quinta-feira, 5 de outubro de 2017

MEUS AMIGOS JUDEUS

MEUS AMIGOS JUDEUS

            Em fevereiro de 1944, na juventude dos meus quinze anos, comecei a trabalhar na ACIL, em Lajeado, na função de “mandalete” (hoje office boy). Alem dos trabalhos de rua (bancos, correio, repartições públicas, pequenas compras e impressão de cópias em mimeógrafo à tinta), fui treinado para, nos finais de quinzena, emitir guias de aquisição de estampilhas na coletoria estadual, relativas ao Imposto de Vendas e Consignações para os contribuintes do fisco estadual - comerciantes e industriais, associados da ACIL. Na guia, constariam o nome e a inscrição de cada um e a descrição da quantidade e valor dos selos, até atingir o valor quinzenal do imposto. Como todos deixavam para pagar no último dia da quinzena, havia acúmulo de trabalho e eu colaboraria com os demais funcionários atrás do balcão.
            Logo de início, Jary Jaeger - o colega que me ensinara - me disse: “Leandro, atenda esta pessoa”; e afastou-se. Perguntei o nome do interlocutor, o qual me respondeu: “Nathan Wechsler”. Escrevi o Natan sem o agá, pedi para ele soletrar seu sobrenome, sua inscrição e ele me ditou os selos que ele precisava, num linguajar com sotaque estrangeiro, terrível de entender. Depois de alguma demora, dei a guia para ele assinar. Conferindo, me disse: “falta o agá no meu prenome”, e tive de começar outra guia. O cidadão estava com pressa e nervoso - e eu meio sem jeito. Conferida a guia, assinou-a e eu lhe disse: “Na próxima vez, traga um papel com seu nome e inscrição e o valor total do imposto, e deixa que eu discrimino os valores dos selos”. Fez um aceno com a mão esquerda e retirou-se. Notei que os meus colegas de balcão estavam se divertindo às minhas custas e davam sorrisos marotos da minha dificuldade como aprendiz. Nathan entendeu perfeitamente que o utilizaram para me passar um trote e deve ter resolvido amparar-me.
            No fim da quinzena seguinte, fiz-lhe um aceno e ele passou-me um papel, com os dados que eu lhe pedira. Fiz a guia, ele conferiu, assinou e afastou-se com um gesto com a mão que interpretei como um até logo. Dali em diante, por opção dele, fui o único a atendê-lo nos próximos três anos e meio que trabalhei na ACIL Meus colegas o chamavam o “amigo do Leandro”. Nunca tive um diálogo com o Nathan. Apenas uma simpatia recíproca.
          Eu queria trabalhar na indústria, pois estava recém formado com o título de “contador” (estudei à noite) e era a área da minha preferência. Pedi demissão e fui trabalhar no escritório do frigorífico de suínos e bovinos de Ritter & Cia., em Lajeado, e nunca mais vi meu amigo Nathan.
            Em 1949 fui emancipado e convidado à ser gerente administrativo do frigorífico Sociedade Bom Retirense de Produtos Suínos Ltda. em Bom Retiro do Sul (dois km além da vila), onde exerci a função durante mais de onze anos. Enquanto solteiro, morei cinco anos dentro da fábrica.
            Em 1956, uma grande enchente ocorreu no rio Taquari. O frigorífico ficava na barranca do rio e acima das águas. Normalizado o nível do rio, os funcionários me informaram que uma pedra de mármore estava, a meio barranco, encravada no meio da vegetação e entulho.  Retirado o mármore, surpreendeu seu tamanho. Media 80 x 180 e com uma polegada de grossura, retificado em três lados. Impecável.
   Tornado público, ninguém se apresentou para reclamá-lo e ficou encostado a uma parede externa dum prédio.          
   Tempos depois, estava sentado em minha mesa de trabalho e ouvi alguém falar. “Com licença, boa tarde”. Aquela voz, sotaque e nariz eram inconfundíveis. Logo perguntei: “Oi Nathan, o que você está fazendo aqui?” Surpreso: “Leandro...”. Deu-me um sorriso, lembrando-se de mim.
   Disse-me que soubera por aí que tínhamos encontrado uma pedra de mármore na barranca do rio e ela talvez fosse dele, perdida quando sua loja de móveis novos e usados no Passo de Estrela foi atingida pela enchente do rio Taquari em 1956. Argumentei que sua loja fica vinte quilômetros rio acima e pedi-lhe que descrevesse a pedra. Sua informação coincidiu com a pedra que tínhamos encontrado na barranca do rio e concluí que era mesmo a dele.
