quinta-feira, 22 de abril de 2021

 

DR. VOLTAIRE DE BITTENCOURT PIRES

 

Exacerbação política e uma tragédia

 

Em meu livro São José de Tebiquary, descrevi, na página 201, os eventos que acabaram na trágica morte do capitão Homero Canabarro Cunha, assassinado por um seu rival político, em 1937. Esse episódio teve enorme repercussão na nossa comunidade e também em Lajeado, onde o assassino, o advogado Voltaire de Bittencourt Pires, tio do famosíssimo advogado criminalista Lia Pires, recentemente falecido, obteve couto por parte de alguns amigos e também o local onde foi julgado e inocentado. O episódio todo, pela sua importância, está registrado nos anais dos crimes políticos do nosso estado e registrado em livro escrito pelo também advogado criminalista Dr. Amadeu Weinmann. Logo após eu ter pesquisado e escrito meu texto, visto a partir de Taquari, por mera casualidade tive contato com uma testemunha ainda viva dos eventos, hoje com 91 anos, o historiador Leandro Lampert, cujo pai, Mário Lampert (hoje nome de ginásio em Lajeado), foi o amigo que o resgatou em Taquari e lhe deu couto em sua casa de Lajeado.

Abaixo transcreverei o texto que está em meu livro, acrescidos com os dados ofertados pelo historiador Leandro Lampert.

Em tempo, o Capitão Homero vem a ser avô do nosso amigo Homero Canabarro da Cunha Neto, presidente do Teatro São João e figura de destaque em nossa comunidade.

 

“Há 83 anos, Taquari foi palco de uma tragédia decorrente da exacerbação da política partidária.

A partir da Proclamação da República, o radicalismo entre republicanos e federalistas produziu duas revoluções fratricidas e cruentas, a de 1893 e a de 1923, brigas nas quais a fria e cruel adaga era a paz dos mortos.

Em 1930, os inimigos juntaram-se em apoio ao Getúlio. Mas, os ideais e os ódios, latentes, tornam com a Revolução Constitucionalista de 1932.

Novamente os partidos se separam: de um lado os libertadores (antigos federalistas) do Raul Pilla e, do outro, os republicanos do Flores da Cunha (Flores da Cunha permaneceu fiel a Getúlio e ao getulismo).

Aqui em Taquari, o chefe militar da ala florista – o Partido Republicano Liberal – era o capitão Homero Canabarro Cunha. Esse capitão Homero tinha uma rixa política com um famoso advogado de Porto Alegre, mas que também tinha escritório por aqui: Voltaire de Bittencourt Pires, ferrenho libertador e inimigo do interventor estadual Flores da Cunha.

O ano era 1937, um início de noite, 20 horas, de cinco de janeiro. E a tragédia ocorreu quando os dois inimigos encontram-se à porta do Club Renascença – hoje, Striatus. Parece que o capitão Homero, vendo o desafeto, partiu para lhe dar uma adrede prometida “tunda de cinto”. Esse, assustado, reagiu puxando seu revólver da cintura e atirando mortalmente. O capitão, ferido gravemente pelos tiros (dois), foi imediatamente atendido pelo Dr. Maia Filho que, atento à gravidade dos ferimentos, enviou-o, com maca, via vapor, durante à noite, para atendimento em Porto Alegre. Chegou a ser operado, vindo a falecer no dia seguinte, 06 de janeiro. A consternação em Taquari foi geral.

Para fugir do flagrante, e da certa vingança dos amigos do capitão assassinado, Voltaire teria escapado e recebido couto na casa da família Castro e Silva. Após fugir e estar em segurança fora de Taquari, respondeu processo em liberdade na comarca de Lajeado. Foi absolvido e, passado pouco mais de um ano da tragédia, voltou a advogar em Taquari.

Foi absolvido da justiça dos homens. Da Divina, não. Poucos anos após, em 14 de agosto de 1950, com apenas 45 anos, morre, em São Jerônimo, em acidente aviatório.”

 

JOÃO PAULO DA FONTOURA

Jornalista do “O TAQUARYENSE” de Taquari em junho de 2020

 

CARTA DE LEANDRO LAMPERT AO DES. ÉRICO BARONE PIRES

 

            Após ter adquirido e lido o livro, constatando que o nome de seu pai, Mário Lampert não estava presente na biografia do Dr. Voltaire e contrafeito, escreveu o seguinte para o filho do Dr. Voltaire.

 

 

                                   Porto Alegre, 7 de novembro de 2006 

 

                                   ILMO. SR.

                                   DES. ÉRICO BARONE PIRES   

                                   PORTO ALEGRE

 

                                   Caro amigo.

.

                                   Era aguardada com ansiedade a publicação do livro do Dr. Amadeu Weinmann, com a biografia do Dr. Voltaire, para conhecer o restante da vida dele, além dos fatos que presenciei e convivi com ele nas oportunidades em que visitou meu pai em Lajeado.

                                   Desejo transmitir os meus cumprimentos pelo seu justo orgulho e manifestar também a minha alegria, pois na família de Mário Lampert ele sempre foi considerado como sendo “nosso” também.

                                   Reuni-me com minha irmã Leonor (somos as duas últimas testemunhas oculares ainda vivas) para recuar ao passado em busca do momento em que conhecemos o seu pai.

                                   Espero poder acrescentar mais alguns conhecimentos sobre a vida do biografado, ainda que sucintos e parciais.

                                   As reminiscências chegaram até a época em que você era o Leleco, minha irmã a Nola e eu respondia pelo apelido infame de Dunda

                                   Eventualmente Dr. Voltaire, por via fluvial, vinha á Lajeado a trabalho, hospedava-se sempre na nossa residência e retornava no dia seguinte ou no subsequente.  Ainda menino na época, recordo sua figura cativante. Exercia um fascínio sobre mim e lembro como eu desejava que meu pai fosse igual a ele.

                                   Meu pai sabia quando ele viria, pois controlava no Cartório as audiências em que ele faria parte e passava o dia com ele. Algumas vezes ele não comparecia, mas meu pai o representava, pois tinha sempre uma procuração substabelecida. Meu pai era um homem pobre e nem telefone tinha.        

                                   Nunca em minha vida, presenciei uma amizade tão intensa, fraterna, leal e desinteressada entre duas pessoas com temperamentos tão  diferentes. Creio que o elo inicial da relação deles foi o ódio a Flores da Cunha, que a ambos sempre perseguira com tenacidade.

                                   Eis que surge a notícia dos fatos na frente do Clube Renascença e logo meu pai tratou de participar, junto com outras pessoas de Lajeado, do resgate do amigo em seu esconderijo em Taquari e fazer o traslado com segurança para sua residência em Lajeado, mesmo com considerável risco de vida.  Este fato é para mim um tanto nebuloso, mas lembro perfeitamente da chegada do Dr. Voltaire, com meu pai, altas horas da noite. Ele estava absolutamente calmo.  Ficou homiziado em nossa casa por algum tempo, um mês, talvez menos.  Havia um número excessivo de pessoas que sabiam da presença dele em nossa casa, além das continuas imprudências do foragido, que favoreceriam a descoberta do seu refugio. Meu pai era visado e perseguido pela Brigada pelas razões apontadas em meu livro e corria um perigo calculado. Na cidade, surgiu o boato que havia ordens para que os Brigadianos ou capangas matassem o Dr. Voltaire.

                        Em certa oportunidade, minha mãe alertou que soldados da Brigada e “bombachudos”, capangas mal encarados e evidentes facínoras, rondavam nossa casa ostensivamente e que para evitar riscos desnecessários para o amigo abrigado e também para cinco crianças inocentes.   seria oportuna a partida do Dr. Voltaire para outro local. Foi levado por meu pai para a casa de Virgílio Lopes em Cruzeiro do Sul, com algumas ocorrências cômicas. Três ou quatro dias depois, meu pai levou-o para a área rural na Demanda, no interior do distrito e cerca de 13 km de Lajeado,  onde Lelo Rocha criava gado e plantava arroz, em lugar completamente isolado. Lá permaneceu por mais de seis meses e enquanto foi necessário, abrigado em sua residência. Ambos eram contra-parentes nossos. Uma vez fui junto com meu pai visitá-lo. Eventualmente meu pai não conseguia uma carona dos amigos que possuíam automóvel, utilizava-se, às suas expensas, de um “auto de praça”. Um filho do Lelo ainda vive e tem a sua idade.

                        A recordação subsequente é a chegada do Dr. Voltaire, trazido da Demanda por meu pai, à noite, para que no dia seguinte ele se “entregasse”. Quando fui para a escola de manhã, os dois já estavam prontos para se apresentarem ao Juiz.

                   Na sala da prefeitura onde ele se encontrava recolhido, meu pai o visitava todos os dias. Inúmeras vezes fui junto. Outros amigos também iam, colaborando em sua segurança e fazendo-lhe companhia. Nasceu novo boato, o de que um Tenente da Brigada, exímio atirador, tentaria matá-lo na Prefeitura. Todos sabiam o seu nome e ele era visto com frequência na cidade.

                   Sabia-se do risco de vida do preso. Já nos primeiros dias, solicitou ao meu pai um revolver, uma caixa de balas e uma corda, para, em caso de incendiarem a Prefeitura, que tinha escada de madeira, pudesse escapar pela janela. Foi atendido o seu pedido e meu pai lhe entregou a “encomenda”.

                     Numa oportunidade, o pai e eu passávamos na calçada da praça em frente á Prefeitura e ouvimos o grito – Máaaario – era o Dr. Voltaire o chamando, de camisa branca, nos acenando da janela da Prefeitura, um alvo perfeito.

                      Meu pai ficou furioso e lá fomos.  Ao ser admoestado por meu pai, deu uma gargalhada e disse que ninguém teria a coragem de matá-lo. Ele estava enganado. Tinha.  Era um homem que não conhecia o medo

                        No livro do Dr.Amadeu lemos considerações sobre causas remotas do resultado do júri. Em meu entender, mais de um acontecimento conduziu a opinião pública de Lajeado para total simpatia com o réu que seria levado a júri popular.

                        Inicialmente, as revoluções de 30 e 32, que relato nas páginas 101 a 108.  Em seguida, o assassinato de Orlando Fett, consequência da revolução e tão bem descrito pelo Dr. Amadeu.

                         De repente, surge presa na cidadezinha, aldeia ainda, uma pessoa que tivera a ousadia de enfrentar uma personalidade ligada à Brigada e ao Governo, não importa quem e em que situação, nem as razões. Era ao menos um, retribuindo com violência, as agressões e humilhações da Polícia e da Brigada, que os moradores, após a revolução de 32, sofreram e tiveram que amargar quase indefesos. Dessas famílias perseguidas, alguns seriam jurados. Ela era mais uma vítima de perseguição implacável, um colega de infortúnio e um amigo natural que merecia todo o apoio. O inimigo do meu inimigo é meu amigo. Meu pai denunciava os fatos no seu jornal “A Semana”. Acabou preso também.

                        Tenho lembrança que meu pai, como procurador do Dr.Voltaire, participou das audiências que antecederam o júri.

                        Estes dois fatores remotos, penso, contribuíram para que o brilhante trabalho dos seus defensores na ocasião do júri tivessem, como resultado, a absolvição do Dr. Voltaire, para a grande satisfação de minha família e da comunidade local.

                         Dr. Voltaire ficou morando, perto da nossa casa, em Lajeado e advogando. Meio ano depois, desejando mudar-se para a Capital, procurou meu pai, disse para chamar a minha mãe e convidou-o formalmente para exercer advocacia em Porto Alegre em sociedade com ele. Eu assisti. Meu pai, comovido, agradeceu, mas não tinha maiores ambições. Um abraço de ambos, emocionados, selou a despedida.

                        Finalmente, a sua morte trágica deixou meu pai arrasado e a comunidade desolada, mas sua figura e as recordações continuaram vivas por muito tempo. Deixou inúmeros amigos.

                        Receba, Dr. Érico, com simpatia, a minha contribuição ao conhecimento da vida de seu pai, o meu abraço e os votos de felicidade para você e seus familiares.

                                                  

            Esta carta está presente na última página da segunda edição da biografia escrita pelo Dr. Weinmann

 

            Convidado pelo Des. Érico, estive duas vezes em seu apartamento.

 

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