quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Crônica - Crime bárbaro em Lajeado

CRIME BÁRBARO EM LAJEADO

O ano velho chegava ao fim em 1909 e um novo despontava. Lajeado era uma vila pacata e dava os primeiros passos rumo ao desenvolvimento. Ainda não tinha luz elétrica e cinquenta lampiões em postes faziam débil tentativa de iluminar as noites. Não havia água encanada, ruas calçadas, pontes ou estradas. O rio Taquari era básico no transporte fluvial de pessoas ou cargas. O prefeito eleito, João Batista de Mello, e o Major da Guarda Nacional Nicolau Petry, delegado de Polícia eram as autoridades locais. Verbas escassas e quase nenhuma criminalidade. Uma ou outra briga, fruto de um pileque, no dia seguinte já esquecida.
Os festejos de Natal já haviam passado. O ano novo deveria ser saudado dentro das tradições habituais, com parentes e amigos. Os moradores de Lajeado, na grande maioria, eram descendentes de alemães e mais da metade deles era de confissão luterana.
O hoteleiro Fernando Froelich convidara Carlos Alberto Schüller, compadre de seu filho Julius e família para o jantar de réveillon e em conjunto aguardarem o momento da entrada do ano novo. Seu hotel ficava junto à Praça da Matriz, na esquina da Borges de Medeiros com a Bento Gonçalves.
Carlos Alberto era Secretário da Fazenda municipal, pessoa benquista na comunidade e que foi um dos sócios fundadores do mais que centenário Clube dos Quinze, sociedade e clube de bolão local, ainda com plena atuação.
Ao chegarem, os convidados se depararam com a bandeira alemã hasteada num pequeno mastro, à porta da entrada do hotel, e com o calor da recepção recebida da família dos seus compadres. Alegria e confraternização geral.
Lá pelas tantas e depois de umas e outras os dois compadres já embriagados, iniciaram uma discussão que logo foi se azedando. O motivo, a bandeira alemã no portal do hotel. Carlos Alberto preferia que a bandeira fosse a brasileira. Os ânimos se exaltaram e chegaram às vias de fato. Carlos Alberto Schüller, enraivecido e num gesto completamente imprevisto, saca de um revólver e atira no peito do Julius Froelich, matando-o à queima roupa – Um médico – Chamem a polícia – e o criminoso, apavorado com o que cometera, chora convulsivamente abraçado ao corpo do falecido, pedindo perdão. As famílias, arrasadas. Consternação geral em Lajeado.
O que fazer? Tratou de fugir do local e desvairado, vagou pelas ruas da vila até lembrar-se que tinha um amigo que certamente lhe daria o amparo de que necessitava. Seu nome, Leopoldo Lampert, meu avô, morador das redondezas. Era casado com Joaquina Ramos Schroeder e tinha dois filhos – Mário e Zaira, de 8 e 7 anos respectivamente. Altas horas da madrugada acordou-o, relatou o que havia cometido e pediu abrigo, logo concedido. Meu avô contou-me esta história.
O crime, inominável, seria severamente punido com longa estadia em cadeia. A solução habitual era a fuga para o Uruguai, que na época não mantinha convênio de extradição com o Brasil. Avisada a esposa, tratativas em curso para obter dinheiro para a fuga e estadia no país vizinho até que se encontrasse atividade econômica que o sustentasse e até que a família se mudasse para a vila de Rivera, vizinha de Santana do Livramento, distante cerca de 350 km de Lajeado.
Depois de vários dias, a polícia desistiu de encontrá-lo. Numa noite, Carlos Alberto e meu avô, a cavalo, iniciaram a longa viagem para o Uruguai. Viajaram somente à noite até ultrapassarem Santa Cruz do Sul. Acampavam nos matos. Depois, prosseguiram à luz do dia. O rio Jacui foi atravessado numa canoa com os arreios e os cavalos, seguros pelas rédeas, nadando.
Chegados a Rivera, logo encontraram local de moradia e efetuaram os primeiros gastos com móveis e utensílios que deixassem a casa alugada habitável, aguardando os demais membros da família que mais tarde chegariam.
Instalado o fugitivo, meu avô Leopoldo, sozinho, iniciou a viagem de retorno para Lajeado, trazendo de volta o outro cavalo. Chegou quase dois meses depois de ter partido com seu protegido. Não sei se algum dia ainda se encontraram.
A palavra amigo talvez tivesse um sentido mais amplo do que é utilizado hoje em dia. Não se recusavam favores aos que dele necessitavam, mesmo nas mais adversas circunstâncias.
Trinta e sete anos depois, em janeiro de 1948, minha irmã Leonor, e já casada com Carlos Pereira Marques, visitariam a avó e tios do marido em Dom Pedrito durante as férias de verão. Leonor estava esperando a chegada de sua primogênita Heloisa Helena.
Eu trabalhava na ACIL, tinha 15 dias de férias vencidas e fui convidado para ir junto. Só quando sugeriram que eu, se quisesse, poderia ir sozinho a Livramento e Rivera, concordei em ir. A aventura de conhecer a região da fronteira sul aos 17 anos, sair do Brasil e entrar no Uruguai, viajando de ônibus a Santa Cruz do Sul e de lá por trem até Dom Pedrito era convidativa.
Meu avô Leopoldo, viúvo, morava com meus pais e netos em Lajeado e informado que eu iria à Livramento, tornou-me portador de correspondência para Jaime Schüller, despachante aduaneiro em Livramento, filho de seu amigo que já havia falecido. Partimos.
Ficamos dois dias em Dom Pedrito e mais cinco na propriedade rural da família, situada perto de uma estação de trem em Leões. Tomei o trem para Livramento. Procurei o destinatário e entreguei-lhe a correspondência, recebendo calorosa acolhida da família que recordou, agradecida, a ajuda recebida e a amizade fraterna entre meu avô e Carlos Alberto Schüller. Depois de alguns dias retornei portador de correspondência destinada ao meu avô. Voltei para Lajeado de Maria Fumaça, com baldeação em Cacequi e até Santa Cruz do Sul. Depois, em ônibus até Lajeado. Viajei um dia inteiro.
Em 2015, cento e cinco anos depois do crime, escrevi esta crônica para que uma história verídica se perpetue nos arquivos e na memória. Uma tragédia humana e um gesto de solidariedade de amigo num momento de extrema desgraça.
                               
LEANDRO LAMPERT
Historiador


Esta crônica recebeu o primeiro lugar no concurso literário bienal e aberto da Academia Literária do Vale do Taquari em 2015, na categoria Crônicas Históricas, entre mais de 500 competidores e fará parte do livro a ser editado pela ALIVAT, juntamente com os demais 20 ganhadores.

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