  Eu disse-lhe: “Encoste teu caminhãozinho, porque vou chamar dois operários para colocá-la na carroceria”. Colocada a pedra no veículo, desceu e tirou do bolso uma gorda carteira de dinheiro e perguntou-me: “Quanto paga?” “Não paga nada Nathan, a pedra é sua e pode levá-la”. Notei que seu olhar era de descrença e em seguida de alegria.
 Estava sempre com pressa. Despediu-se e vi a sua mão abanando pela janela do veículo até sumir-se da vista. Nunca mais o vi.
 Em 1961 fui morar em Encantado e assumi o cargo de Diretor do frigorifico da Coop. dos Suinocultores de Encantado Ltda.
Lá também havia uma única família de judeus: Jacob Markus Katz. Eu frequentava o Lyons Clube e o Markus e sua esposa - D. Berta - também.
Um dia, depois de terminada uma reunião, vi que o sobrenome paterno de D. Berta era Wechsel.
- Conheci um Nathan Wechsel em Lajeado. Era seu conhecido?
- Era o meu pai.
Contei as histórias da guia de imposto e a cena da pedra de mármore. Eles desconheciam e rimos bastante dessa descoberta, tantos anos depois.
Markus tinha uma pequena loja de conserto de máquinas de costura e tinha um sítio onde criava suínos. Era sócio da Cooperativa e logo travamos laços de amizade. A suinocultura atravessava, mais uma vez, uma época de dificuldades e os criadores estavam descapitalizados. De vez em quando, de tardezinha ele aparecia para uma conversa.
Certa manhã ele apareceu com a fisionomia alterada e perguntou-me:
- Você viu na TV a guerra entre Israel e os árabes?
- Ví.
- Eu resolvi. Vou emigrar para Israel com minha família.
- Desejo uma boa viagem. Me diga quantos filhos você tem?
- Você sabe que eu tenho seis filhos homens.
- Seis soldados. Muito bom para Israel. Todo o mundo sabe que essas guerras religiosas são cruéis e o número de mortos sempre é muito grande, mas você com seis filhos e com um pouco de sorte, lhe restarão três ou quatro vivos, número suficiente para deixar herdeiros.
Bati pesado.
Nisto tocou o telefone e atendendo fiquei olhando para ele. Seu olhar ficou distante. Chocado, levantou-se e foi embora enquanto eu terminava meu telefonema. Sumiu.
Dias depois, terminada a guerra, apareceu de manhã, sorridente,
Você viu, mais umas vez o David matou o Golias.
Nunca mais falou-se em emigração para a Israel.
Um dia, ele procurou-me, pois decidira criar frangos de corte e contou-me seu problema: Tinha dinheiro só para comprar os 2.000 pintos e necessitava de financiamentos  de rações balanceadas da Cosuel para o prazo de até 90 dias e sem juros. (O frigorífico de aves demorava mais trinta dias para pagar e novo lote já estaria em andamento). Markus foi o pioneiro na criação industrial de frangos na região de Encantado.
O nutricionista da Cosuel era eu mesmo. Fui um dos 14 brasileiros selecionados para usufruir de curso gratuito sobre nutrição animal patrocinado pelo Ministério da Agricultura dos EEUU em 1957. Frequentei o North Carolina Land Grand College em Raleigh durante dois meses. Entendia do assunto, mas nunca testara em escala uma criação de aves para aquilatar a conversão física e econômica de empreendimento. A pequena venda de ração para aves não comportava o custo de um teste adequado.
Fiz uma sugestão: “Vou lhe atender, mas você se compromete a registrar todos os custos decorrentes, assim com o a conversão do alimento em peso vivo, o percentual de mortalidade, conversão econômica e me relatar”. Negócio fechado.
Meticuloso, Markus era o homem adequado a conduzir o teste.
Depois perguntou-me: “e se o lote der prejuízo?” “Conversaremos”.
          Tudo na mais absoluta confiança recíproca.
         Como os resultados foram satisfatórios e a Cosuel continuou financiando o Markus até que em breve sua conta corrente se equilibrou com naturalidade. Tive a confirmação do valor nutritivo da ração da Cosuel, dentro do esperado.
          Em 1972 fui morar em Serafina Corrêa e nunca mais vi o Markus. Soube que D. Berta havia falecido.
           Um dia, em Xangri-Lá, um dos filhos do Markus procurou-me e deu-me um livro com uma série de 51 crônicas saborosas semanais dele na rádio de Encantado: Filósofo de aldeia.
       Mandei para ele um exemplar do meu livro: Os Lampert – Origens, História e Genealogia.
            Markus, aos 95 anos, foi chamado por Jeová e deixou na paisagem de Encantado a sua participação ativa na história da comunidade.

Leandro Lampert
Historiador

Outubro de 2017


lampertele@bol.com.br     -     leandrolampert.blogspot.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário