sábado, 11 de julho de 2020


O TÚNEL DE CONGELAMENTO

            Corria o ano de 1976 e em Serafina Corrêa estávamos em plenos trabalhos de construção do novo matadouro de aves, anexo ao já existente matadouro para 800 suínos por dia e salsicharia.
            Projetava-se uma indústria para abater 144.000 frangos em três turnos diários.
            Aquisição de terrenos, plantas de construção, maquinaria e energia elétrica necessária, água, tratamento dos efluentes por gravidade, galinheiros para o plantel de poedeiras, ampliação da fábrica de rações balanceadas, mutuários para construir os galpões destinados a alojar os pintos, incubatório, transportes, logística, operariado e tudo mais necessário para o estabelecimento de uma nova indústria.
            O Frigorífico Ideal dispunha de equipe administrativa capacitada e capital para ampliar o ramo de atividade.
            Havia um impasse técnico. Na sequência da produção com três turnos diários a sequência lógica das atividades teria momentos de duplicidade quando os carrinhos a entrar no túnel onde as aves seriam congeladas coincidia com a saída dos carrinhos que portavam as aves já congeladas. Problema dos técnicos do fornecedor da maquinaria de frio e sem solução no momento.
            Um dia, um engenheiro da fábrica de equipamentos de frio nos procurou e deu uma informação preocupante: Não viabilizaram solução, mas tinham conhecimento que uma nova indústria em Chapecó (SC) e que estaria ainda em obras mais adiantadas que as nossas, seus dirigentes encontraram a solução e mantinham segredo absoluto.
            Era um desafio e o desafio, para mim, era um convite ao meu envolvimento.
            Não falei nada para ninguém e decidi que no dia seguinte, alta madrugada, iria a Chapecó buscar uma solução.
            Premeditado, pois me apresentaria como um outro indivíduo, viajei de terno, camisa de colarinho e sem gravata.
            Residia na cidade, um vizinho de muitos anos na praia de Xangri-Lá e que era alto funcionário da Secretaria do Oeste, entidade pública estadual em Chapecó, meu amigo leal de muitos anos. Poderia ser um dos caminhos para quebrar o segredo do túnel.
            Relatei ao Milton Lunardi meu objetivo, mas ele foi informando do segredo existente.
Pedi ao Milton: Vamos no teu carro, porquê o meu tem placa de Serafina Corrêa.
            Na viagem, imaginara um possível diálogo que o Milton manteria com o gerente da construção do matadouro. Ele representaria um teatrinho que teria boas possibilidades e o transmiti para o meu amigo. Aceitou participar.
            Fomos ao matadouro em construção e ao apresentar-me ao gerente, interpretou o meu script com propriedade: É o meu amigo Dr. Ricardo Mascarenhas da Rosa, advogado tributarista e trabalha em Porto Alegre numa empresa de auditoria é meu vizinho na praia de Xangri-Lá por mais de quinze anos. Está de passagem por Chapecó, manifestou curiosidade em conhecer um matadouro avícola e eu o trouxe para tentar uma visita rápida, se der. Vou ter de sair agora e deixar meu amigo. Falou para mim: dentro de vinte minutos vou apanhá-lo no portão da fábrica e foi embora.
            O gerente livrara-se de negar a visita ao Milton não viu problemas em permitir que um leigo almofadinha fizesse uma visita rápida.
            Apresentou-me um funcionário que me acompanharia com o máximo de velocidade e deve ter feito recomendação de não explicar nada.
            O cicerone mudo tomou a frente e mostrou-me a recepção das aves, uma enorme sala e logo depois outra ainda maior. Dirigiu-se a uma porta aberta e pela grossura, logo vi que entraríamos no setor de congelamento. Era a antecâmara, logo a seguir e pela parafernália de aparelhos, era o túnel de congelamento e que tinha outra porta de saída e a solução do problema de congestionamento. Outra antecâmara, câmaras de estocagem de congelados e plataforma de embarque do produto pronto.
            Agradeci e me dirigi à saída da fábrica e o Milton logo encostou o carro:
            - E aí, como foi?
            - Bingo!
-Bingo?
- Biiiiingo.
- Me conte.
Relatei a descoberta do que me levara à Chapecó ele logo comentou:
- Um baita problema e uma solução simples. Não dá para acreditar.
Falei: vou voltar hoje ainda para Serafina. Vamos manter segredo para eventualmente não te prejudicar. Não vou ficar em hotel, deixando rastro de minha  presença  em  Chapecó, assim afastando qualquer suspeita do envolvimento do Milton.
Já em Serafina, telefonei ao engenheiro da montagem das instalações de frio e perguntei se poderia me visitar novamente no dia seguinte. Adiantei: tenho novidades.
Relatei a solução, omiti a forma que eu a teria obtido e o autorizei a ser o descobridor, omitindo para sempre o meu nome que poderia ser ligado ao meu do amigo.
Ao saber, teve a mesma reação do Milton.
Nova planta com redistribuição das paredes, logo recebida pelos demais diretores do Ideal sem qualquer comentário sobre a porta dupla no túnel. O fluxo parecia e era natural.
Engenheiros da montadora sugeriram e apresentaram um aperfeiçoamento para a descarga do túnel, que melhoraria significativamente a operacionalidade. Logo aceito.
Inaugurada a fábrica, fomos em busca de importadores, inicialmente os países árabes Um representante religioso, a nosso pedido e antes do início das obras determinara a maneira de abater a ave, que deveria morrer sem sofrimento e com a cabeça voltada para Meca. (ritual islâmico – Halal). Ao mesmo tempo, entramos num grupo exportador para fazer exportações conjuntas.
Os resultados logo apareceram e se consolidaram.
Alguns anos depois, em razão de outros interesses, nos afastamos e fomos residir e trabalhar em Porto Alegre.
O novo diretor e ex gerente administrativo que nos sucedeu, competente, juntamente com a equipe continuaram o que tínhamos iniciado.
Anos depois, o frigorífico de Serafina Corrêa, foi incorporado pela BRF (Brazilian Food). Foi um dos três primeiros frigoríficos de aves a exportar para a China. Dois do Mato Grosso e o de Serafina Corrêa. Com o tempo outros frigoríficos também se credenciaram, abrindo novos horizontes para o comércio exterior do Brasil.
Decorrido meio século, a participação do Milton pode ser tornada pública sem maiores consequências.
Eu havia enviado a ele um rascunho desta crônica, conferiu, não lembrando os detalhes e autorizou sua divulgação, entretanto escreveu: cometemos um pecado venial. Talvez, mas o ardil que utilizamos não trouxe prejuízo para ninguém.
O matadouro, hoje ampliou sua capacidade para 180.000 aves por dia, é o esteio econômico do município, com mais de dois mil funcionários e criador de divisas para o país.

Leandro Lampert

Janeiro de 2020


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