A
NENÊ
Acordei da sesta e fui ler. A Lucy permaneceu
na cama. Um pouco mais tarde, com os olhos marejados perguntou-me – Adivinha do
que eu estava me recordando. – Te lembras, ainda em Bom Retiro do Sul, quando
estávamos num baile do CTG, uma mulher apareceu com um filhinho no colo ……. –
Lembro, e passamos a reconstituir o episódio ocorrido em 1960.
No recém construído
salão de festas do CTG “Querência da Amizade”, participávamos de um baile
tradicionalista. Todo o mundo vestido a caráter e alegria generalizada.
Participávamos ativamente.
Lá pelas
tantas, vimos um movimento incomum na porta de entrada e fomos ver o que estava
acontecendo. No lado de fora, uma mulher jovem, roupas modestas, com um
filhinho no colo e seu marido ao lado, em pânico e chorando convulsivamente. Nos
contou que seu nenê estava muito doente e se digira ao hospital da vila. Fora
informada pela plantonista que o médico estava viajando e, vendo o bebê,
aconselhou que fossem até o hospital de Estrela procurar um médico. Precisava
de ajuda. Comovido, olhei para a Lucy e li nos olhos dela a palavra “vamos”.
Nos oferecemos para levá-los. Estavam numa charrete e se transladaram para o
nosso carro. Partimos. Em seguida, num gesto de pedido de apoio, passou a nenê
para o colo da Lucy. Precisava de uma fada que, num milagre, lhe salvasse a
vida da filha.
Meia hora
depois, chegamos ao hospital de Estrela. A recepcionista encaminhou a Lucy e o
bebê para uma sala, fez uma análise rápida e disse: O médico não está, mas vou
chamá-lo. Em dez ou quinze minutos estará aqui.
Após o
telefonema, já surgiu com uma seringa e deu uma injeção na criança ainda no
colo da Lucy, certamente por determinação do médico. O caso era urgente.
Após alguns
minutos, a Lucy sentiu um estremecimento da nenê e um amolecimento no corpo.
Disse que achava que a nenê tinha falecido, logo confirmado pela enfermeira. Em
seguida chegou o médico que reconfirmou o óbito.
Explicamos
ao médico nossa participação na presença daquele casal e seu filho.
- Doutor,
quanto lhe devemos?
- Não devem
nada, vocês fizeram a sua parte e eu estou fazendo a minha.
- Obrigado
doutor.
Retornamos,
com um choro e desespero ainda maior e a criança com cerca de seis meses ainda
no colo da Lucy, que procurava, instintivamente, passar-lhe o calor de seu
corpo.
Chegados a
Bom Retiro, o baile já havia terminado e a Lucy, desembarcando entregou o filho
morto à sua mãe inconsolável. Que cena amarga.
Nessa
altura, já estávamos todos banhados em lágrimas.
Embarcaram
na charrete, deram um breve aceno e partiram. Moravam entre a vila e o atual
trevo de acesso a Bom Retiro na BR 386. Não perguntamos o nome deles e nem eles
perguntaram o nosso.
Partiram e
nos pareceu que estavam no máximo do desamparo e carentes de conforto. Sozinhos
na noite escura e com sua filha morta nos braços.
Eu e a Lucy
estávamos com o coração em frangalhos e o corpo cansado. Fomos para casa dormir,
pois o dia logo iria amanhecer.
Cerca de um
mês depois, a Lucy estava sentada nos degraus da porta de nossa casa, dois
quilômetros além da vila, quando notou que pela estrada, vinha uma mulher a pé
e com uma cestinha na mão. Ela aproximou-se, o portão estava aberto e ela
perguntou – A senhora é a dona Kiko?
– Sou eu mesmo (A
Lucy era conhecida apenas por seu apelido Kiko)
- Eu sou a mãe
daquele nenê que vocês levaram para o hospital de Estrela. Eu estava procurando
saber o seu nome e onde morava. Vim me apresentar e agradecer. Trouxe também um
pequeno presente, uma cestinha com ovos de galinha.
- Não precisava, mas
de qualquer forma muito obrigado.
Abraçadas,
ainda choraram mais um pouco. A mulher informou o seu nome e o da filhinha
falecida, agora já esquecidos e despediu-se. Nunca mais tivemos contato com
aquela mulher que, com dignidade, tentou e conseguiu localizar quem a tinha
ajudado.
Nosso
primogênito tinha nascido em 1955 e esperávamos mais filhos, que demoravam a
aparecer. Talvez apenas por coincidência, logo após o socorro ao casal, a Lucy
ficou grávida novamente e nossa filha Luzia nasceu em agosto de 1961.
O que teria
acontecido para que o episódio retornasse novamente ao cérebro da Lucy 56 anos
depois?
Leandro Lampert
Historiador
Janeiro de
2016
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