MEUS AMIGOS JUDEUS
Em
fevereiro de 1944, na juventude dos meus quinze anos, comecei a trabalhar na
ACIL, em Lajeado, na função de “mandalete” (hoje office boy). Alem dos
trabalhos de rua (bancos, correio, repartições públicas, pequenas compras e
impressão de cópias em mimeógrafo à tinta), fui treinado para, nos finais de
quinzena, emitir guias de aquisição de estampilhas na coletoria estadual,
relativas ao Imposto de Vendas e Consignações para os contribuintes do fisco
estadual - comerciantes e industriais, associados da ACIL. Na guia, constariam
o nome e a inscrição de cada um e a descrição da quantidade e valor dos selos,
até atingir o valor quinzenal do imposto. Como todos deixavam para pagar no
último dia da quinzena, havia acúmulo de trabalho e eu colaboraria com os
demais funcionários atrás do balcão.
Logo
de início, Jary Jaeger - o colega que me ensinara - me disse: “Leandro, atenda
esta pessoa”; e afastou-se. Perguntei o nome do interlocutor, o qual me
respondeu: “Nathan Wechsler”. Escrevi o Natan sem o agá, pedi para ele soletrar
seu sobrenome, sua inscrição e ele me ditou os selos que ele precisava, num
linguajar com sotaque estrangeiro, terrível de entender. Depois de alguma demora,
dei a guia para ele assinar. Conferindo, me disse: “falta o agá no meu prenome”,
e tive de começar outra guia. O cidadão estava com pressa e nervoso - e eu meio
sem jeito. Conferida a guia, assinou-a e eu lhe disse: “Na próxima vez, traga
um papel com seu nome e inscrição e o valor total do imposto, e deixa que eu discrimino
os valores dos selos”. Fez um aceno com a mão esquerda e retirou-se. Notei que os
meus colegas de balcão estavam se divertindo às minhas custas e davam sorrisos
marotos da minha dificuldade como aprendiz. Nathan entendeu perfeitamente que o
utilizaram para me passar um trote e deve ter resolvido amparar-me.
No
fim da quinzena seguinte, fiz-lhe um aceno e ele passou-me um papel, com os
dados que eu lhe pedira. Fiz a guia, ele conferiu, assinou e afastou-se com um
gesto com a mão que interpretei como um até logo. Dali em diante, por opção
dele, fui o único a atendê-lo nos próximos três anos e meio que trabalhei na
ACIL Meus colegas o chamavam o “amigo do Leandro”. Nunca tive um diálogo com o
Nathan. Apenas uma simpatia recíproca.
Eu
queria trabalhar na indústria, pois estava recém formado com o título de
“contador” (estudei à noite) e era a área da minha preferência. Pedi demissão e
fui trabalhar no escritório do frigorífico de suínos e bovinos de Ritter &
Cia., em Lajeado, e nunca mais vi meu amigo Nathan.
Em
1949 fui emancipado e convidado à ser gerente administrativo do frigorífico
Sociedade Bom Retirense de Produtos Suínos Ltda. em Bom Retiro do Sul (dois km além
da vila), onde exerci a função durante mais de onze anos. Enquanto solteiro,
morei cinco anos dentro da fábrica.
Em
1956, uma grande enchente ocorreu no rio Taquari. O frigorífico ficava na
barranca do rio e acima das águas. Normalizado o nível do rio, os funcionários
me informaram que uma pedra de mármore estava, a meio barranco, encravada no
meio da vegetação e entulho. Retirado o
mármore, surpreendeu seu tamanho. Media 80 x 180 e com uma polegada de grossura,
retificado em três lados. Impecável.
Tornado público,
ninguém se apresentou para reclamá-lo e ficou encostado a uma parede externa
dum prédio.
Tempos depois, estava sentado em minha mesa de
trabalho e ouvi alguém falar. “Com licença, boa tarde”. Aquela voz, sotaque e
nariz eram inconfundíveis. Logo perguntei: “Oi Nathan, o que você está fazendo
aqui?” Surpreso: “Leandro...”. Deu-me um sorriso, lembrando-se de mim.
Disse-me que soubera
por aí que tínhamos encontrado uma pedra de mármore na barranca do rio e ela
talvez fosse dele, perdida quando sua loja de móveis novos e usados no Passo de
Estrela foi atingida pela enchente do rio Taquari em 1956. Argumentei que sua
loja fica vinte quilômetros rio acima e pedi-lhe que descrevesse a pedra. Sua
informação coincidiu com a pedra que tínhamos encontrado na barranca do rio e
concluí que era mesmo a dele.
