quarta-feira, 25 de outubro de 2017

COMPRANDO FEIJÃO NO OESTE DE SC

            Creio que corria o mês de janeiro do ano de 1957, e na época eu morava em Bom Retiro do Sul. Já era casado com a Lucy, e meu primogênito tinha um ano de idade. Eu era gerente administrativo da Sociedade Bom Retirense de Produtos Suínos Ltda., que tinha como diretor e principal cotista Octávio Trierweiler (também sócio titular da firma Trierweiler & Cia. Ltda., de Lajeado, cujo ramo era o comércio de cereais, navegação fluvial, engenho de arroz, moinho de trigo, transporte rodoviário de cargas etc.).
Líder empresarial em Lajeado, Octávio foi meu patrão durante mais de onze anos - penso que aprendi com ele as artes e ofícios do comércio.
         Os matadouros de suínos estavam sujeitos à safra e entressafra. Excesso de oferta (preço baixo) e depois carência de animais para abate (preço elevado) ocorriam de janeiro a abril. Pouco trabalho no frigorífico.
         A região do Vale do Taquari produzia a cada ano menos feijão, e seria de bom alvitre também compra-lo no oeste de Santa Catarina, com farta colheita em dezembro e janeiro, para exporta-lo diretamente para o Rio de Janeiro via representante de vendas.
         Seu Octávio escolheu-me para ser o encarregado de ir para SC, escolher uma cidade, alugar um prédio, registrar o posto de compras na Prefeitura e Coletoria Estadual, contratar um empregado, morar num hotel, comprar feijão, pagá-lo, trocar a sacaria e, por fim, embarcar via rodoviária para o Rio de Janeiro. Segundo ele, tudo muito fácil. Administrar uma empresa é uma técnica, mas o comércio é uma arte que eu desconhecia. Eu nem sabia os nomes das espécies dos feijões que eu iria comprar, que dirá afirmar a sua qualidade e mercado. Me deram vários envelopes com amostras  e respectivos nomes: preto, branco, mouro, enxofre e cavalo claro.
Seu Octávio me deu uma procuração, lotou um jipe 1954 capota de lona com sacaria vazia nova, duas agulhas, linha de costurar sacos e um calador. Restava apenas um lugarzinho apertado para o motorista, sua maleta de roupas e uma grande pasta de couro lotada com dinheiro vivo para pagar as compras de feijão. Deu-me um mapa do RS e SC e disse: “Vai”. Fui com o coração apertado. Seu Octávio disse que seria tudo fácil. Fácil? Só para quem sabe, e eu não sabia.
Comecei a viagem de madrugada em Lajeado com destino à Mariante, depois Venâncio Aires, Soledade, Carazinho até Iraí onde cruzaria o rio Uruguai. Depois, Santa Catarina até encontrar uma cidade para sede do posto de compras de sua firma. Percorreria cerca de 500 quilômetros em estrada de chão batido e muita poeira.     
            Na travessia o barqueiro perguntou-me para onde eu ia. Eu não sabia ainda, mas ia à procura de feijão. Sugeriu-me Palmitos, que ficaria no meio da produção, tinha correio e telégrafo - eu já sabia que não existiam bancos na região para operar com dinheiro, e também não havia telefone.
            Já de noite, cheguei ao hotel em Palmitos, moído, cansado e todo vermelho da poeira da estrada. Que aventura. Daquelas de contar mais tarde para os netos.
            De manhã falei com o hoteleiro para alugar uma casa. Sugeriu-me alugar um salão de baile que estava disponível, logo na esquina à esquerda do hotel e duas quadras abaixo. Aluguei-o por dois meses e aluguei também uma balança com rodas, para 300 Kg. Contratei um empregado local, que entendia de feijão e conhecia colonos produtores da região. Sondei o mercado e comecei as compras, pagando à vista no momento da entrega da mercadoria. A firma Trierweiler já era conhecida na região, e assim que acabou o dinheiro comecei a comprar fiado para pagar em dez dias, quando receberia novo lote de dinheiro.
