CRIME
BÁRBARO EM LAJEADO
O ano velho chegava ao fim em
1909 e um novo despontava. Lajeado era uma vila pacata e dava os primeiros
passos rumo ao desenvolvimento. Ainda não tinha luz elétrica e cinquenta
lampiões em postes faziam débil tentativa de iluminar as noites. Não havia água
encanada, ruas calçadas, pontes ou estradas. O rio Taquari era básico no
transporte fluvial de pessoas ou cargas. O prefeito eleito, João Batista de
Mello, e o Major da Guarda Nacional Nicolau Petry, delegado de Polícia eram as
autoridades locais. Verbas escassas e quase nenhuma criminalidade. Uma ou outra
briga, fruto de um pileque, no dia seguinte já esquecida.
Os festejos de Natal já
haviam passado. O ano novo deveria ser saudado dentro das tradições habituais,
com parentes e amigos. Os moradores de Lajeado, na grande maioria, eram
descendentes de alemães e mais da metade deles era de confissão luterana.
O hoteleiro Fernando
Froelich convidara Carlos Alberto Schüller, compadre de seu filho Julius e
família para o jantar de réveillon e em conjunto aguardarem o momento da
entrada do ano novo. Seu hotel ficava junto à Praça da Matriz, na esquina da
Borges de Medeiros com a Bento Gonçalves.
Carlos Alberto era Secretário
da Fazenda municipal, pessoa benquista na comunidade e que foi um dos sócios
fundadores do mais que centenário Clube dos Quinze, sociedade e clube de bolão
local, ainda com plena atuação.
Ao chegarem, os convidados
se depararam com a bandeira alemã hasteada num pequeno mastro, à porta da
entrada do hotel, e com o calor da recepção recebida da família dos seus
compadres. Alegria e confraternização geral.
Lá pelas tantas e depois de
umas e outras os dois compadres já embriagados, iniciaram uma discussão que
logo foi se azedando. O motivo, a bandeira alemã no portal do hotel. Carlos
Alberto preferia que a bandeira fosse a brasileira. Os ânimos se exaltaram e
chegaram às vias de fato. Carlos Alberto Schüller, enraivecido e num gesto
completamente imprevisto, saca de um revólver e atira no peito do Julius
Froelich, matando-o à queima roupa – Um médico – Chamem a polícia – e o
criminoso, apavorado com o que cometera, chora convulsivamente abraçado ao
corpo do falecido, pedindo perdão. As famílias, arrasadas. Consternação geral
em Lajeado.
O que fazer? Tratou de fugir
do local e desvairado, vagou pelas ruas da vila até lembrar-se que tinha um
amigo que certamente lhe daria o amparo de que necessitava. Seu nome, Leopoldo
Lampert, meu avô, morador das redondezas. Era casado com Joaquina Ramos
Schroeder e tinha dois filhos – Mário e Zaira, de 8 e 7 anos respectivamente.
Altas horas da madrugada acordou-o, relatou o que havia cometido e pediu
abrigo, logo concedido. Meu avô contou-me esta história.
O crime, inominável, seria
severamente punido com longa estadia em cadeia. A solução habitual era a fuga
para o Uruguai, que na época não mantinha convênio de extradição com o Brasil.
Avisada a esposa, tratativas em curso para obter dinheiro para a fuga e estadia
no país vizinho até que se encontrasse atividade econômica que o sustentasse e
até que a família se mudasse para a vila de Rivera, vizinha de Santana do
Livramento, distante cerca de 350 km de Lajeado.
Depois de vários dias, a
polícia desistiu de encontrá-lo. Numa noite, Carlos Alberto e meu avô, a
cavalo, iniciaram a longa viagem para o Uruguai. Viajaram somente à noite até
ultrapassarem Santa Cruz do Sul. Acampavam nos matos. Depois, prosseguiram à
luz do dia. O rio Jacui foi atravessado numa canoa com os arreios e os cavalos,
seguros pelas rédeas, nadando.
Chegados a Rivera, logo
encontraram local de moradia e efetuaram os primeiros gastos com móveis e
utensílios que deixassem a casa alugada habitável, aguardando os demais membros
da família que mais tarde chegariam.
Instalado o fugitivo, meu
avô Leopoldo, sozinho, iniciou a viagem de retorno para Lajeado, trazendo de
volta o outro cavalo. Chegou quase dois meses depois de ter partido com seu
protegido. Não sei se algum dia ainda se encontraram.
A palavra amigo talvez
tivesse um sentido mais amplo do que é utilizado hoje em dia. Não se recusavam
favores aos que dele necessitavam, mesmo nas mais adversas circunstâncias.
Trinta e sete anos depois,
em janeiro de 1948, minha irmã Leonor, e já casada com Carlos Pereira Marques,
visitariam a avó e tios do marido em Dom Pedrito durante as férias de verão.
Leonor estava esperando a chegada de sua primogênita Heloisa Helena.
Eu trabalhava na ACIL, tinha
15 dias de férias vencidas e fui convidado para ir junto. Só quando sugeriram
que eu, se quisesse, poderia ir sozinho a Livramento e Rivera, concordei em ir.
A aventura de conhecer a região da fronteira sul aos 17 anos, sair do Brasil e
entrar no Uruguai, viajando de ônibus a Santa Cruz do Sul e de lá por trem até
Dom Pedrito era convidativa.
Meu avô Leopoldo, viúvo,
morava com meus pais e netos em Lajeado e informado que eu iria à Livramento,
tornou-me portador de correspondência para Jaime Schüller, despachante
aduaneiro em Livramento, filho de seu amigo que já havia falecido. Partimos.
Ficamos dois dias em Dom
Pedrito e mais cinco na propriedade rural da família, situada perto de uma
estação de trem em Leões. Tomei o trem para Livramento. Procurei o destinatário
e entreguei-lhe a correspondência, recebendo calorosa acolhida da família que
recordou, agradecida, a ajuda recebida e a amizade fraterna entre meu avô e
Carlos Alberto Schüller. Depois de alguns dias retornei portador de
correspondência destinada ao meu avô. Voltei para Lajeado de Maria Fumaça, com
baldeação em Cacequi e até Santa Cruz do Sul. Depois, em ônibus até Lajeado.
Viajei um dia inteiro.
Em 2015, cento e cinco anos depois
do crime, escrevi esta crônica para que uma história verídica se perpetue nos
arquivos e na memória. Uma tragédia humana e um gesto de solidariedade de amigo
num momento de extrema desgraça.
LEANDRO LAMPERT
Historiador
Esta
crônica recebeu o primeiro lugar no concurso literário bienal e aberto da
Academia Literária do Vale do Taquari em 2015, na categoria Crônicas
Históricas, entre mais de 500 competidores e fará parte do livro a ser editado
pela ALIVAT, juntamente com os demais 20 ganhadores.
Linda história verídica tio isso é uma verdadeira amizade.
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