Eu disse-lhe: “Encoste
teu caminhãozinho, porque vou chamar dois operários para colocá-la na
carroceria”. Colocada a pedra no veículo, desceu e tirou do bolso uma gorda carteira
de dinheiro e perguntou-me: “Quanto paga?” “Não paga nada Nathan, a pedra é sua
e pode levá-la”. Notei que seu olhar era de descrença e em seguida de alegria.
Estava sempre com
pressa. Despediu-se e vi a sua mão abanando pela janela do veículo até sumir-se
da vista. Nunca mais o vi.
Em 1961 fui morar em
Encantado e assumi o cargo de Diretor do frigorifico da Coop. dos Suinocultores
de Encantado Ltda.
Lá também havia uma
única família de judeus: Jacob Markus Katz. Eu frequentava o Lyons Clube e o
Markus e sua esposa - D. Berta - também.
Um dia, depois de
terminada uma reunião, vi que o sobrenome paterno de D. Berta era Wechsel.
- Conheci um Nathan
Wechsel em Lajeado. Era seu conhecido?
- Era o meu pai.
Contei as histórias
da guia de imposto e a cena da pedra de mármore. Eles desconheciam e rimos
bastante dessa descoberta, tantos anos depois.
Markus tinha uma
pequena loja de conserto de máquinas de costura e tinha um sítio onde criava
suínos. Era sócio da Cooperativa e logo travamos laços de amizade. A
suinocultura atravessava, mais uma vez, uma época de dificuldades e os
criadores estavam descapitalizados. De vez em quando, de tardezinha ele
aparecia para uma conversa.
Certa manhã ele
apareceu com a fisionomia alterada e perguntou-me:
- Você viu na TV a
guerra entre Israel e os árabes?
- Ví.
- Eu resolvi. Vou
emigrar para Israel com minha família.
- Desejo uma boa
viagem. Me diga quantos filhos você tem?
- Você sabe que eu
tenho seis filhos homens.
- Seis soldados. Muito
bom para Israel. Todo o mundo sabe que essas guerras religiosas são cruéis e o
número de mortos sempre é muito grande, mas você com seis filhos e com um pouco
de sorte, lhe restarão três ou quatro vivos, número suficiente para deixar
herdeiros.
Bati pesado.
Nisto tocou o
telefone e atendendo fiquei olhando para ele. Seu olhar ficou distante. Chocado,
levantou-se e foi embora enquanto eu terminava meu telefonema. Sumiu.
Dias depois,
terminada a guerra, apareceu de manhã, sorridente,
Você viu, mais umas
vez o David matou o Golias.
Nunca mais falou-se
em emigração para a Israel.
Um dia, ele
procurou-me, pois decidira criar frangos de corte e contou-me seu problema:
Tinha dinheiro só para comprar os 2.000 pintos e necessitava de
financiamentos de rações balanceadas da
Cosuel para o prazo de até 90 dias e sem juros. (O frigorífico de aves demorava
mais trinta dias para pagar e novo lote já estaria em andamento). Markus foi o
pioneiro na criação industrial de frangos na região de Encantado.
O nutricionista da
Cosuel era eu mesmo. Fui um dos 14 brasileiros selecionados para usufruir de
curso gratuito sobre nutrição animal patrocinado pelo Ministério da Agricultura
dos EEUU em 1957. Frequentei o North Carolina Land Grand College em Raleigh
durante dois meses. Entendia do assunto, mas nunca testara em escala uma
criação de aves para aquilatar a conversão física e econômica de empreendimento.
A pequena venda de ração para aves não comportava o custo de um teste adequado.
Fiz uma sugestão: “Vou
lhe atender, mas você se compromete a registrar todos os custos decorrentes,
assim com o a conversão do alimento em peso vivo, o percentual de mortalidade,
conversão econômica e me relatar”. Negócio fechado.
Meticuloso, Markus
era o homem adequado a conduzir o teste.
Depois perguntou-me: “e
se o lote der prejuízo?” “Conversaremos”.
Tudo na mais absoluta confiança recíproca.
Como
os resultados foram satisfatórios e a Cosuel continuou financiando o Markus até
que em breve sua conta corrente se equilibrou com naturalidade. Tive a
confirmação do valor nutritivo da ração da Cosuel, dentro do esperado.
Em
1972 fui morar em Serafina Corrêa e nunca mais vi o Markus. Soube que D. Berta
havia falecido.
Um
dia, em Xangri-Lá, um dos filhos do Markus procurou-me e deu-me um livro com
uma série de 51 crônicas saborosas semanais dele na rádio de Encantado: Filósofo de aldeia.
Mandei
para ele um exemplar do meu livro: Os
Lampert – Origens, História e Genealogia.
Markus,
aos 95 anos, foi chamado por Jeová e deixou na paisagem de Encantado a sua
participação ativa na história da comunidade.
Leandro Lampert
Historiador
Outubro de 2017
lampertele@bol.com.br - leandrolampert.blogspot.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário