco ou um pontapé e corre, pois já vem mais dois atrás dele com intenções assassinas. Todos caminhando devagar e sem parar.
            Meu pai assistiu a tudo na calçada e não se envolveu em brigas. Era um apaziguador. Usava o chapéu do explorador inglês que Olides referiu, mas o meio tijolo e o sangramento foram fantasiosos.
            Quando chegaram à rua da descida para a travessia do rio, as torcidas se separaram e a peleia corpo a corpo terminou. Os lajeadenses, em bloco, se aproximavam do local de embarque, a barca já vinha atracando e um grupo de cerca de 20 estrelenses, com um claro de 30 metros atrás, esperava pelo embarque. Eu, atrás deles com alguma distância. Eu fora de carona com um tio e voltaria para Lajeado um pouco mais tarde.
            A barca ficou lotada de pedestres e desatracou, iniciando a travessia. Nesse momento, dois ou três valentes correram até a prancha de embarque, juntaram alguns cascalhos grandes e os atiraram nos passageiros da barca. Tchum Tchum, caíram na água. Recarregaram com munição de menor tamanho e novamente tchum. A barca já estava muito longe. Os retirantes, apavorados no início e à medida que se afastaram dos projéteis, brindaram os artilheiros com uma estrondosa vaia. Diziam que fora ouvida até no morro de Cruzeiro do Sul. Duvido.
             Entre mortos e feridos salvaram-se incólumes todos os lajeadenses. Voltei para a casa do meu avô, a primeira bem em cima da barranca, aguardando a minha carona junto com minha irmã Leonor.
            Comentários correntes nas duas cidades: Demos uma surra nos lajeadenses.  Entortamos os estrelenses a tapa. Todos vitoriosos.
            A peleia teve grande repercussão e chegou aos ouvidos do chefe de Polícia em Porto Alegre, que mandou dois delegados às cidades para verificar o que acontecera. Essa medida não agradou aos barranqueiros. A alemoada já estava sofrendo as acusações e perseguições por ser taxada de “quinta-colunas” simpáticos ao nazismo e isso acabaria azedando mais a situação. Os delegados iniciaram por Estrela ouvindo as testemunhas. Todas se queixaram que apanharam dos malvados lajeadenses, que nem respeitaram uma idosa. Gente de maus bofes. Chegados a Lajeado, a mesma lamúria – Os estrelenses agrediam inocentes espectadores e mostravam improváveis vestígios de agressões. Meu pai havia coligido depoimentos nesse sentido e foi procurado pelos dois delegados.
            Conhecidos os depoimentos dos lajeadenses, os delegados logo manifestaram sua opinião. Apanhar não é crime. E como todos apanharam sem bater em ninguém, sugerimos dar o acontecido por encerrado. Que acha seu Mário? – Acho muito bom – Agora iremos à Estrela e conferir. Também acharam muito bom encerrar a bagunça. Ficou por muito tempo registrada na memória com mil versões, depois quase esquecida e agora pertence à História
            E assim, meus amigos, encerro o relato de acontecimentos ocorridos 75 anos atrás ainda vivos na minha memória.
            Meninos! Eu vi.
TRANSCRIÇÕES DA FOLHA DA TARDE        
             
de 19 e 20 de agosto de 1947. Curioso o linguajar da crônica esportiva da época:

NUVENS NEGRAS NO ALTO TAQUARÍ – Perturbado o ambiente esportivo naquela região do Estado.
Não é só no foot-ball, mas em todos os setores, que a rivalidade entre as duas progressistas cidades do Alto Taquari, Lageado e Estrela, se espraia, trazendo no seu bojo, em parte, largos benefícios pela emulação que domina seus habitantes, cada qual procurando colocar o “seu chão” numa posição de maior destaque do aquela ocupada pelo “lugarejo” do outro lada do rio….. Porém, nem tudo é azul nessa rivalidade entre Lageado e Estrela. De vez em quando surgem casos que entristecem àqueles que acompanham com interesse a evolução e o progresso das duas cidades. São casos que, infelizmente, acontecem justamente no esporte, que deveria ser um veículo seguro para a aproximação, já não diremos de povos estranhos, mas dos filhos de uma mesma Pátria, separadas apenas por um curso dágua – o correntoso Taquari.

DOCUMENTOS SELADOS E REGISTRADOS NÃO ADIANTARAM.

Vamos passar a contar o fato, conforme nos foi relatado pelo esportista Orlando Fischer, representante do C. E. Lageadense junto à FRGF: no dia 7 de maio do ano corrente, parecia que a paz tinha voltado ao foot-ball de Alto Taquari porquê os presidentes dos clubes de Lageado e Estrela, respectivamente Hugo Ruthner e Heitor Ivo Kirst, resolveram chegar a um acordo e assinar um documento comprometendo seus clubes em duas partidas de confraternização – uma em cada cidade a realizarem-se nos dias 13 de junho em Estrela e no dia 20 do mesmo mês. em Lageado. Feito isso, o documento recebeu todos os “sacramentos”: firmas reconhecidas, testemunhas, registro em cartório, etc, etc.
Mas não adiantou …… 

A PRIMEIRA PARTIDA NÃO TERMINOU.

Chegou o dia do primeiro encontro, e Estrela recebeu a visita dos lageadenses, em grande número. A renda cresceu nas bilheterias até atingir Cr$ 5.752,00, quantia bastante apreciável no foot-ball daquela zona. E o jogo começou. Começou, mas não terminou. Quando ia o prélio, aliás cheio de “coizinhas”, na altura do 23º minuto do segundo tempo, o goleiro estrelense “Negrão” aplicou, violento ponta-pé no ponteiro lageadense Domingos Cé, o qual ficou estirado no gramado. Interrompido o match, foi o jovem player visitante atendido pelos médicos, que determinaram sua imediata hospitalização, e no posterior auto de corpo delicto, feito pela polícia, foi constatada grava contusão no fígado e no rim direito, nematuria, etc. Em face do acontecido e da invasão de campo, etc, os lageadenses, sentindo o ambiente inseguro, resolveram retirar-se do gramado já que tudo aconselhava a suspensão da partida – então empatada em dois tentos – devido à fraca atuação do árbitro e à exaltação dos ânimos.

AGORA A RENDA ………

Terminado o encontro, na maneira que relatamos acima, os dirigentes do C. E. Lageadense foram receber a parte que lhes tocava na renda do match – 50% e mais Cr$ 1.500,00 para o transporte – de acordo com o estipulado no contrato, mas, com surpresa geral, o presidente do clube de Estrela, negou-se a fazer o respectivo pagamento, alegando que o encontro não havia terminado, embora não fizesse a devolução dos ingressos ao público.
Posteriormente, os dirigentes do grêmio lageadense tentaram de conseguir um acordo, propondo a disputa dos minutos restantes e, por fim, chegado o momento, solicitando à FRGF a respectiva licença para a realização do segundo jogo, a fim de dar cumprimento ao ajustado. Porém, os dirigentes do Estrela negaram-se a tudo. Os lageadenses enviaram ofícios para autenticar seus propósitos, e solicitaram a firma do presidente do clube contrário, para poderem provar a qualquer tempo a sua boa vontade em solucionar a questão. Todavia, o primeiro mandatário do grêmio de Estrela declarou que não assinaria nada …..

VEM O CASO PARA A FRGF

Foi então, que o esportista Hugo Ruthner, presidente do Lageadense, resolveu trazer o caso para a FRGF. O Dr. Arando Borsatto, vice presidente em exercício da entidade máxima, tentou uma reconciliação e, por duas vezes convocou os dirigentes dos dois clubes de Alto Taquari para estudarem um acordo. Em vão, só compareceram às reuniões da FRGF reuniões determinadas pelo primeiro mandatário, os representantes do clube de Lageado.
Em vista disso, a Federação resolveu tratar do caso em caráter oficial e, na reunião do seu Conselho Diretor ontem efetuada, determinou que o E. F. Clube o recolhimento imediato dos Cr$ 5.752,00 aos cofres a FRGF, onde ficarão até que a questão seja solucionada. Foi dado ao clube faltoso um determinado prazo e, findo este, se não for atendida a determinação do Conselho Diretor, o Estrela F. C. será denunciado ao Tribunal de Justiça Esportiva, já agora, não só por ter deixado de cumprir o acordo com o Lageadense, por desobediência a uma resolução da Diretoria da Federação.
E então, portanto, em maus lençóis os estrelenses ……

IRÃO ATÉ A JUSTIÇA CIVIL

Por último disse-nos o Sr. Orlando Fischer, no caso de entrar a questão no Tribunal de Justiça Esportiva, é pensamento do meu clube convidar, para defender seus pontos de vista, o conhecido causídico Paulino de Vargas Vares, presidente do Internacional. Também, se o “caso” não ficar somente nisso: iremos à Justiça Civil, para processar os agressores do jogador Domingos Cé e exigir o pagamento de indenizações que julgarmos devidas, não só pela perda da renda do segundo jogo, como, também pelos gastos feitos com a hospitalização por mais de 15 dias do player agredido, que até hoje não retornou a seu estado físico normal.

A TEMPESTADE ESPORTIVA NO ALTO TAQUARÍ

A verdade, para o Estrela, não combina com a verdade Lageadense – Fala à nossa reportagem o ex-secretário do Estrela, contradizendo declarações do representante do clube de Lageado.
O último vencedor do Prêmio Nobel, o alemão Herrmann Hesse, disse certa vez que “o contrário de todas as verdades deve ser também verdade, se comprova diariamente nos “casos” footbalísticos. Em nossa edição de ontem, por exemplo, divulgamos as declarações do Sr. Orlando Fischer, representante do C. E. Lageadense junto à F.R.G.F., através dos quais esse esportista relatava os acontecimentos desenrolados, antes, durante e depois do choque footbalístico entre o clube acima citado e o Estrela, da cidade do mesmo nome, o qual, como se sabe, não primou pela regularidade.
           Acontece, porém, que o contrário de muita coisa que nos disse o Sr Orlando Fischer, é também verdade, ao menos no ponto de vista do Estrela, segundo nos veio dizer o esportista Sr. Aury de Azeredo, ex secretário do Estrela e autorizado pela direção deste clube para contestar muitos dos pontos de vista do Sr. Fischer.
E eis então que a nossa reportagem se viu envolvida no meio de um fogo cruzado de pontos de vista contraditórios que foram pedir justiça a Salomão, cada um reivindicando para si a verdade verdadeira ……
Como ontem demos a palavra ao Lageado, toca hoje ao Estrela falar. Eis o que nos disse o Sr. Azeredo, empunhando um recorte da ”FOLHA DA TARDE”, onde estavam as declarações do esportista Fischer, com certos trechos prudentemente sublinhados:
- Vamos por ordem – começou o Sr. Azeredo: aqui se vê, é o que o match foi “cheio de coisinhas”. O que não é verdade. Tudo ia correndo normalmente até o momento do choque entre o guardião do Estrela e o ponteiro do Lageado. Só então é que se registraram os incidentes. O fato decorreu da seguinte maneira: após um passe longo, a bola se ofereceu igualmente pata o nosso arqueiro Negrão e para o winger visitante. E, como era natural, os dois correram em direção à bola, cada um procurando chegar primeiro. E quem primeiro chegou e imobilizou a bola em suas mãos, foi o nosso arqueiro. Como o seu adversário vinha na corrida, e para proteger a bola e o próprio corpo, o guarda-vala ergueu um joelho. Foi quando o ponteiro Domingos Cé se chocou contra o keeper. Não houve como diz o “representante” do Lageadense, agressão por parte do arqueiro, que foi quem primeiro, pegou a bola. Ao contrário, o ponteiro adversário é que, a despeito de ter perdido o lance, não se deteve senão quando se esbarrou contra o goleiro, ou porquê não pôde se deter ou porquê não quis. Este é um detalhe que pouco importa. E tanto o lance foi considerado proposital, que o árbitro não marcou falta alguma. As consequências, porém, do choque foram lamentáveis, pois o jogador visitante se machucou. A torcida de Lageadense, então invadiu o campo, não tanto com intuitos agressivos, mas para induzir os seus jogadores a se retirarem do campo.
