LEANDRO LAMPERT
Historiador
Abril de 2017
S U M Á R I O
FATOS E CRÔNICAS
As barcas do rio Taquari …………………….…..4
As carreteras ……..………………….………....... 5
BR 386 ……………………………………….….…6
Crime bárbaro em Lajeado….............................. 9
Na terra das águas quentes ………… ………...11
O desembarcador……………….….…………. 12
O último veadinho ……………………………..
13
O laçador …..…………………………….…...… 14
O larápio ….……………………………....…….
15
Um holandês em Porto Alegre ………………
17
A nenê ..…………………………………..… . ....
19
A Cooperativa Aurora (SC) e
eu …………….. 20
Reminiscências profissionais 2 ………..…...… 33
Reminiscências profissionais 4 ………..…..…. 35
Reminiscências profissionais 5 ……….………
36
Reminiscências profissionais 6 ………. …… 39
Reminiscências profissionais 7…………...…… 40
Reminiscências profissionais 8
……...………. 41
Reminiscências profissionais 9
………………. 42
Reminiscências profissionais 10 ……………..
44
Reminiscências Profissionais 11 …………….., 46
Reminiscências Profissionais 12 ……………..
47
Reminiscências Profissionais 13 ……………..
49
Sprito de mico …..……………………………... 50
Aero Clube do Alto /taquari (ACAT) .………..... 60
O júri do Dr. Voltaire
……………………….……. 67
Irmão Emílio …………………………….………... 71
Clube Tiro e Caça – Sua história ……… …...… 74
Comprando Feijão em Santa Catarina ……….. 79
Tio Gaspar e tia Carula………………………….. 81
O motorista acidentado …………………………
84
A Barra do Dudulha e um diálogo
bizarro …… 86
Viagem ao passado de
Vila Progresso ……… 87
A canção do imigrante
…………………………. 89
AS BARCAS DO RIO TAQUARI
Impossível escrever sobre o rio Taquari e
seus afluentes, sem mencionar as barcas para atravessá-los.
O rio
Taquari recebe este nome na junção dos pequenos rios Carreiro e das Antas, no
município de Bento Gonçalves, cujas nascentes são nos Campos de Cima da Serra,
já perto do mar. O Taquari, em Triunfo, deságua no rio Jacui. Apesar de mais
caudaloso, o Taquari perde o nome para o Jacui. Seu nome deriva do topônimo
guarani Tibiquari – rio das taquaras. Foi o único meio de transporte para a
colonização do vale até o seu ocaso econômico na década de sessenta. A
construção de uma barragem eclusada em Bom Retiro do Sul já após o colapso do
rio não trouxe de volta a navegação fluvial. .
O rio foi o único meio de transporte entre as
cidades e a capital. Vapores e gasolinas de dupla atividade – passageiros e
cargas. A vida econômica gravitava em torno do porto fluvial e com a decadência
do Taquari, os pontos comerciais migraram para ruas livres das enchentes.
O rio
não era poluído, piscoso e proporcionava no verão, aglomeração de banhistas em
todas as tardes. Em Lajeado, no porto dos “brudas” (corruptela de bruder –
irmão em alemão) perto da ponte atual, remanso propício a natação e no fim da
rua Benjamim Constant, no meio da cachoeira.
Dourados, grumatãs, piavas, cascudos, pintados, lambaris, carás,
traíras, tambicus, jundiás e joaninhas. A fauna fluvial quase desapareceu e não
existem mais pescadores profissionais.
Até 1935 não existiam pontes. A primeira, na
foz do arroio Forqueta, foi inaugurada em 1935 pelo interventor do RS Ernesto
Dornelles. Estive no evento levado por meu pai Mário Lampert, aos seis anos de
idade. Em meados de 1940, foram concluídas as pontes dos arroios Sampaio e
Castelhano, na estrada de Lajeado à Mariante.
Em 1955, o governador Meneguetti inaugurou a ponte sobre o rio em
Mariante. Foi um marco decisivo na vida econômica da região, permitindo rodovia
sem barcas de Lajeado até Poro Alegre. Mais tarde, a BR 386 consolidou a
travessia e reduziu as distâncias para Porto Alegre.
Os rios e arroios eram servidos por “barcas”
para as travessias. Dois cascos paralelos, atravessados por assoalho de madeira
e rampas de acesso e saída, movimentadas por um rebocador acoplado ao lado da
estrutura, levavam os veículos, animais e pessoas ao outro lado do rio,
mediante pagamento. Nos arroios, as barcas não tinham motores. Um cabo de aço,
estendido de lado a lado sobre o arroio era ligado à barca por um par de
correntes com roldanas, na frente e atrás da barca, no lado a montante do rio.
