O DESEMBARCADOR
Lajeado, como outras localidades às
margens do rio Taquari, era uma cidade eminentemente fluvial. Tudo girava em
torno do cais do porto. Transporte de pessoas e cargas entre Muçum e uma dezena
de portos intermediários até Triunfo e depois Porto Alegre.
Empresas de comércio de cereais por
atacado, reuniam e beneficiavam os produtos agrícolas vindos do interior do
município, a maioria em lombo de mulas que formavam filas de até vinte animais
encordoados, precedidos por um menino montado no primeiro, que tinha um
cincerro pendurado no pescoço com badalar monótono sincronizado com o passo do
animal.
Indústrias também tinham seu
estabelecimento à beira do rio, com depósitos, machambombas e trapiches de
atracamento de barcos de carga particulares.
Toda
a população tinha conhecimento dos dias e horários de partida e chegada de
barcos, uns diurnos e outros noturnos. Todos sabiam distinguir um vapor duma
lancha-motor, gasolina ou chata.
A gíria profissional praticada no
porto era conhecida de todos, entre elas o embarcador, responsável pelo
colocação das mercadorias à bordo, de maneira que a carga ficasse equilibrada
favorecendo as manobras da viagem e atracamento. A descarga era praticada na
forma inversa do carregamento e não necessitava de comando. O que se carregara
por último, era descarregado por primeiro.
Um belo dia, no Ginásio São José, no
recreio, um menino informava aos demais que no dia de domingo, na semana da
pátria, entre o dia 1º e o 7 setembro de 1939 ou 1940, um DESEMBARCADOR, faria
uma palestra para os alunos de todas as escolas, em frente à Prefeitura, sobre
o tema da Independência do Brasil.
Os desfiles patrióticos dos alunos
ocorriam no dia 5, dia da Mocidade Brasileira e no dia 7, dia da Independência,
com grande garbo, fardados e com bandas marciais. Autoridades presentes, assim
como grande número de espectadores.
Era comum, alguns descendentes de
germânicos, trocarem o “g” pela fonética do “c”, o “b” pelo “p”, o “d” pelo “t”
e outros mais. Todos entenderam que seria um graúdo da administração do cais do
porto de Porto Alegre. Que venha o homem.
Na
hora do almoço contei a notícia ao meu pai. Menino, não é desembarcador e sim um desembargador, juiz de
direito de nível superior e se chama Dr. Solon Macedônia Soares, de Porto
Alegre, de alto conceito no meio jurídico.
Viria para Lajeado de “noturno” e
chegaria de manhã bem cedo à cidade. O evento foi marcado para as dez horas da
manhã de domingo. Todos em frente da Prefeitura.
Como sempre, antes do horário previsto,
os alunos, em pé, já estavam em forma no lugar a eles designado, separando cada
unidade educacional.
Um pequeno coreto, uma mesa e uma
cadeira estavam reservados para o convidado.
Era um dia de primavera antecipada
com sol radiante e inclemente.
Já passava das 11:00 e alguém trouxe
à mesa uma jarra com água e um copo.
Tímidas palmas irônicas saudaram o funcionário da Prefeitura. Agora vai.
Telefonema
de Estrela avisava que o barco havia tido pane na viagem e que o Dr. Solon estava
tomando um auto de praça para ir à Lajeado.
Chegado às 11:30, Dr. Solon tirou de
uma pasta um gordo calhamaço de papel. Ouviu-se um gemido surdo na plateia e
começou a sua palestra. O evento seria demorado.
Iniciou com as naus de Cabral
partindo de Lisboa para o descobrimento do Brasil. Quando relatou a chegada ao
Brasil da família real portuguesa, fugindo do flagelo napoleônico, uma das
meninas presentes desmaiou. Descrevendo a partida da nobreza de volta para
Portugal, uma segunda menina desmaiou e o palestrante compreendeu a situação
inusitada existente, fechou a obra que relatava, com um pequeno preparo
improvisado encerrou o tema e num gesto imitativo sacou uma espada inexistente
e bradou Independência ou Morte. Palmas e debandada apressada geral. Já passava
muito do meio dia.
Causador e vítima involuntária, Dr.
Solon deixou o fato na minha memória, a recordação saliente do seu nome e a
presença em Lajeado do renomado desembargador que, por este pequeno incidente,
serviu para ser lembrado com respeito e consideração.
Crônica publicada integralmente pelo
jornal A HORA, de Lajeado, em 10-7-2014
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