A
COOPERATIVA AURORA (SC) E EU
Uma história quase inverossímil
Em
outubro de 1961 assumi o cargo de Superintendente na Cooperativa dos
Suinocultores de Encantado Ltda., no ramo principal de industrialização de
suínos - ramo no qual eu já tinha 13 anos de experiência em duas empresas
industriais de caráter particular. O cooperativismo era novidade para mim. Me
limitei a comandar a aquisição, industrialização e a venda dos produtos
originados, assim como o comando das finanças da cooperativa, com as habituais
deficiências de caixa.
Em
pouco tempo, consegui modificar completamente a situação. A obtenção de resultados
econômicos que fortaleceram o nome e o caixa da empresa me trouxe conceito no
meio cooperativo, apesar das críticas à minha administração modelo
“capitalista”. Eu a considerava Cooperativismo de Resultados.
A
Cosuel operava também como uma Central Cooperativa, e tinha número razoável de
cooperativas Agrícolas Mistas ou Cooperativas Tritícolas associadas. Elas
encaminhavam à Cosuel parte da produção de suínos e soja dos seus associados,
não havendo obrigação de fidelidade.
Até
cerca de 1964, as cooperativas eram subsidiadas pelo governo do Estado, que as isentava
do Imposto de Vendas e Consignações (6 %) na aquisição da produção pecuária e
igual montante descontável no imposto a ser pago sobre as vendas da produção a
terceiros. A soma das duas isenções resultava em uma vantagem de cerca de 6% sobre
as vendas num ramo de negócios que, bem administrado, gerava cerca de 3% de resultado
positivo sobre o montante de vendas. Isto durou até que o Estado modificou o
imposto sobre as vendas (ICMS, 15%), igualando o imposto das cooperativas ao
mesmo valor das empresas privadas.
Com
o passar do tempo, fui sendo procurado em Encantado por diretores das
cooperativas associadas – e também por outras desconhecidas –, que vinham
trazer ao meu conhecimento seus problemas administrativos, procurando conselhos
para resolvê-los. Na maioria dos casos, já era tarde demais para quaisquer
providências. Vi homens com os olhos rasos d’água ao saírem do meu escritório.
Uma vida em torno de um ideal, perecendo inexoravelmente. Num ano, mais de 600
cooperativas fecharam suas portas. Já estavam insolventes com uma administração
incompetente e distante da realidade. Sempre os mesmos erros: compras e vendas
mal feitas, dívidas incobráveis de terceiros e de associados decadentes, além
de artifícios contábeis para esconder prejuízos. Diretores não sabiam nem ler e
identificar um balanço geral, que dirá um exame de velocidade de rotação dos
estoques, e muito menos verificar o índice de liquidez financeira, em plano
decrescente a cada balanço.
Entre
outros, lembro alguns casos em que, chamado, fiz intervenção:
PADRE
FELIX BUSATTA – Vigário de Paraí, 100 km ao norte de Encantado.
Me
visitou em Encantado. Estava desesperado e me contou a sua história: Fundaram
uma cooperativa industrial de soja, e compraram uma pequena prensa expeller
japonesa. Trabalharam durante seis meses e não conseguiram vender nenhum quilo
da torta e nem de óleo bruto. Ingênuos. Não conheciam a área. Pediu socorro e
apelou que eu fosse a Paraí para ver de perto o problema. Fui no dia seguinte e
logo vi o tamanho do rolo. O padre já tinha visto que a prensa tirava apenas a
metade do óleo de soja, sendo que o óleo produzido era estocado em tanques
horizontais sem torneira para retirar o precipitado por decantação. Óleo com
acidez e torta estocada já rançosa. Os salários estavam atrasados e havia dificuldade
para pagar a energia elétrica. Que rolo. Pediu socorro para evitar o desastre
de entrar em liquidação. A Cosuel se propôs a adquirir o óleo, a torta (ambos
precisavam de rebeneficiamento) e também sugeri que vendessem a soja. Era
perigoso arriscar a aquisição de matéria prima semi elaborada e que ninguém
queria comprar. A Cosuel pagaria a primeira carga de torta e de óleo à vista
para sanear as contas mais urgentes. Sugeri que dentro de uma semana me
informasse acerca do andamento das coisas. Informei que haveria um grande
prejuízo, mas era o melhor que eu poderia propor. O Padre não esperou, tal a
ansiedade – fechou o negócio na hora. Mandou o óleo, a torta e todo o estoque
de soja. A Cosuel pagou e nunca mais tive noticias além de que a pequena cooperativa
tinha fechado as portas. Não fui o curandeiro. Fui o coveiro.