O árbitro está sendo acusado de inepto. É curioso. O Sr. Mário Coelho, residente em Taquara, foi indicado pelo próprio Lageadense para apitar o cotejo. Tocava à esse clube indicar o juiz e, como nãou houvera ele providenciado junto à F.R.G.F. para conseguir um árbitro, apresentou, à última hora, o nome do Sr. Mário Coelho, o qual, diga-se de passagem, por várias vezes controlou partidas entre o Estrela e o Lageadense, sempre com a maior correção e imparcialidade. Em vista disso, o Estrela não teve dúvida em aceitar a sua indicação para juiz desse encontro.
Tenho para mim, porém, que a interrupção da partida, provocada pela invasão ao campo dos torcedores lageadenses, foi proposital, isto é, que havia intenção preconcebida de impedir o seu prosseguimento em face da inequívoca certeza de que o Estrela venceria o jogo, muito embora o escore estivesse empatado em dois tentos. É que os lageadenses haviam apostado grandes quantias em seus favoritos e estavam em eminência de perder a aposta, em virtude da flagrante superioridade técnica que vinham demonstrando os locais e aproveitaram-se do incidente com seu ponteiro para truncar a partida e, assim, fugir ao compromisso de pagar a aposta perdida.
Quanto à questão da renda, o que se passou foi o seguinte: desconformes com o abandono do campo, o público de Estrela exigiu do presidente do clube que não fizesse a entrega da parte que cabia ao Lageadense, chegando mesmo um grande número de associados a ameaçar de demitir-se no caso de ser entregue 50% da renda. O presidente, interpelado pelos dirigentes visitantes a respeito da parte da renda que lhes cabiam ponderou que, diante da situação que se creára, não tomaria não tomaria a decisão enquanto não consultasse a diretoria. Após o que a parte que cabia aos Lageadenses foi depositada num Banco, onde se encontra à disposição dos visitantes apenas seja resolvida a questão.
Não é verdade, também, que o lageadense tenha feito propostas para a disputa dos minutos restantes. Assim como também não exprime a verdade a alegação de que por duas vezes o presidente do Estrela tenha sido convocado para comparecer F.R.G.F. por sugestão do vice-presidente desta entidade, Sr. Arnaldo Borsatto a fim de resolver a pendência amistosamente. Apenas uma vez foi ele convidado e não compareceu porquê, de momento estava em excursão com seu clube numa cidade próxima conforme mandou oportunamente notificar.
Afirma o representante do Lageadense se que seu clube irá convidar para defender seus direitos o Dr. Paulino de Vargas Vares, presidente do Internacional, a instaurar, junto à Justiça Civil, um processo de agressão ao ponteiro Domingos Cé., afigura-se-me difícil que o Lageadense consiga provar que houve tal, pois o juiz, no lance, não marcou falta e nem podia marcar, tratando-se um choque tão comum em partidas de foot-ball. De mais a mais, como dizíamos, se houve agressão, partiu essa do ponteiro, a ponto de ser o arqueiro Negrão, para se defender da entrada violenta, ter-se protegido com o levantamento do joelho.
Fala também o Lageadense de exigir, por meios legais, indenizações pelos gastos feitos com a hospitalização do seu defensor. Que vamos dizer nós que tivemos nosso gramado simplesmente depredado pelos torcedores do Lageadense, os quais, ao se retirar, derrubaram parapeitos e arrasaram cercas? Não entregarem a parte da renda ao clube visitante enquanto também nós não formos ressarcidos desses prejuízos.
Aí está pois, segundo as palavras do Sr. Azeredo, a outra face da verdade. Que os “Salomões” da F.R.G.F.  resolvam o caso com a sua proverbial sabedoria.