          Na região, logo falaram que eu seria um “cobra” no comércio de feijão. Nem imaginavam que eu era apenas um reles principiante que tinha sido orientado a “sentir” o clima comercial e agir com independência.
             Eu sabia que o comércio de feijão era de alto risco. Permitia ou tirava resultados.
             Eu estava sempre com a pasta de dinheiro na mão e discretamente armado.           
            Telegrafei para Lajeado, pedindo mais dinheiro, e soube que as vendas do “meu” feijão estavam ocorrendo normalmente. Foi fácil.
            A Lucy foi trabalhar comigo aos 14 anos. Aos 18 nos casamos e com 20 anos tivemos o primeiro filho. Nas minhas ausências eventuais, ela assumia o comando do escritório. Em 1958 tornei-me o único gerente da Bom Retirense, assumindo também a gerência industrial, auxiliado cada vez mais pela Lucy. Ela trabalhou comigo por 10 anos. Em abril de 1959, a Bom Retirense trocou sua razão social para Trierweiler & Cia. Ltda.
 Seu Octávio mandou uma maleta de dinheiro para a Lucy em Bom Retiro do Sul para que fosse a Porto Alegre de ônibus, contatasse por telefone com a filial no cais do porto para completar o dinheiro necessário, recebesse a passagem da Varig para destino em Iraí e tomasse o avião DC3. Eu a estaria esperando no aeroporto rudimentar de Iraí. A Lucy jamais tinha viajado de avião e levaria sua bagagem e uma maleta com dinheiro para me entregar no desembarque. Projeto de uma imprudência irracional, mas deu tudo certo. Eu confiava no desembaraço da Lucy.
           No desembarque dela nosso olhos se cruzaram, com um sentimento de recíproco carinho e confiança. Ficaria alguns dias comigo em Palmitos.
            O que eu não sabia era que a região ainda estava sendo desbravada e a violência campeava. Hotéis e restaurantes precários, com banheiros “lá fora”. Quase não havia roubo, mas as brigas e assassinatos eram comuns. Muitos aventureiros. Logo na primeira tarde, a Lucy e eu ouvimos um alarido perto do hotel e fomos ver o que havia. Uma briga de dois compadres, que depois de umas e outras, estavam engalfinhados. Um deles mordeu e decepou com os dentes parte da orelha do outro. Gente fina e sangue à vontade.
            Paguei o feijão que devia e comprei mais um pouco para pagar quando voltasse de Lajeado, depois de levar de jipe a Lucy para Bom Retiro do Sul. Traria mais outra mala com dinheiro.
            Assim, entre idas e vindas de jipe, comprei feijão em janeiro e fevereiro, adquirindo experiência para voltar no ano seguinte. Voltei. Já havia, então, um banco em Palmitos. Exportei dezenas de cargas de feijão para o Rio de Janeiro. Correspondi às expectativas esperadas.
Em janeiro do ano seguinte, reiniciei as compras de feijão em Palmitos, no mesmo local e com o mesmo empregado, instruindo outro gerente da firma Trierweiler a substituir-me na segunda quinzena até meados de fevereiro, quando se encerrariam as compras.
            Nos dois verões seguintes, no mesmo jipe, fui incumbido de comprar arroz em casca dos rizicultores de Taquari, Rio Pardo, Venâncio Aires, General Câmara e Candelária, indo nos sábados e voltando no dia seguinte.  Um atoleiro atrás do outro. Comprei arroz com casca tipo japonês e blue rose - então, os únicos existentes nas lavouras e hoje já desaparecidos.
            O gerente da filial de Mariante, meu colega e primo-irmão Loreno Lopes foi o meu substituto em Palmitos e o parceiro na compra de arroz.
       Em 1961 mudei de residência para Encantado e fui nomeado diretor superintendente da Cosuel, matadouro frigorífico de suínos. Entrei também no ramo de óleos vegetais, rações balanceadas, supermercado, leite em Arroio do Meio, vinho em Nova Bréscia e erva mate em Burro Feio, no município de Anta Gorda.
            Palmitos e similares nunca mais. Não se abusa da sorte.

Leandro Lampert
Historiador

Outubro de 2017


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