COOP. TRITÍCOLA DE NÃO ME TOQUE - Uma associada.
Tudo idem, com duas prensas iguais. Um mês depois, já souberam da solução de Paraí
e desejavam tratamento igual. OK. Mas
havia uma diferença: a tritícola já era uma Cooperativa viável. O seu
presidente tinha o sobrenome Roos.
COOPS. TRITÍCOLAS DE SANTA BÁRBARA, ERVAL
SECO E A OUTRA POSSIVELMENTE DE PALMEIRA. – Eram associadas. Mandaram me chamar,
pois estavam insolventes e queriam fazer fusão numa AGE coletiva num sábado
próximo - queriam a minha opinião. Fui. Me convidaram para sentar junto à mesa.
O clima era favorável (na minha opinião, três se afogando e cada um agarrado no
outro. Morte certa). Juntando três quebradas, daria uma inteira. Ao pedir a
minha palavra, elogiei a iniciativa de buscar uma solução conjunta, mas na
minha opinião não deveriam formalizá-la por escrito. A situação atual era
devida em razão de que a cobrança dos serviços (pesagem, secagem, armazenagem e
carregamento da produção agrícola) não pagava o custo operacional e que deviam,
em conjunto, fazer um estudo do custo real, mais a inflação e mais a cobertura
do prejuízo do ano para a safra seguinte. Fizeram uma pausa para o churrasco e
logo me despedi, deixando liberdade para cada um se manifestar sem o
constrangimento de minha presença. Se os associados não aceitassem, que providenciassem
na extinção das cooperativas. Lei seca. Mais tarde, e por terceiros, soube que
tinham aceitado a minha sugestão. Nunca mais tive qualquer notícia. Estão vivas,
separadas e operantes até hoje.
COOP. AGRÍCOLA MISTA RIO PARDINHO – SANTA
CRUZ DO SUL. - Associada. Mandaram me chamar para uma reunião do Conselho.
Estavam insolventes e a produção de suínos local era enviada ao concorrente de
S. Cruz do Sul. Queriam socorro. Repeti a sugestão que já tivera sucesso em
outras cooperativas. A cooperativa seguiria comprando os suínos a 30 dias e a
Cosuel os pagaria a vista em dinheiro ou mercadorias de venda nas lojas,
transferidas ao mesmo preço praticado com as 24 lojas da Cosuel. Fidelidade
obrigatória. Na minha opinião, seriam necessárias 2 cargas de suínos por mês
para a sobrevivência e três para o desenvolvimento. Com menos de 2 cargas por
mês, a cooperativa não sobreveria. Primeiro mês, sucesso – 3 cargas. No segundo,
duas, e no terceiro uma. Fim de papo. O presidente veio a Encantado explicar
que a suinocultura estava sendo trocada pela fumicultura e queria adquirir
mercadorias de loja a prazo. Neguei e dei as dicas para fecharem a cooperativa,
dando o mínimo de prejuízo para os associados. Sou um defensor da eutanásia de
empresas. Não deixe morrer. Mate. Primeiras coisas a fazer: não pagar os
impostos nem duplicatas de fornecedores. Vender ou hipotecar o imóvel para
saldar dívidas bancárias com aval de colonos e pagar os sócios pequenos. A
cooperativa iria à liquidação voluntária e os credores, inclusive os
funcionários, seguiriam dentro dos preceitos legais de precedência.
COOPERATIVA TRITÍCOLA DE SOLEDADE. - Associada.
Seu presidente na época tinha o sobrenome Pederiva. Os associados pecuaristas
(alguns já associados à Cosuel, que limitara o número de criadores de gado) o
convenceram a contragosto a edificar um matadouro de gado na cidade. Estavam
escavando os alicerces quando o presidente resolveu me procurar. Estava receoso
de má iniciativa. Dei totais garantias de insucesso. Fui curto e positivo. Não
se meta onde você não entende. Associados da Cosuel só entregavam gado para
abate de janeiro a maio, época de fartura. Desistiu. Dois anos depois, nos
encontramos. Ele, rindo, me agradeceu por tê-lo livrado de uma iniciativa
ruinosa. Até hoje ninguém construiu matadouro bovino com Inspeção Federal em
Soledade. Foi o único que me agradeceu.
