COMPRANDO FEIJÃO NO
OESTE DE SC
Creio
que corria o mês de janeiro do ano de 1957, e na época eu morava em Bom Retiro
do Sul. Já era casado com a Lucy, e meu primogênito tinha um ano de idade. Eu
era gerente administrativo da Sociedade Bom Retirense de Produtos Suínos Ltda.,
que tinha como diretor e principal cotista Octávio Trierweiler (também sócio
titular da firma Trierweiler & Cia. Ltda., de Lajeado, cujo ramo era o comércio
de cereais, navegação fluvial, engenho de arroz, moinho de trigo, transporte
rodoviário de cargas etc.).
Líder empresarial em
Lajeado, Octávio foi meu patrão durante mais de onze anos - penso que aprendi
com ele as artes e ofícios do comércio.
Os
matadouros de suínos estavam sujeitos à safra e entressafra. Excesso de oferta
(preço baixo) e depois carência de animais para abate (preço elevado) ocorriam de
janeiro a abril. Pouco trabalho no frigorífico.
A região do Vale do Taquari produzia a cada ano menos feijão, e seria de bom
alvitre também compra-lo no oeste de Santa Catarina, com farta colheita em
dezembro e janeiro, para exporta-lo diretamente para o Rio de Janeiro via
representante de vendas.
Seu
Octávio escolheu-me para ser o encarregado de ir para SC, escolher uma cidade,
alugar um prédio, registrar o posto de compras na Prefeitura e Coletoria
Estadual, contratar um empregado, morar num hotel, comprar feijão, pagá-lo,
trocar a sacaria e, por fim, embarcar via rodoviária para o Rio de Janeiro. Segundo
ele, tudo muito fácil. Administrar uma empresa é uma técnica, mas o comércio é
uma arte que eu desconhecia. Eu nem sabia os nomes das espécies dos feijões que
eu iria comprar, que dirá afirmar a sua qualidade e mercado. Me deram vários
envelopes com amostras e respectivos
nomes: preto, branco, mouro, enxofre e cavalo claro.
Seu Octávio me deu
uma procuração, lotou um jipe 1954 capota de lona com sacaria vazia nova, duas
agulhas, linha de costurar sacos e um calador. Restava apenas um lugarzinho
apertado para o motorista, sua maleta de roupas e uma grande pasta de couro
lotada com dinheiro vivo para pagar as compras de feijão. Deu-me um mapa do RS
e SC e disse: “Vai”. Fui com o coração apertado. Seu Octávio disse que seria
tudo fácil. Fácil? Só para quem sabe, e eu não sabia.
Comecei a viagem de madrugada em Lajeado com destino à
Mariante, depois Venâncio Aires, Soledade, Carazinho até Iraí onde cruzaria o
rio Uruguai. Depois, Santa Catarina até encontrar uma cidade para sede do posto
de compras de sua firma. Percorreria cerca de 500 quilômetros em estrada de
chão batido e muita poeira.
Na
travessia o barqueiro perguntou-me para onde eu ia. Eu não sabia ainda, mas ia
à procura de feijão. Sugeriu-me Palmitos, que ficaria no meio da produção,
tinha correio e telégrafo - eu já sabia que não existiam bancos na região para
operar com dinheiro, e também não havia telefone.
Já
de noite, cheguei ao hotel em Palmitos, moído, cansado e todo vermelho da
poeira da estrada. Que aventura. Daquelas de contar mais tarde para os netos.
De
manhã falei com o hoteleiro para alugar uma casa. Sugeriu-me alugar um salão de
baile que estava disponível, logo na esquina à esquerda do hotel e duas quadras
abaixo. Aluguei-o por dois meses e aluguei também uma balança com rodas, para
300 Kg. Contratei um empregado local, que entendia de feijão e conhecia colonos
produtores da região. Sondei o mercado e comecei as compras, pagando à vista no
momento da entrega da mercadoria. A firma Trierweiler já era conhecida na
região, e assim que acabou o dinheiro comecei a comprar fiado para pagar em dez
dias, quando receberia novo lote de dinheiro.
Na
região, logo falaram que eu seria um “cobra” no comércio de feijão. Nem
imaginavam que eu era apenas um reles principiante que tinha sido orientado a
“sentir” o clima comercial e agir com independência.