A tração era manual
As
barcas, lotadas nos “passos” de Taquari, Mariante, Bom Retiro, Cruzeiro do Sul,
Estrela, Lajeado, Corvo, Roca Sales, Encantado e Muçum, atravessavam com muita
morosidade o leito do rio, instransponível nas enchentes. Demorava-se no mínimo
meia hora para cada travessia. Em Mariante, a espera por duas horas não era
rara. Encontrava ali o tráfego rodoviário de Soledade, Venâncio Aires e Santa
Cruz do Sul, preferencial para os ônibus de passageiros.
O
transporte de pedestres para o outro lado do rio era efetuado por pequenos
caíques a remo. Entretanto, no Passo de Estrela, do município de Lajeado para a
cidade de Estrela, era realizado por uma lancha apropriada, motorizada e com
tolda. Carregava cerca de trinta passageiros de cada vez, sentados em banco
periférico no barco, de forma cômoda e segura. Seu nome era Cruzador.
A colonização do vale trouxe consigo o
desmatamento desenfreado e a indústria da madeira serrada em tábuas e barrotes.
Pinheiros, madeiras de Lei e comuns eram derrubadas, conduzidas por bois até a
serraria, próximas a um arroio ou rio, serradas, desdobradas e depositadas na
água. Eram amarradas em lotes e estes, quando das cheias do Taquari agrupados
até formar uma “balsa”. Era o único meio de transporte existente. As balsas
tinham um único marinheiro que evitava um possível encalhe nas margens. Tinham
até 30 m de largura e 100 de comprimento e se destinavam a Porto Alegre. Sem
meio de propulsão, seguiam com naturalidade pela corrente do rio, às vezes até
10 ou 12 dias para chegar ao destino. No meio da balsa, uma tosca cabana para o
marinheiro, que continha um leito improvisado e um rústico fogão à lenha. De
longe, já se avistava a fumacinha na chaminé. Os moradores de Lajeado
dirigiam-se ao porto, para assistir e comentar as passagens, às vezes, três ou
quatro quase emendadas.
Crônica
publicada no jornal A HORA DOS VALES de Lajeado. Faz parte de uma série de
vários autores sobre o tema O Rio Taquari, em 30 de abril de 2014.
AS “CARRETERAS’
Corria o ano de 1952 e o esporte da velocidade em automóvel iniciava a
sua presença marcante nos jornais e emissoras de rádio. Duraria até 1971.
Os veículos participantes, automóveis Ford ou Chevrolet, dos anos de
1937, 1939 e 1940, de duas portas, paralamas modificados e com motores
“envenenados”, alcançavam até 200 km por hora. Receberam o nome carinhoso de
“baratinhas de corrida”. Várias competições em todo o estado, algumas com a
presença de argentinos, que denominavam seus veículos de “carreteras”. O nome
também pegou por aqui. Asfalto nas estradas, nem pensar. Era chão batido, ronco
de motor, audácia, destreza e muita poeira.
No Alto Taquari, a prefeitura de Encantado e
a Cia. de Automóveis Guido Cé, organizaram com enorme sucesso, uma competição
automobilística “Força Livre” denominada 1º Circuito do Alto Taquari, que teria
a sua partida na cidade em 5 de outubro de 1952 e ia até Cachoeira do Sul. Na
segunda etapa e no mesmo dia, o retorno até Encantado. Ao todo 472 km.
Entusiasmo e expectativa na região. Tempos somados indicariam o vencedor.
Motoristas amadores sonhavam.
De
três em três minutos um competidor recebia a bandeirada de partida.
Nomes como Breno Fornari, os irmãos Júlio e Catharino Andreatta,
Aristides Bertuol, Diogo Ellwanger, Alcides Pretto, Osvaldo de Oliveira, José
Asmuz, Antonio Burlamachi, Orlando Menegaz e muitos outros se tornaram os novos
heróis no imaginário popular, cada um com seus inúmeros fãs.
Carretera 22
de Diogo Ellwanger
A
Rádio Independente, de Lajeado, iniciava seus primeiros passos em cobertura
externa distante e destacou duas equipes para irradiar: o ponto de partida e
chegada, e uma intermediária no Porto Mallmann, entre o passo de Bom Retiro e
Mariante, onde havia um armazém, porto para exportação de cereais e um posto de
gasolina, com seu respectivo telefone ligado à central de Cruzeiro do Sul.
Voluntário e em face de minhas ligações afetivas com a Rádio
Independente e proximidade, fui o encarregado da organização da segunda.
Convidei Mário Ribeiro para locutor e me encarreguei dos cálculos
necessários para verificar, a posição de cada participante no exato momento da
passagem. Convidei mais, Lindolfo Leonhard, o segundo da esquerda para a
direita e Arnildo Jovino da Silva, à direita da foto (assessores
metereológicos). Todos moradores de Bom Retiro do Sul, e lá nos apresentamos.
Eu era o proprietário e o motorista do carro que aparece na foto. Barata
Ford modelo 1940, conversível e com volante de Ford 1951. Um sonho e um orgulho
para um jovem solteiro como eu.
No capô, o prefixo da Rádio
Independente.
Na passagem de retorno, fui calculando a posição de cada um levando em
conta a primeira etapa.
Após a passagem de Diogo Ellwanger e mais três carros, pude afirmar com
segurança que Diogo levava seis minutos de vantagem sobre o segundo colocado e,
faltando apenas 50 quilômetros, se nada acontecesse, ficaria com a vitória.
Fomos os primeiros a levar a notícia ao público.
Mário mostrou seus dotes de repórter, solicitou por telefone à rádio seu
ingresso no ar e garantiu a vantagem do primeiro lugar sobre o segundo.
Afirmava que, com a presença de um matemático (eu), podia fazer a assertiva com
responsabilidade.
Diogo Ellwanger venceu a corrida e Catharino Andreatta chegou em
segundo, ambos com carros Ford.
Logo após a passagem do último competidor, embarcamos no meu carro e nos
dirigimos a Lajeado, a toda velocidade, de tolda arriada e ligados na rádio
Independente. Ainda encontramos no trajeto os bandeiristas que faziam o sinal
de passagem livre e aplaudidos como se fôssemos competidores.
Estacionamos e nos apresentamos na rádio. Ainda estavam terminando os
cálculos finais relativos à passagem por Lajeado, que confirmaram as nossas
previsões. A Rádio Independente levou aos ouvintes a notícia, antes da chegada
do primeiro participante à Encantado Um furo jornalístico sensacional para a
emissora e inesquecíveis cinco minutos de glória efêmera para as equipes.
Pouco tempo depois, resolvi casar com a Lucy e vendi minha barata para
adquirir os bens necessários para o meu lar.
Crônica publicada no Jornal A HORA, de Lajeado, em 5
de junho de 2014.
BR-386 – PROJETOS E CONSTRUÇÃO
A
enchente de maio de 1941 ferira de morte o Rio Taquari.
Iniciou-se
um tempo de agonia e as lideranças do município começavam a preocupar-se com o
futuro do transporte fluvial. Mais cedo ou mais tarde entraria em colapso, com
reflexos negativos para a vida econômica de Lajeado. Era evidente o declínio
das empresas de navegação. Os barcos ainda navegavam de Lajeado para Porto
Alegre, mas os portos de Santa Tereza (Garibaldi), Muçum, Encantado e Arroio do
Meio foram, um a um, deixando de receber barcos a motor. Em breve chegaria a
vez do porto de Lajeado.
Nova enchente devastadora aconteceu
em 1956, com mais estragos e assoreamento do leito do rio. Tornou-se urgente
uma medida preventiva, que evitasse o colapso da circulação de mercadorias e
pessoas.
Para
comprovar a verdade dos fatos aqui relatados, guardados em nossa memória,
valemo-nos do livro de José Alfredo Schierholt: ”80 anos da ACIL”
Logo após a enchente e diante da catastrófica situação, a ACIL (pg. 70),
sob a presidência de Eugênio Almiro Schmidt, encaminhou memorial ao governador
Ildo Meneghetti, requerendo “uma draga
tipo especial, para remover o entulho acumulado no leito do rio”. A
solicitação, desde o início, já era equivocada, uma vez que o rio já estava
moribundo.
A ACIL, sob a presidência de Arnilo
Broenstrup, em 1957, também fez gestões junto o governador, conforme se lê na
pg. 71.
A
ACIL promoveu uma conferência com Engº Darci Piegas Cordeiro, do DAER, que
apresentou uma a sugestão de fazer nova estrada que, partindo de Tabaí,
atravessasse o Rio Taquari entre Estrela e Cruzeiro do Sul, subindo a serra
pela calha do Arroio Sampaio, deixando Santa Clara e Vila Sério ao norte, até
alcançar Sete Léguas, Boqueirão do Leão e Soledade. Isto desagradou muito às lideranças de
Lajeado. Ficaria fora do eixo rodoviário no transporte geral de mercadorias,
melhorando apenas o acesso à Porto Alegre, via nova ponte.
Ainda na ACIL, sob a gestão de Arno Ritter,
continuaram os estudos em busca de outro caminho para Soledade.
Transcrevemos
a seguir, parágrafo inteiro na pg. 72 do mesmo livro do Schierholt
“Pela primeira vez é mencionada a
rodovia ligando esta cidade à Soledade, na conferência proferida pelo Engº
Darci Piegas Cordeiro, presidente do Conselho Rodoviário do DAER na ACIL,
conforme ata de 28-1-1958. Na reunião seguinte, foi apreciado o memorial ao
governador pleiteando a inclusão de uma ligação entre Lajeado e Soledade no
Plano Rodoviário do Estado. Estava sendo concebida a BR-386. O projeto anterior
pretendia construir esta rodovia por Venâncio Aires e Boqueirão do Leão”.
Este parágrafo dá veracidade ao que escrevemos
mais acima.