COOPERATIVA AURORA – SC - Não me admirei do
convite feito pela Aurora. Era simples rotina. Eu não iria à Chapecó sem ter
sido convidado (e gratuitamente) por alguém que não merecesse a minha
consideração – no caso, o prefeito de Encantado, Adilar Bertuol, irmão de Valmor
Bertuol, ligado à administração da Coperalfa ou Aurora.
Eventualmente, eu dava
assessoria a uma série de cooperativas que andavam mal das pernas. Para muitas,
eu não receitava remédio e simplesmente dava logo a extrema unção. Uma
cooperativa somente terá sucesso se for necessária aos associados.
Eu tinha salvado a Cosuel da derrocada e
gozava de alto conceito no meio cooperativo e, consequentemente, no Banco do Brasil.
Talvez o Valmor Bertuol, na Aurora, sufocado por um empréstimo do BB que
provavelmente não viria mais, pediu ao irmão que me convidasse para dar uma
ajuda. Fomos eu e o Nelson Schwambach, diretor industrial da Cosuel. Esperavam-nos
várias pessoas desconhecidas: Valmor Bertuol, provavelmente o gerente do BB e
mais duas ou três pessoas ligadas à administração da Aurora.
Eu apenas escutei o que tinham a dizer, e
tomei algum conhecimento. Quando surgiu a ideia de vender a cooperativa (creio
que a sugestão foi dada por alguém do BB ) ao Plínio de Nes do Frigorífico
Chapecoense e ninguém se manifestou, perguntei – por que não vamos lá? Eu não
conhecia o Plínio de Nes nem ele a mim, mas ambos sabíamos quem o outro era. Fomos. Era 14 de janeiro de 1972. O encontro
aconteceu. O Plínio foi bastante atencioso e como todos se calaram e olharam
para mim, eu é que tive de fazer a oferta, sem ter a menor autoridade para
isso, recusada com polidez.
Voltamos à Aurora em clima de velório.
Imaginei um tiro no escuro e eu sugeri se - quem sabe - uma correspondência
minha ao BB ajudasse. Eu não tinha muita fé, mas era uma derradeira tentativa. Eu
faria um reestudo e pequeno plano para abater 200 suínos por dia, com a
lucratividade habitual de todos (3%), acrescido da posição de Chapecó, grande
produtor de milho e suínos, ponto geográfico dos melhores e existência de um
rebanho já com indícios visíveis da aceitação do suíno tipo carne, formado por
várias cooperativas agrícola-mistas e outros argumentos. No fim do trabalho
anotei que referências sobre mim poderiam ser obtidas na gerência do BB de
Encantado. O reestudo foi entregue ao BB de Chapecó. Dias após, o gerente do BB de Encantado me
avisou que o BB de Florianópolis queria uma entrevista comigo. Eu disse – Não
vou. Só irei se mandarem um avião me buscar. Marcamos dia e hora e esperei pelo voo na
pista do aeroclube em Estrela.
Aterrissado
o avião e contatado o piloto, me apresentei como piloto privado de aeroclube e
me permiti sugerir um plano do voo feito por mim. Voaríamos a 400 m de altura
sobre o solo, direto para São Francisco de Paula, dali para o Itaimbézinho e até o mar, subindo pelo
litoral até Florianópolis. Deu uma risada e aceitou. Quando chegávamos ao Itaimbézinho
perguntou-me. – Vi que você gosta de aventuras. Você já voou abaixo do solo?
Não? Então agora vai! – e conduziu avião para dentro do cânion. Pelas janelas
laterais da aeronave, vi apenas as paredes rochosas e vegetação. Aventura
fascinante e inesquecível. No trajeto pela orla marítima, vislumbrei paisagens
lindíssimas até o aeroporto. Quando passamos sobre um local, eu disse para o
piloto: - Um dia terei uma casa nessa praia. Poucos anos depois, comprei
terreno e construí uma casa na praia do Sonho, na rua Tangarás, 56.
Na
reunião com o Banco do Brasil em Florianópolis (só agora concluí que também o
BRDE e FUNDESC também estavam presentes) estiveram quatro pessoas, entre eles
um que visivelmente era resistente à proposta. Me inquiriram à vontade. Queriam
saber tudo. Diálogo proveitoso. Lentamente essa pessoa também passou a aceitar
o plano e quando notei, durante o diálogo, não se usava mais a palavra “se” e
sim “quando”. Fiquei razoavelmente otimista. Recomendaram a aceitação do
reestudo de viabilidade e as Diretorias Financeiras Bancárias formalizaram os
contratos de financiamento. Minha participação se encerrara e meu silêncio começava.
Eu soube pelo BB de Encantado da aceitação do meu trabalho e
abertura de crédito para a Aurora. Nunca mais tive qualquer informação.
Um
primeiro passo havia sido dado e agora cabia ao Conselho tomar as demais providências
que seriam necessárias. Entre os conselheiros e participantes, temos os nomes
de Orlando Jacob Cella, Nilson Olímpio Batiston, Victorino Setembrino Zanchet e
Gil C. Tozzi, que em conjunto prosseguiram com as démarches juntos aos Bancos
Financiadores e legalização junto às autoridades fiscais. Restava definir uma
pessoa capacitada para exercer o comando efetivo da cooperativa. A escolha caiu
sobre Aury Luiz Bodanese, acompanhado de outros diretores, que trataram logo,
com sucesso, de todos os assuntos pertinentes ao desenvolvimento da Cooperativa
Aurora.
Logo após a entrega
do pedido ao BB, soube por terceiros que Aury Luiz Bodanese assumira a
presidência da Aurora e acompanhei de longe, orgulhoso, o desenvolvimento que
ele imprimiu para levantar a Aurora ao nível de sucesso e segurança financeira
e econômica.
Pouco
tempo depois, fui a um simpósio de cooperativas em Recife e vi que Aury Luiz
Bodanese era um dos participantes. Procurei-o e ao encontrá-lo me identifiquei
como sendo o autor do reestudo de viabilidade econômica junto aos bancos de
Florianópolis. Aury, sem dizer uma palavra, retirou-se. À tarde, procurei-o
novamente e outro afastamento. Não entendi o acontecido. Tempos depois, num
outro simpósio, nem nos olhamos. Aquele homem me detestava. Por quê?
Mesmo com suas
deselegâncias comigo, tive satisfação do desenvolvimento dele. Afinal, eu me
considerava um dos “padrinhos” da Aurora e o sucesso dele também era o meu.
Calei
durante quase meio século, esquecendo o episódio e não me perturbei. Nesse
ínterim, a notícia aterradora da TV sobre o desastre com o avião que levava
jogadores e diretores do Chapecoense para a Colômbia, matando quase todos os
passageiros e tripulantes. Chocante.
Eu
não acompanho jogos de futebol. Sabia que o Chapecoense era um time da primeira
divisão, mas não sabia que a Aurora o patrocinava.
Vendo
e ouvindo as notícias na TV, tive um choque emocional e me contive, desligando
a TV, para não chorar. Aquela gurizada com camisetas da Aurora, a bananada do piloto,
a minha afilhada Aurora de luto. Por já ter tido uma pane num avião que eu
pilotava (um monomotor Paulistinha) e feito um pouso sem motor – perfeito, em
uma roça de fumo - sabia da emoção e lembrança do caso frustrante e
inexplicável da Aurora/Bodanese. Que tragédia. Me recuperei e tornei a ligar a TV de novo.
Contei o fato para meu
amigo fraterno Milton Lunardi, de Chapecó. Ele interessou-se em descobrir o que
poderia ter acontecido com o Aury, segundo ele, um gentleman, para me tratar
daquela maneira. Iria tentar descobrir o que poderia ter acontecido. Localizou
Orlando Jacob Cella, ex secretário da Aurora na época e um dos que me
aguardavam em Chapecó, ainda vivo e lúcido. Inquiriu-o e ele disse que um
“alemão” e um companheiro fizeram um reestudo de viabilidade econômica da
Aurora, ele o lera e achara bom. Milton lhe perguntou se seria o Leandro
Lampert, disse-lhe: Era mesmo ele.
Pesquisando no Google,
Milton achou crônica sob o tópico Aury Luiz Bodanese, e me passou informações
que permitiram eu também encontra-la, referências elogiosas a um líder
cooperativista gaúcho, vítima imprudente de um fato lamentável que conto em meu
livro – FATOS E CRÕNICAS – sem citar nomes, mas agora, repito o que escrevi
nominando empresas e pessoas. Para que o fato seja conhecido com o subtítulo de
Reminiscências Profissionais 1. Segue abaixo
REMINISCÊNCIAS
PROFISSIONAIS - 1
Em 1961, quando assumimos
cargo de Diretor Superintendente da Cooperativa dos Suinocultores de Encantado
Ltda., já encontramos um acordo verbal em vigor entre as cooperativas de
produção e as de consumo. Estas dariam uma preferência de compras àquelas e que
em retribuição adotariam o prazo de vendas de 45 dias, em lugar dos habituais
30 dias vigentes no comércio tradicional.
Como as cooperativas de consumo pagavam
habitualmente no prazo faturado, não existiriam maiores problemas. Assim se
passaram alguns anos sob constante vigilância da Cosuel.
Entretanto, verificamos que essas
cooperativas de consumo de funcionários de grandes empresas econômicas (Coop.
dos Bancários e Coop dos Funcionários Públicos), entre outras, passaram a
atrasar os compromissos, pagando juro de mora pelo atraso que chegava a 15 dias.
Assim, compravam e pagavam a 60 dias e venderiam no máximo em teóricos 30 dias,
uma vez que o consumo mensal dos seus associados seria descontado nas folhas de
pagamento das categorias com associados de padrão médio. O fato despertou um
alerta íntimo. Havíamos encontrado algo inexplicável.
Era fácil prever o sucesso dessas cooperativas
de consumo, desde que houvesse um limite técnico e rigoroso para o consumo
mensal de cada associado, baseado no valor nominal do salário de cada um. Sem
limite, desastre previsível.
Em 1966 quando a Cosuel decidiu entrar no
ramo de supermercado para atender seus associados e funcionários, cabia uma
visita às cooperativas de consumo já existentes e que gozavam de alta
consideração por sua organização e eficiência.
Solicitamos uma visita às duas maiores para
formarmos uma ideia de um ramo desconhecido para nós. Convidados, lá nos
apresentamos.
Recebidos com gentilezas, fomos conduzidos
às instalações físicas adequadas e também aos escritórios de contabilidade e
tesouraria. Tudo dentro dos conformes.
Nos foi entregue um balancete atualizado e um
balanço do exercício anterior. Rapidamente avaliamos a sua liquidez financeira,
bastante razoável, mas nos chamou a atenção um imenso ativo realizável a curto
prazo. Inquirimos o contador que nos explicou que aquele montante era o valor
dos débitos de compras de todos os associados e para nossa surpresa, igual à
soma de dois meses de venda. Assim, o prazo médio real de venda seria de 60 dias
e não no mês subsequente como a teoria indicava. Daí o aperto financeiro.
Horrorizados, previmos que isso acabaria mal em pouco tempo.
As diretorias permitiram que
os associados se endividassem progressivamente, sem nenhum critério de
responsabilidade. Certamente contavam com esses votos para se reeleger nos
cargos administrativos. .
Desses devedores, possivelmente a maioria,
mantinha suas contas em dia e para que desse essa média, uma minoria deveria
estar com grandes atrasos e esse débito seria rolado cada mês e jamais seria
ressarcido. Em resumo, a cooperativa estava, na realidade, insolvente e a
situação progrediria até que um dia estourasse.
Não demonstramos
surpresa, agradecemos e fomos à outra cooperativa de consumo. Constatamos
existir situação idêntica e que logo generalizamos a todas as cooperativas de
consumo, nossas maiores clientes. Em caso de quebra generalizada, seríamos os
primeiros a sofrer as consequências. O valor que perderíamos, seria igual à venda
de dois meses para elas. Não teríamos como suportar.
Seria preciso enérgica providência e o
sigilo era absolutamente necessário. Determinamos por escrito a cada unidade de
venda em Porto Alegre, que, sem maiores explicações, suspendessem a venda a
prazo para todas as cooperativas de consumo, alegando ordens superiores.
A ordem causou enorme rebuliço e contestação.
Nos recusamos a explicar. Quebraria o sigilo indispensável. Pedimos que confiassem e que sabíamos o que
estávamos fazendo. Nem ao nosso presidente revelei. Ninguém bota fora, sem
razão, uma clientela que representava mais de um terço das vendas em Porto
Alegre.
As unidades de venda, bem gerenciadas, logo
conquistaram novos clientes e a venda mensal continuou a mesma.
A Cooperativa dos
Suinocultores de Getulio Vargas assumiu o nosso lugar sem a menor consulta a
nós ou aviso. Logo entendemos que ela seria a vítima voluntária e inocente a
ser sacrificada no altar da voracidade do comércio e indústria. Problema dela.
Ignorara que não existe almoço grátis.
Dentro de dois meses, a Cosuel não tinha mais
nenhum haver das cooperativas de consumo.
Era só esperar pelo estouro que
certamente em breve viria.
Pouco tempo depois, numa reunião mensal do
Sindicato das Indústrias de Produtos Suínos do RGS, um colega, diretor de uma
média indústria na região italiana, nos puxou para o lado e perguntou se era
verdade que suspendêramos as vendas para todas as cooperativas de consumo.
Confirmamos e depois perguntou por quê. Nos encaramos e lhe dissemos em dialeto vêneto – Fate furbo –
Faça-te experto ou abra os olhos e nos afastamos. Logo vimos que ele segredava
para outro colega alguma coisa e fazia gestos em nossa direção. Entendemos que
ele estava recomendando para ele também suspender as vendas aos mesmos
clientes.
O estouro estava iminente e logo aconteceu.
Ninguém mais quis vender a prazo para essas cooperativas de consumo. O déficit
financeiro logo apareceu e em seguida cerraram as portas por falta de
mercadorias e crédito.
Prejuízos em larga escala para muitos
fornecedores.
Cooperativas não entram em falência e sim em
liquidação. Dezenas fecharam as portas e não pagaram nenhum credor. Os
patrimônios serviram apenas para pagar os encargos trabalhistas. Ufa, escapamos
por pouco.
Os
associados, por óbvio, não resgataram seus débitos com as cooperativas e ainda
rasparam fiado os saldos do estoque.
Fomos severamente criticados por não alertar
as outras cooperativas de produção, mas o sigilo absoluto era necessário para
que nos salvássemos dum enorme prejuízo. Os diretores da Getúlio Vargas é que
foram imprudentes.
A
cooperativa industrial que nos substituiu junto às cooperativas de consumo teve
o destino previsto.
Ficamos sabendo que essa
cooperativa solicitara auxilio de Aury Luiz Bodanese para que a Aurora a encampasse.
Para tanto e certamente, atribuíram mim as culpas pelo ocorrido. Um traidor do
sistema cooperativo. Daí, concluí, a reação negativa de Aury sobre a minha
pessoa. A Aurora recusou a incorporação.
Minha
responsabilidade era apenas com a Cosuel, que pagava os meus salários. As
demais cooperativas, que abrissem os olhos – fate furbo.
Em
Getúlio Vargas, com os mesmos associados e diretores, havia a Cooperativa
Tritícola, que terminou por absorver a coirmã insolvente e passou a gerenciar a
atividade industrial com seu nome até novo incidente que a seguir relato em
REMINISCÊNCIAS
PROFISSIONAIS - 3
Em 1961, assumimos como Diretor
Superintendente da Cooperativa dos Suinocultores de Encantado Ltda. e
constatamos que a Cosuel já tomara medidas competentes para se atualizar
industrialmente. Construíra um túnel de congelamento de carne suína e
respectiva câmara de estocagem para 70 toneladas. Iniciara a produção, lotara a
câmara e o túnel. Produzira mas não vendera um quilo sequer. Assim a
encontramos.
As vendas da produção industrial da Cosuel
eram todas realizadas por intermédio da União Sul Brasileira de Cooperativas
Ltda., uma cooperativa central à qual a Cosuel era filiada. Ela recebia,
vendia, cobrava, prestava contas e enviava o dinheiro pelo banco. O critério de
pagamento era o da antiguidade do crédito. Justo, mas excessivamente demorado. Criava
problemas no fluxo de caixa e era imprevisível. Os preços obtidos eram
adequados e estavam dentro de valores plenamente aceitáveis.