Eu sabia que o comércio de feijão era de alto risco. Permitia ou tirava
resultados.
Eu
estava sempre com a pasta de dinheiro na mão e discretamente armado.
Telegrafei
para Lajeado, pedindo mais dinheiro, e soube que as vendas do “meu” feijão
estavam ocorrendo normalmente. Foi fácil.
A
Lucy foi trabalhar comigo aos 14 anos. Aos 18 nos casamos e com 20 anos tivemos
o primeiro filho. Nas minhas ausências eventuais, ela assumia o comando do
escritório. Em 1958 tornei-me o único gerente da Bom Retirense, assumindo
também a gerência industrial, auxiliado cada vez mais pela Lucy. Ela trabalhou
comigo por 10 anos. Em abril de 1959, a Bom Retirense trocou sua razão social
para Trierweiler & Cia. Ltda.
Seu Octávio mandou uma maleta de dinheiro para
a Lucy em Bom Retiro do Sul para que fosse a Porto Alegre de ônibus, contatasse
por telefone com a filial no cais do porto para completar o dinheiro necessário,
recebesse a passagem da Varig para destino em Iraí e tomasse o avião DC3. Eu a
estaria esperando no aeroporto rudimentar de Iraí. A Lucy jamais tinha viajado
de avião e levaria sua bagagem e uma maleta com dinheiro para me entregar no
desembarque. Projeto de uma imprudência irracional, mas deu tudo certo. Eu
confiava no desembaraço da Lucy.
No
desembarque dela nosso olhos se cruzaram, com um sentimento de recíproco
carinho e confiança. Ficaria alguns dias comigo em Palmitos.
O que eu não sabia era que a região ainda estava sendo desbravada e a
violência campeava. Hotéis e restaurantes precários, com banheiros “lá fora”. Quase
não havia roubo, mas as brigas e assassinatos eram comuns. Muitos aventureiros.
Logo na primeira tarde, a Lucy e eu ouvimos um alarido perto do hotel e fomos
ver o que havia. Uma briga de dois compadres, que depois de umas e outras, estavam
engalfinhados. Um deles mordeu e decepou com os dentes parte da orelha do
outro. Gente fina e sangue à vontade.
Paguei
o feijão que devia e comprei mais um pouco para pagar quando voltasse de
Lajeado, depois de levar de jipe a Lucy para Bom Retiro do Sul. Traria mais
outra mala com dinheiro.
Assim,
entre idas e vindas de jipe, comprei feijão em janeiro e fevereiro, adquirindo experiência
para voltar no ano seguinte. Voltei. Já havia, então, um banco em Palmitos.
Exportei dezenas de cargas de feijão para o Rio de Janeiro. Correspondi às
expectativas esperadas.
Em janeiro do ano
seguinte, reiniciei as compras de feijão em Palmitos, no mesmo local e com o
mesmo empregado, instruindo outro gerente da firma Trierweiler a substituir-me na
segunda quinzena até meados de fevereiro, quando se encerrariam as compras.
Nos
dois verões seguintes, no mesmo jipe, fui incumbido de comprar arroz em casca
dos rizicultores de Taquari, Rio Pardo, Venâncio Aires, General Câmara e
Candelária, indo nos sábados e voltando no dia seguinte. Um atoleiro atrás do outro. Comprei arroz com
casca tipo japonês e blue rose - então, os únicos existentes nas lavouras e
hoje já desaparecidos.
O
gerente da filial de Mariante, meu colega e primo-irmão Loreno Lopes foi o meu
substituto em Palmitos e o parceiro na compra de arroz.
Em
1961 mudei de residência para Encantado e fui nomeado diretor superintendente
da Cosuel, matadouro frigorífico de suínos. Entrei também no ramo de óleos
vegetais, rações balanceadas, supermercado, leite em Arroio do Meio, vinho em
Nova Bréscia e erva mate em Burro Feio, no município de Anta Gorda.
Palmitos
e similares nunca mais. Não se abusa da sorte.
Leandro Lampert
Historiador
Outubro de 2017
lampertele@bol.com.br leandrolampertblogspot.com.br
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