SPRITO DE MICO – EPÍLOGO

            Ao escrever e distribuir a crônica sobre o Sprito de Mico tomei por base as páginas que eu possuía do livro Cidades Vizinhas, de Olides Canton.
            O que eu vi e escrevi, existe nas cinco páginas, mas nelas existem fatos que eu omiti, pois não os vi. Agora explicáveis.
             Distribuí minha crônica para cerca de quarenta habituais correspondentes e, como sempre, com mínimas referências. Se leem, não prestam muita atenção.
            Duas pequenas pistas me deixaram desconfiado e me levaram ao reestudo da crônica. Historiador tem que ser meticuloso. Alguma coisa não estaria certa:
            Fato um: Quando menino conheci o Negrão, citado como goleiro do EFC no jogo em 1940. Negrão era amigo de meus primos de Estrela, Alvinho e Fritz e seria da mesma idade deles, na época 12 ou 13 anos;
            Fato dois: Domingos Cé, a vítima do choque com o Negrão, casaria mais tarde com uma colega minha de ginásio pouco mais nova que ele. No meu entender, na época, também teria mais ou menos 13 anos e nem residiria em Lajeado.
Sérgio Mello Jaeger, outro amigo de Lajeado a quem seguidamente peço e forneço informações históricas, enviou-me xerox de um recorte de jornal  (Folha da Tarde) com duas crônicas intituladas – Nuvens Negras no Alto Taquari – e – A Tempestade Esportiva do Alto Taquari – No topo de uma delas, escrita à mão a data de 19-8-1947, que revela conflitos em jogos de futebol entre Lajeado e Estrela.  Seguem em outro anexo. Mostram perfeitamente que foram duas histórias diferentes. Para mim, isso foi suficiente para eu inferir que Olides Canton recebeu as informações de um estrelense agora identificado. Sérgio Jaeger encontrou o livro do Canton na biblioteca da Prefeitura de Lajeado e informou-me a parte final da crônica, pg 60, que eu não possuía:   ……do Avenida, do Taquariense, do Juventude e do Caxias, que o sabor jamais se igualava a uma vitória no braço e na bola no clássico. Tinha mais guerra do que jogo. Hoje serve apenas para contar histórias. Como esta.
Também o nome do colaborador. Nada menos que Antônio Carlos Porto, o Talo Porto, nosso leal amigo desde a juventude e um pouco mais jovem que eu (deve ter nascido em 1931/32), aguerrido jogador de futebol do EFC e conceituado cronista esportivo do Correio do Povo, lido e respeitado pela sua notável capacidade de comunicação, legou seu apelido e sobrenome à posteridade esportiva do RS. 
            A parte inicial crônica do Talo Porto foi a transcrição de informações esparsas que recebera dos torcedores estrelenses que lhe contaram as peripécias de duas partidas de futebol, separadas por sete anos uma da outra, acumuladas dos habituais exageros e meias verdades comuns em brigas coletivas. Misturaram as informações de duas épocas numa só e o Talo assim as relatou. A parte final é toda de sua lavra.
            Se lermos as crônica dos anexos, somadas ao que eu escrevi, teremos a crônica do Talo editada com delicioso humor no livro do Canton, descontando, é lógico, os exageros e inverdades.
            O Olides editou uma história constituída por duas verdades independentes entre si e separadas por sete anos uma da outra.  
            As duas vítimas lajeadenses, O Arno Klein, mordido na paleta por João Porto, a pedido, mostrava as marcas dos seus ferimentos. Diziam que exigira do médico do Esportivo que fosse inoculado com vacina antirrábica. Seguramente conversa fiada. Eu acredito que o Sprito foi sovado pelos dois policiais muito mais por ser o único afrodescendente do que por ser participante da torcida do lajeadense e envolvido no rolo. Pau nele.
           
COMENTÁRIO FINAL: O clima de antipatia recíproca entre as duas cidades que já foram similares, já tem mais de um século e deverá perdurar para o todo o sempre. Não procurei saber qual foi a sentença da FRGF, pois absolutamente não interessa qual tenha sido. A baderna foi lamentável sob todos os pontos de vista. Nada que se possa imaginar modificará sensivelmente a relação entre as barrancas do Taquari. Iremos conviver eternamente com a rivalidade. Se possível, com dignidade. 

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