Como a União não tinha câmaras frias e não
entendia do ramo, não se interessou em intermediar a produção de carne
congelada suína da Cosuel e a produção ficou encalhada. Nenhuma outra medida
foi tomada. Depois de 6 meses congelada, a carne suína perde o valor comercial.
Oxida e ninguém mais a compra.
De imediato, tomamos as
primeiras medidas para iniciar a venda. Conhecíamos uma representação no Rio de
Janeiro, que efetuara as vendas durante os 11 anos em que trabalhamos num
frigorífico de Bom Retiro do Sul. Corretos e competentes. Vendiam por pedidos,
mediante comissão e o faturamento era direto pela Cosuel, que tinha a
possibilidade de descontar a duplicata em bancos, obtendo o dinheiro no dia
seguinte ao embarque. Mudou completamente o fluxo financeiro.
Aos poucos, o mesmo
representante foi autorizado a vender outras mercadorias fabricadas pela Cosuel.
No mínimo serviriam como parâmetro para comparar com as vendas da União.
Igualavam-se nos preços, mas o faturamento direto permitia a obtenção imediata
do dinheiro no banco.
Junto à União,
constantemente reclamávamos da demora e imprevisibilidade do dinheiro. Cada vez
mais mercadorias para o representante e menos para a União. Nunca fomos a uma
Assembleia. A Cosuel sempre foi representada por seu presidente.
Numa Assembleia Geral Ordinária, sem sermos
consultados, nos elegeram por um ano como um dos três membros do Conselho
Fiscal.
No escritório da União, procuramos nos
atualizar nos sistemas, sempre atendidos com frieza - e até mesmo hostilidade.
Começamos fazendo perguntas banais até sermos classificados como ingênuos e
inofensivos. Eles veriam quanto.
Numa oportunidade e na ausência do contador,
pedimos a um funcionário a abertura de um ativo realizável a curto prazo de
valor expressivo. Tínhamos constatado que esse valor era o mesmo do balanço do
ano anterior e no mínimo esse ativo, não seria de “curto prazo”. Na série de
fichas a que tivemos acesso, o último lançamento era de seis anos atrás e dizia
apenas - saldo devedor. Eram mais de 10 fichas, todas em nome de cooperativas
desconhecidas. Fizemos mais algumas perguntas inocentes e nos retiramos.
Ante o Diretor
Administrativo, fizemos uma pergunta em tom casual. Que Cooperativa era aquela
que se chamava ………..…. – Essa cooperativa já fechou as portas há muitos anos
atrás. Conclusão: esse enorme ativo realizável a curto prazo era composto de créditos de cooperativas que
já tinham cerrado suas portas há muito tempo
e simplesmente não valiam mais nada.
O Ativo do balanço tinha o Caixa, o
Imobilizado e o Ativo (ir)realizável. Feito novo exame, constatamos que a
União, simplesmente estava insolvente e irrecuperável.
Não tivemos qualquer
dúvida, como membro do Conselho Fiscal, em aprovar as contas daquele exercício.
O problema era muito anterior ao nosso mandato. Oportunamente, quando os
haveres da Cosuel tivessem sido ressarcidos, ele seria devidamente considerado.
Novamente, o sigilo seria necessário.
Daquele dia em diante e sem
justificativa, não enviamos mais nenhuma mercadoria para ser vendida pela
União. Mantivemos sigilo total. Dentro de três meses a União havia pago todos
os nossos créditos. Tínhamos nos safado mais uma vez de um considerável e
previsível prejuízo.
Na AGO seguinte, no momento
de ser aprovado o balanço, pedimos a palavra e solicitamos a abertura daquele
ativo. Surpresa geral, estupor e correria. Assembleia suspensa e conhecimento
de todos da real situação da União. A Diretoria demitiu-se. Falou-se em eleger
novos diretores. Afastamo-nos para um lado e não participamos das tratativas.
Já sabíamos que a União estava liquidada.
Nos
afastaríamos da Cosuel no fim do mês e me atribuí, antes disso, o dever de
erradicar a União, burocrática e já desnecessária. Não seria preciso eutanásia.