Não
apenas a ACIL, mas todas as forças vivas do município, em conjunto, Prefeitura
Municipal com o prefeito Mário Lampert, a Câmara dos Vereadores, sob a
presidência do Dr. Dalton de Bem Stumpf, a ACVAT, a Associação Rural e
lideranças políticas de todos os partidos. Lajeado estava unido em um único
objetivo: colocar o município na corrente de trânsito que passasse pela cidade,
vinda ao noroeste do RS até Porto Alegre.
BR-386 corta a cidade de Lajeado
A
BR 386 foi além de qualquer previsão, por mais otimista que fosse. Lembramos a
participação do Engº civil Kurt Lux, dirigente do DAER em Santa Cruz do Sul ao
qual Lajeado pertencera até ter sua própria unidade. Em 1967 foi diretor Geral
do DAER. Era concunhado de Erni Stahlschmidt, também líder ativo. Estava
seguidamente em Lajeado, em parceria com os tenistas locais. Deu amparo técnico
ao prefeito nos estudos que precederam à reivindicação da nova estrada.
O
município foi favorecido pela sorte e pelo empenho de suas lideranças. Passa
hoje pela estrada, cerca de 30% da produção agrícola do RS.
De
forma alguma poderemos afirmar que o atual traçado foi todo consequente do
memorial ao governador e outras iniciativas paralelas. Mas os lajeadenses
lutaram muito para que assim fosse.
É
desnecessário afirmar que a conclusão da BR 386 foi uma alavanca que tornou
Lajeado um polo rodoviário, com os consequentes benefícios para a população e
progresso material acentuado do município.
O
desenvolvimento de Lajeado, sem dúvida, se deve ao valor, individual e coletivo
dos seus líderes, que despontaram naturalmente entre a população.
Lá
por 1970, eu voava nos pequenos aviões do Aeroclube em Estrela e fazia voos
panorâmicos sobre a beleza da região do Vale do Taquari, eventualmente sobre a
rodovia nova, o rio Forqueta e seu afluente o arroio Forquetinha, as várzeas
laterais e em seguida os morros. O xadrezado das lavouras com cores diferentes,
o arvoredo, homens trabalhando a terra, a fumacinha branca saindo das chaminés
das casas, o gado pastando nos campos, veículos em trânsito, tudo alegrava e
encantava. Não tinha como conter o orgulho.
Um dia, convidei meu pai para um passeio aéreo
sobre a BR-386. Aceitou, mas fez uma sugestão de rota: Iríamos pela estrada
inicialmente projetada, atravessando o Taquari perto de Cruzeiro ao Sul,
alcançaríamos o Arroio Sampaio e iríamos até suas cabeceiras, no rumo de Sete
Léguas, onde encontramos ainda muito mato. Depois, rumo ao norte, até alcançar
a 386 e voltando sobre ela. Assim foi. Um panorama belíssimo e uma emoção
indescritível para ambos. Duraria para sempre.
Foram consultados: Arnilo Broenstrup – ACIL e Leonor Lampert Marques -
Kurt Lux
Publicada
no jornal A Hora dos Vales em 10-12-2013.
CRIME
BÁRBARO EM LAJEADO
O ano velho chegava ao fim em 1909 e
um novo despontava. Lajeado era uma vila pacata e dava os primeiros passos rumo
ao desenvolvimento. Ainda não tinha luz elétrica e cinquenta lampiões em postes
faziam débil tentativa de iluminar as noites. Não havia água encanada, ruas
calçadas, pontes ou estradas. O rio Taquari era básico no transporte fluvial de
pessoas ou cargas. O prefeito eleito, João Batista de Mello, e o Major da
Guarda Nacional Nicolau Petry, delegado de Polícia eram as autoridades locais.
Verbas escassas e quase nenhuma criminalidade. Uma ou outra briga, fruto de um
pileque, no dia seguinte já esquecida.
Os festejos de Natal já haviam
passado. O ano novo deveria ser saudado dentro das tradições habituais, com
parentes e amigos. Os moradores de Lajeado, na grande maioria, eram
descendentes de alemães e mais da metade deles era de confissão luterana.
O hoteleiro Fernando Froelich
convidara Carlos Alberto Schüller, compadre de seu filho Julius e família para
o jantar de réveillon e em conjunto aguardarem o momento da entrada do ano novo.
Seu hotel ficava junto à Praça da Matriz, na esquina da Borges de Medeiros com
a Bento Gonçalves.
Carlos Alberto era Secretário da
Fazenda municipal, pessoa benquista na comunidade e que foi um dos sócios
fundadores do mais que centenário Clube dos Quinze, sociedade e clube de bolão
local, ainda com plena atuação.
Ao chegarem, os convidados se
depararam com a bandeira alemã hasteada num pequeno mastro, à porta da entrada
do hotel, e com o calor da recepção recebida da família dos seus compadres.
Alegria e confraternização geral.
Lá pelas tantas e depois de umas e
outras os dois compadres já embriagados, iniciaram uma discussão que logo foi
se azedando. O motivo, a bandeira alemã no portal do hotel. Carlos Alberto
preferia que a bandeira fosse a brasileira. Os ânimos se exaltaram e chegaram
às vias de fato. Carlos Alberto Schüller, enraivecido e num gesto completamente
imprevisto, saca de um revólver e atira no peito do Julius Froelich, matando-o
à queima roupa – Um médico – Chamem a polícia – e o criminoso, apavorado com o
que cometera, chora convulsivamente abraçado ao corpo do falecido, pedindo
perdão. As famílias, arrasadas. Consternação geral em Lajeado.
O que fazer? Tratou de fugir do local
e desvairado, vagou pelas ruas da vila até lembrar-se que tinha um amigo que certamente
lhe daria o amparo de que necessitava. Seu nome, Leopoldo Lampert, meu avô,
morador das redondezas. Era casado com
Joaquina Ramos Schroeder e tinha dois filhos – Mário e Zaira, de 8 e 7 anos
respectivamente. Altas horas da madrugada acordou-o, relatou o que havia
cometido e pediu abrigo, logo concedido. Meu avô contou-me esta história.
O crime, inominável, seria severamente
punido com longa estadia em cadeia. A solução habitual era a fuga para o
Uruguai, que na época não mantinha convênio de extradição com o Brasil. Avisada
a esposa, tratativas em curso para obter dinheiro para a fuga e estadia no país
vizinho até que se encontrasse atividade econômica que o sustentasse e até que
a família se mudasse para a vila de Rivera, vizinha de Santana do Livramento,
distante cerca de 350 km de Lajeado.
Depois de vários dias, a polícia
desistiu de encontrá-lo. Numa noite, Carlos Alberto e meu avô, a cavalo,
iniciaram a longa viagem para o Uruguai. Viajaram somente à noite até
ultrapassarem Santa Cruz do Sul. Acampavam nos matos. Depois, prosseguiram à
luz do dia. O rio Jacui foi atravessado numa canoa com os arreios e os cavalos,
seguros pelas rédeas, nadando.
Chegados a Rivera, logo encontraram
local de moradia e efetuaram os primeiros gastos com móveis e utensílios que
deixassem a casa alugada habitável, aguardando os demais membros da família que
mais tarde chegariam.
Instalado o fugitivo, meu avô
Leopoldo, sozinho, iniciou a viagem de retorno para Lajeado, trazendo de volta
o outro cavalo. Chegou quase dois meses depois de ter partido com seu
protegido. Não sei se algum dia ainda se encontraram.
A palavra amigo talvez tivesse um
sentido mais amplo do que é utilizado hoje em dia. Não se recusavam favores aos
que dele necessitavam, mesmo nas mais adversas circunstâncias.
Trinta e sete anos depois, em janeiro
de 1948, minha irmã Leonor, e já casada com Carlos Pereira Marques, visitariam
a avó e tios do marido em Dom Pedrito durante as férias de verão. Leonor estava
esperando a chegada de sua primogênita Heloisa Helena.
Eu trabalhava na ACIL, tinha 15 dias
de férias vencidas e fui convidado para ir junto. Só quando sugeriram que eu,
se quisesse, poderia ir sozinho a Livramento e Rivera, concordei em ir. A
aventura de conhecer a região da fronteira sul aos 17 anos, sair do Brasil e
entrar no Uruguai, viajando de ônibus a Santa Cruz do Sul e de lá por trem até
Dom Pedrito era convidativa.
Meu avô Leopoldo, viúvo, morava com
meus pais e netos em Lajeado e informado que eu iria à Livramento, tornou-me
portador de correspondência para Jaime Schüller, despachante aduaneiro em
Livramento, filho de seu amigo que já havia falecido. Partimos.
Ficamos dois dias em Dom Pedrito e
mais cinco na propriedade rural da família, situada perto de uma estação de
trem em Leões. Tomei o trem para Livramento. Procurei o destinatário e
entreguei-lhe a correspondência, recebendo calorosa acolhida da família que
recordou, agradecida, a ajuda recebida e a amizade fraterna entre meu avô e
Carlos Alberto Schüller. Depois de alguns dias retornei portador de
correspondência destinada ao meu avô. Voltei para Lajeado de Maria Fumaça, com
baldeação em Cacequi e até Santa Cruz do Sul. Depois, em ônibus até Lajeado.
Viajei um dia inteiro.
Em 2015, cento e cinco anos depois do
crime, escrevi esta crônica para que uma história verídica se perpetue nos
arquivos e na memória. Uma tragédia humana e um gesto de solidariedade de amigo
num momento de extrema desgraça.
Esta crônica recebeu o primeiro
lugar no concurso literário bienal e aberto da
Academia
Literária do Vale do Taquari em 2015, na categoria Crônicas Históricas entre
mais de 500 competidores e fez parte do livro editado pela ALIVAT.
NA TERRA
DAS ÁGUAS QUENTES
Uma vez, no Gravatal, dois
cavaleiros andantes estavam postados em uma encruzilhada, cumprindo sua missão
de ajudar pessoas desamparadas, crianças perdidas, idosos desprotegidos,
vítimas de malfeitores, damas desacompanhadas e libertar virgens raptadas por
homens libidinosos.
Não se conheciam
anteriormente, mas logo descobriram que tinham algo em comum: Não tinham
paciência de acompanhar as respectivas esposas em compras no mercado de roupas
do vilarejo Fizeram contato entre si.
No bulício da aldeia,
tinham visão privilegiada do que se passava nos arredores e estavam atentos
para intervir em qualquer momento de perigo, mesmo arriscando as próprias
vidas.
De repente surge, descendo
a montanha, uma donzela, nem tão jovem nem tão bela, claudicando fortemente da
perna esquerda com visíveis sinais de aflição e cansaço. Num pequeno alforje
levado a tiracolo, certamente estariam seus documentos e sua pecúnia. Segurava
na mão uma enorme sacola com compras.
Proporcionou uma cena burlesca e verdadeira.
Dirigiu-se ao mais jovem
dos cavalheiros e clamou por ajuda. Estivera em compras na feira local e
perdera o rumo do Hotel Internacional onde se achava hospedada. Seria possível
ajudá-la ?.
- Sim, preciosa dama, meu
nome é Ataíde. E em largos gestos apontou para a frente e disse: siga pela
senda, na direção norte, mais duzentos metros e chegará à portaria da
estalagem, no meio de um bosque florido.
- Tenho ainda outro
problema. Onde arranjar uma condução para me levar até o albergue?
Do outro lado de uma praça
circular, estava postada uma graciosa carruagem cor de abóbora com faixas
amarelas, puxada por um manso cavalo pangaré.
O cocheiro, alertado pelo movimento, e mesmo não ouvindo, entendeu que
teria de intervir. Era a sua primeira
oportunidade do dia de ganhar umas moedas para guardar em sua algibeira.
Com um grito e um vigoroso
aceno, foi chamado e trouxe sua carruagem até à beira da calçada.
Ataíde, galanteador,
ofereceu seu braço à dama, para ampará-la no degrau. Ela sentou-se no banco dos
passageiros. Agradeceu comovida.
Ainda mais uma coisa,
disse. Poderiam me arranjar um marido?
- De momento estamos em
falta de candidato, mas temos boas notícias, minutos atrás, vários mancebos
dirigiram-se para a mesma hospedaria e ainda deverão estar por lá.
Com um sorriso açucarado e
um olhar esperançoso, partiu sem olhar para trás.
Seu nome? Talvez Dulcinéia.
Talvez não.
O outro cavalheiro (eu), omisso até o momento,
ainda gritou-lhe: É preciso ter fé. Não mereceu sequer um aceno.
Lá se foram, levantando
poeira, até desaparecerem na primeira curva.
No dia seguinte, um deles
(Ataíde) seguiria para a terra das águas frias, Porto Alegre, onde residia.
Encerraria sua vida de cavaleiro andante.
O outro, ainda
permaneceria alguns dias na estalagem Termas Hotel, atuando
sozinho na defesa dos fracos contra os fortes.
A dama nunca mais foi
vista. Deve ter encontrado a felicidade.
O DESEMBARCADOR
Lajeado, como outras localidades às
margens do rio Taquari, era uma cidade eminentemente fluvial. Tudo girava em
torno do cais do porto. Transporte de pessoas e cargas entre Muçum e uma dezena
de portos intermediários até Triunfo e depois Porto Alegre.
Empresas de comércio de cereais por
atacado, reuniam e beneficiavam os produtos agrícolas vindos do interior do
município, a maioria em lombo de mulas que formavam filas de até vinte animais
encordoados, precedidos por um menino montado no primeiro, que tinha um
cincerro pendurado no pescoço com badalar monótono sincronizado com o passo do
animal.
Indústrias também tinham seu
estabelecimento à beira do rio, com depósitos, machambombas e trapiches de
atracamento de barcos de carga particulares.
Toda
a população tinha conhecimento dos dias e horários de partida e chegada de
barcos, uns diurnos e outros noturnos. Todos sabiam distinguir um vapor duma
lancha-motor, gasolina ou chata.
A gíria profissional praticada no
porto era conhecida de todos, entre elas o embarcador, responsável pela
colocação das mercadorias à bordo, de maneira que a carga ficasse equilibrada
favorecendo as manobras da viagem e atracamento. A descarga era praticada na
forma inversa do carregamento e não necessitava de comando. O que se carregara
por último, era descarregado por primeiro.
Um belo dia, no Ginásio São José, no
recreio, um menino informava aos demais que no dia de domingo, na semana da
pátria, entre o dia 1º e o 7 setembro de 1939 ou 1940, um DESEMBARCADOR, faria
uma palestra para os alunos de todas as escolas, em frente à Prefeitura, sobre
o tema da Independência do Brasil.
Os desfiles patrióticos dos alunos
ocorriam no dia 5, dia da Mocidade Brasileira e no dia 7, dia da Independência,
com grande garbo, fardados e com bandas marciais. Autoridades presentes, assim
como grande número de espectadores.
Era comum, alguns descendentes de
germânicos, trocarem o “g” pela fonética do “c”, o “b” pelo “p”, o “d” pelo “t”
e outros mais. Todos entenderam que seria um graúdo da administração do cais do
porto de Porto Alegre. Que venha o homem.
Na
hora do almoço contei a notícia ao meu pai. Menino, não é desembarcador e sim
um desembargador, juiz de direito de nível superior e se chama Dr. Solon
Macedônia Soares, de Porto Alegre, de alto conceito no meio jurídico.
Viria para Lajeado de “noturno” e
chegaria de manhã bem cedo à cidade. O evento foi marcado para as dez horas da
manhã de domingo. Todos em frente da Prefeitura.
Como sempre, antes do horário
previsto, os alunos, em pé, já estavam em forma no lugar a eles designado,
separando cada unidade educacional.
Um pequeno coreto, uma mesa e uma
cadeira estavam reservados para o convidado.
Era um dia de primavera antecipada
com sol radiante e inclemente.
Já passava das 11:00 e alguém trouxe
à mesa uma jarra com água e um copo.
Tímidas palmas irônicas saudaram o funcionário da Prefeitura. Agora vai.
Telefonema
de Estrela avisava que o barco havia tido pane na viagem e que o Dr. Solon
estava tomando um auto de praça para ir à Lajeado.
Chegado às 11:30, Dr. Solon tirou de
uma pasta um gordo calhamaço de papel. Ouviu-se um gemido surdo na plateia e
começou a sua palestra. O evento seria demorado.
Iniciou com as naus de Cabral
partindo de Lisboa para o descobrimento do Brasil. Quando relatou a chegada ao
Brasil da família real portuguesa, fugindo do flagelo napoleônico, uma das
meninas presentes desmaiou. Descrevendo a partida da nobreza de volta para
Portugal, uma segunda menina desmaiou e o palestrante compreendeu a situação
inusitada existente, fechou a obra que relatava, com um pequeno preparo
improvisado encerrou o tema e num gesto imitativo sacou uma espada inexistente
e bradou Independência ou Morte. Palmas e debandada apressada geral. Já passava
muito do meio dia.
Causador e vítima involuntária, Dr.
Solon deixou o fato na minha memória, a recordação saliente do seu nome e a
presença em Lajeado do renomado desembargador que, por este pequeno incidente,
serviu para ser lembrado com respeito e consideração.
Crônica
publicada integralmente pelo jornal A HORA, de Lajeado, em 10-7-2016
O ÚLTIMO VEADINHO
Reinholdo Scherer, forte comerciante em Forquetinha chegou nervoso no
escritório do meu pai em Lajeado. Já estivera duas vezes na Delegacia de
Polícia e duas vezes com o prefeito e não obtivera qualquer solução.
Surgira
na vizinhança um animal que destruía todas as hortas dos colonos. Provocara
pânico até que foi visto e identificado como um veado, inofensivo porém
daninho, que precisava ser removido ou morto. Alfaces, couves, ervilhas, nabos,
beterrabas e demais legumes, eram comidos ou danificados numa noite. De hábitos
de alimentação noturna, raramente era visto e, sempre matreiro, fugia à menor
aproximação de pessoas ou cachorros. Era um inferno na vida da colônia e era o
tema de todas as conversas. Escondia-se de dia em dois pequenos matos à beira
de um arroio
Soubera “por aí” que meu pai, Mário Lampert, era parceiro de um grupo
que, eventualmente, era chamado para interferir com sucesso em casos idênticos.
Seus parceiros eram Antônio Agostini e Humberto Gasparotto, moradores da vila
de Canudos, que tinham matilha de cães apropriados para a caça de pelo. A caça
aos veados, na época, era permitida por lei.
Confirmada a notícia, meu pai marcou a visita para o segundo domingo
posterior. Por razões de segurança, os cachorros seriam conduzidos e soltos bem
na hora da missa ou culto luterano. Avisou os parceiros, que confirmaram.
No dia
marcado lá estavam os cães, acolherados dois a dois, os caçadores e mais o
Reinholdo que portava uma espingarda. Sabia onde o veado, na fuga, deveria
passar. Ficou à espreita, escondido. Os demais se espalharam em outras
“esperas”. Soltos os cachorros, logo
encontraram o rastro do veado e o acossaram. Descoberto, o veado fugiu
perseguido de perto pelos cães. Logo em seguida um tiro. Algazarra dos cães e
em seguida o silêncio. Logo compreendemos que o veado estava morto. Reinholdo
acertou-o em cheio.
