TIO
GASPAR E TIA CARULA
Meu
trisavô paterno, Luiz Antônio Ramos, casado com Joaquina da Silva (vó Quinca)
nascida em 1829, era um dos latifundiários que lotearam e venderam terras de
sua propriedade em Venâncio Aires e Lajeado no início da colonização desses
municípios.
Uma
de suas filhas, Marcolina da Silva Ramos (1850-1920) casou com Carlos Roberto
Schroeder (1843-1909), então luterano que, ao casar, tornou-se católico e eram
os pais de minha avó Joaquina Ramos Schroeder (1881-1934), que casou com meu
avô Leopoldo Lampert (1871-1958), também luterano e que se tornou também
católico. Tiveram sete filhos.
Meus
avós paternos herdaram 80 Ha de terras na Itaipava dos Ramos, área rural entre
Cruzeiro do Sul e Mariante, chamada de Chácara, na barranca do rio Taquari e
junto com a propriedade, gado e benfeitorias foi o tio Gaspar, casado com tia
Carula, casal de afrodescendentes e na época em que eu ainda menino de 7 anos,
o conheci. Segundo fui informado, nascera escravo de Luiz Antônio Ramos. Creio
que ao receber a herança da sogra, meu avô Leopoldo atendeu à recomendação de
zelar pela vida do tio Gaspar e o fez. Os demais seis irmãos de minha avó
também herdaram propriedades rurais semelhantes, povoadas de gado e localizadas
na Itaipava, Mariante e Taquari Mirim.
A
chácara situava-se perpendicular à barranca do rio e era cortada pela estrada
Lajeado à Mariante, cerca de 50 m do rio. Havia a casa grande, de alvenaria,
elevada do chão em face às enchentes, cerca de 1,20 m., no meio do terreno
pequeno. Tinha duas portas dianteiras e duas escadas de pedras. O sótão era
aproveitado por uma escada interna e também tinha dormitórios. Afastada cerca de 5 m à direita, a cozinha,
ligada à casa grande por uma passarela em declive, coberta por telhas,
prevenção habitual contra incêndios na cozinha. Em ângulo reto, a casa do capataz.
No pátio, uma magnífica figueira, cujos ramos atravessavam a estrada e se
aproximavam das casas.
Tio Gaspar e tia
Carula moravam sozinhos em uma casa de madeira dentro do potreiro que era
ladeado por lavouras, do outro lado da estrada. Já era um homem velho,
franzino, de carapinha branca e continuava como empregado da área rural. Sua
esposa era uma mulher alta, forte e tinha um bócio enorme no pescoço. Estava
sempre faceira. Junto a casa, um cercado com aves, horta, aipim e árvores
frutíferas. Os filhos do casal eram marinheiros no rio Taquari e as filhas já
eram casadas. Tinham vida própria.
Tio
Gaspar era tratado com respeito pelos demais peões solteiros, pois gozava de
alta consideração com meu avô e por nós, seus netos. Era um homem de confiança.
Não
tinha função específica, mas zelava pela propriedade e tinha seus próprios
horários. Não precisava de comando do capataz Neco. Sua principal função era
providenciar que as éguas e suas crias atravessassem a estrada, das baias para
o potreiro sem problemas de tráfego na rodovia.
Lembro-me
ainda, como se fosse ontem que, sendo um sábado, encarregou-se de matar,
esfolar e carnear um cabrito que seria assado no churrasco do domingo.
Apresentei-me como espectador único e fiquei curioso, olhando a operação.
Tio
Gaspar amarrou uma soga no pé do cabrito e passou a corda num galho de uma
árvore, deixando-o dependurado. O bicho ficou berrando feito louco. Colocou uma
bacia grande no chão, debaixo, puxou uma faca e segurando o animal, fechando
sua boca, passou a lâmina debaixo do pescoço, degolando-o. O sangue caiu dentro
da bacia. Não me assustei com o espetáculo.
Morto o bicho, amarrou uma segunda corda no outro pé, de maneira a ficar
com as pernas abertas, facilitando a tirada do couro.
Ia
me explicando - tem que cuidar para não fazer furo no couro. Ao abrir o ventre
com um corte vertical, disse – tem que cuidar para não furar as tripas e por aí
a fora. Colocou as vísceras na bacia já lavada pela tia Carula e foi me dando a
primeira aula de anatomia em um mamífero. Apontou com a faca e disse – coração,
em outra víscera disse – figo – e depois – os bofe. Esfolado o cabrito,
deixou-o cortado ao meio no sentido vertical e dependurado na árvore, bem alto
do chão até o outro dia quando estaria “oreado” e seria espetado para o
churrasco dominical. Creio que era aniversário do meu avô, naquela altura da
vida já viúvo.
Perto
das casas e na beira do rio, um enorme galpão com um corredor no meio que
abrigava as éguas e o garanhão (meu avô tinha um haras e criava cavalos Puro
Sangue Inglês, com registros no Stud Boock do Rio de Janeiro). Menino ainda, eu
dedilhava as comunicações de coberturas e nascimentos dos equinos na máquina de
escrever do pai, uma Royal e as enviava pelo correio.
Quando
fiz nove anos, meu avô Leopoldo adquiriu dois petiços para seus netos de
Lajeado e Cruzeiro do Sul. Todos os sábados, depois do meio dia, eu ou meu
irmão Luciano o acompanhávamos até a casa de seu genro, tio Osvaldo Lopes, em
Cruzeiro do Sul, para que um dos meus três primos, Gabí, Marino ou Ciro se
juntasse a nós na viagem até a chácara, 14 km de Lajeado, costeando o rio
Taquari abaixo. Pode se imaginar o orgulho de viajar montado, com dois netos
tagarelas e ávidos de conhecimento.
Tio
Gaspar já estava nos esperando, desencilhava os três animais e os conduzia a um
potreiro pequeno. Dalí em diante, ficava com os guris enquanto meu avô
conversava com o Neco. Sempre tinha alguma novidade para mostrar. Um ninho de
Quero-Quero com dois filhotes no potreiro, uma toca de “largato” (ele espetava
uma vara na toca e o fazia sair apavorado) para alegria nossa, que estávamos
seguros em cima de uma taipa de pedra. Informava-nos o nome das éguas e dos
potros. O pai era o cavalo argentino que meu avô mandara comprar, seu nome era
El Raro, preto lustroso, sinal branco na cabeça e quatro patas brancas. Era uma
beleza de se ver. Era uma fera e jamais foi montado. Nos levava até o fundo do
potreiro onde havia um açude para ver garças, frangos d‘água e socós. Sabia os nomes de todas as aves. Nos
levava a pescar lambaris na beira do rio. Sabia onde havia amoras, pitangas,
coquinhos e butiás. No rio Taquari, havia a cachoeira e a passagem de barcos
era próxima à barranca e o lugar chamava-se “furado”. Havia trânsito contínuo
de barcos no rio Taquari.
Tio
Gaspar passava o sábado e o domingo junto aos guris, protegendo-os dos perigos
dos animais e ensinando os nomes das coisas que os meninos da cidade não
conheciam. Aprendemos muitas coisas com ele, inclusive desconhecendo para
sempre o preconceito racial.
Quando
um produtor rural trazia uma égua no cio para cobertura, era o tio Gaspar o
encarregado de nos levar para um lugar afastado. Um dia, ouvimos o Neco
informar o dono da égua no momento da entrega – foi “servida” duas vezes.
Tia
Carula, nas safras de goiaba e marmelo ia, inicialmente a pé e depois pelo
ônibus para Cruzeiro do Sul, na casa de minha tia Zaira e em Lajeado na nossa,
tomando a frente da produção de marmelada e goiabada para consumo da família
durante o ano. Era tratada com carinho e, lembro ainda, dormia num quarto do
galpão, usava o banheiro do peão e fazia suas refeições em separado, segundo os
costumes da época.
Sua
foto com minha irmã Leonor no colo lá por 1930 (talvez a única da vida dela)
retrata o carinho recíproco dela e nossa família.
Foto
Leonor Lampert Marques
Anos
depois, já mais crescidos, eu, meu irmão e os três primos já com outros
interesses nos fins de semana, além do início de linha de ônibus entre Lajeado
e Venâncio Aires, meu avô vendeu os petiços e seu cavalo de montaria. Encerrou
também as atividades do haras, desfazendo-se nos animais.
Passei
alguns anos sem ir à chácara e quando fui, vi que a casa do tio Gaspar já tinha
sido demolida e perguntei por ele. Informaram-me que havia falecido e tia
Carula, com dificuldade de locomoção, fora morar com uma de suas filhas em
Cruzeiro do Sul. Vi também com tristeza que a figueira tinha morrido.
Viveram
a vida humilde dos peões rurais, analfabetos e sem perspectivas de crescimento
profissional, mas encontraram o amparo necessário às dificuldades nas suas
velhices. Deixaram somente emoção e suaves lembranças dos tempos que já vão
longe. Só passaram pela vida. Não viveram.
Foi
bom conhecê-los tio Gaspar e tia Carula.
Descendente
por via paterna e materna de latifundiários e loteadores, não recebi de herança
sequer um palmo de terras.
Parte
da chácara (60 Ha), consta que coube às duas filhas de meu primo irmão falecido
Ciro Lopes. Uma gleba coube ao primo irmão do meu pai, ainda vivo, Antonio
(Toninho) Schroeder na beira do Arroio Taquari Mirim, divisa de Venâncio Aires
com General Câmara. Vinte Ha foram vendidos a um vizinho.
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