Ela já estava morta no mínimo há seis anos e ninguém vira. Que incompetentes.
Diretores e associados completamente cegos. Não viram em anos o que eu percebera
em apenas um minuto. A erradicação era necessária, pois eu acreditava que com o
meu afastamento a Cosuel viria novamente vender seus produtos através União.
Foi o meu último ato cooperativo e despertei novos rancores.
Na minha opinião, o fechamento da União
não faria nenhuma falta. Cada cooperativa deveria ter o seu próprio marketing e
comandar as vendas segundo seus interesses e necessidades financeiras.
Todas as demais cooperativas
filiadas tiveram que suportar a sua proporção no prejuízo no enceramento das
atividades. Não receberam seus créditos. Muitas entraram em liquidação. A
Cosuel foi a única que nada perdeu.
O abalo foi de tal monta, que nem chegamos a
ser criticados pela manutenção do sigilo até que o momento fosse oportuno.
Foi então que a Tritícola Getulio Vargas, por sua
vez, tornou-se insolvente e sem capital de giro, teve de alugar suas
instalações industriais para a Pamplona Alimentos de Santa Catarina até hoje.
Um grupo de diretores de
cooperativas associadas à União consultou-nos se aceitaríamos presidi-la. Recusamos,
é lógico. Era início de março de 1973 e no dia 31 sairíamos da Cosuel. Dentro
de um mês, em 1º de maio, numa AGO já convocada, assumiríamos como diretor do
Frigorifico Ideal em Serafina Corrêa, onde atuamos durante nove anos.
Nesse ínterim, projetamos, construímos e
ativamos o matadouro de aves e todos os seus departamentos: produção de ovos,
incubatório, galpões automatizados para produção de frangos, caminhões para
distribuição de rações a granel, licenciado para exportação e que há muitos anos
abate 180.00 aves diariamente. Mudou completamente a fisionomia econômica e
social daquele município.
---oooOooo---
Retornando
ao meu diálogo com Milton Lunardi, ele continuou com as pesquisas e a Aurora o
abasteceu com uma ata da COOPERATIVA CENTRAL OESTE CATARINENSE LTDA, datada de 28
de março de 1973, que registra o seguinte relatório:
Sempre que houvesse
alguma dúvida na administração das empresas em que fui diretor, mentalmente, eu
trocava de lugar com o lado contrário para formar uma opinião segura. Foi o que
eu fiz em relação à Aury Luiz Bodanese. Se um colega e amigo confiável me
informasse que o diretor de uma cooperativa coirmã agira de modo destrutivo e
criasse uma cilada em relação à minha empresa e a prejudicasse, eu também agiria
com essa pessoa da mesma forma com que Aury agiu comigo. No caso, o informante
que estava pedindo auxílio deve ter contado a história de maneira envenenada,
eximindo-se de ter agido afoitamente e sem a necessária cautela para o fato de um
dirigente aceitar clientes que a colega rejeitara, sem procurar a razão disso,
foi de uma imprudência abissal. Custou-lhe caro. Para safar a Cosuel, o sigilo
absoluto era necessário. Jamais fiz qualquer sugestão para alguém assumir o
nosso lugar numa operação que, eu antevia, terminaria em desastre. Por isso,
livro Aury Luiz Bodanese de qualquer suspeita de má fé.
A
desgraça se repetiria com o desastre da União. No caso, a Tritícola de Getúlio Vargas
deixaria de receber os valores que tinha a receber dela e, por sua vez, ficaria
ela própria insolvente a ponto de ter de alugar o estabelecimento industrial de
abate de suínos para outra empresa de Santa Catarina, a Pamplona Alimentos, concorrente
da Aurora. Mais uma consequência da má administração da Cooperativa dos
Suinocultores de Getúlio Vargas – a mesma que administrara vários anos a União
das Cooperativas.
Tenho
certeza que Aury agiria da mesma forma que tive de agir para salvar a empresa da
qual eu era funcionário. Creio que o Aury, pela forma de agir, tinha relativa
semelhança com a minha maneira de administrar uma cooperativa.
Num
momento crucial eu fora um elo decisivo na corrente da vida inicial da Aurora e
gostaria que os atuais diretores tenham conhecimento da minha participação. Já
fui muito gratificado pelo sucesso da Cooperativa.
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