Pendurado em uma vara, foi trazido até a casa onde estávamos. Foi
admirado e promoveu comentários generalizados e curiosidade entre os colonos
que estavam começando a chegar, logo depois dos cultos religiosos.
O pai
sugeriu pose para a posteridade e fotografou. Ao lado esquerdo, portando a
espingarda do Reinholdo, meu irmão Luciano. À direita, eu com a espingarda do
pai. Em segundo plano o motorista do auto de praça de nome Albano e atrás de
mim o Reinholdo segurando a vara com o veado pendurado. Mais ao lado direito,
um colono em roupa domingueira e no fundo o dono da residência onde estávamos.
O veado era da variedade “virá”. Outro, na mesma região denominado “pororó ou
póca, era bem menor.
No
ato da foto, vários espectadores comentavam e examinavam o “feado”. Um deles, perguntou ao meu pai se era verdade
que um dos seus filhos matara o bicho. O pai riu-se e também o Reinholdo que
estava ao seu lado. Pronto, logo o boato espalhou-se para surpresa e admiração
de todos. Que “currís” danados. Era o ano de 1939 e eu tinha dez anos.
Tive
meus quinze minutos de efêmera glória, nem que fosse só de mentirinha.
Como
bom germânico, Reinholdo perguntou quanto custava o “serviço”. Nada, e pode
ficar com o couro e a carne. Agradeceu e disse que vários moradores das
cercanias, prejudicados pelo veado, desejavam comprar um pouco da carne, numa
espécie de ritual primitivo de compensação dos prejuízos. Dê a eles a carne,
disse meu pai. Ao meio dia já estávamos de volta a Lajeado.
Guardei a caçada na memória e encontrei a foto no baú da história.
Crônica
publicada no jornal A Hora dos Vales, de Lajeado em maio de 2014.
O L A Ç A D O R
Creio
que o ano era 1939. Meu avô dera para mim e meu irmão Luciano, uma petiça para
que o acompanhássemos, todos os sábados depois do meio dia no seu habitual
passeio a cavalo até sua propriedade rural em São Miguel, no distrito de
Cruzeiro do Sul, cerca de 14 km de Lajeado. Em cada viagem, meu irmão Luciano e
eu nos alternávamos como companheiros de viagem.
Na viagem,
passaríamos em Cruzeiro do Sul, onde morava a tia Zaira Lopes. Entre os guris dela, o Gabí, o Marino
e o Ciro, um pouco mais velhos do que eu, iam junto, alternando-se um de cada
vez. Voltaríamos domingo à tarde.
Já
imaginaram a felicidade do vô Leopoldo, ao lado de dois dos seus netos, a
cavalo todos os fins de semana?
No pátio da
nossa casa, havia duas estrebarias e a petiça, em regra, ficava em potreiro
alugado e cerca de 100 m distante, de propriedade da firma Hexsel, onde, íamos
buscá-la toda vez que quiséssemos cavalgá-la. O local hoje é ocupado pelo
Parque Dick.
Numa
oportunidade, ao abrir a cancela e entrar no potreiro, fui avisado pelo zelador
da área que havia uma vaca braba no potreiro e que atacava as pessoas a pé.
Levou-me até sua casa para aguardar a chegada de um tropeiro que havia sido
chamado e marcara hora paras laçar o animal e prende-lo.
Dito bovino
fugitivo e de pelo brasino, magro e de chifres enormes, pulava qualquer cerca e
era a aflição dos agricultores vizinhos com os prejuízos e risco de agressão
pelo animal.
Como já
estava na hora dele chegar, fiquei esperando juntamente com os guris do
zelador, na segurança do pátio da casa.
Logo vimos
a porteira ser aberta por um homem com vestimenta característica de gaúcho,
bombachas, botas, lenço branco no pescoço, chapéu de aba larga com barbicacho e
cavalo bem encilhado.
Desapresilhou
o laço, armou-o e se dirigiu a passos em direção à vaca, que estava cerca de 60
m distante e atenta à sua chegada. A vaca logo o percebeu e disparou em direção
a uma cerca de uma plantação de milho. Atropelou o cavalo e com o vento, seu
chapéu saiu da cabeça e ficou preso pelo barbicacho. Seus cabelos eram longos e
loiros. Em ângulo de V se aproximaram um do outro.
Instantes
antes da vaca pular, o tropeiro atirou o laço certeiro e prendeu o animal pelos
chifres. Parou o cavalo e quando o laço esticou, a vaca deu uma cambalhota e
ficou caída junto à cerca. O tropeiro pulou do cavalo e correndo, torceu a
cabeça para que o animal não se levantasse até que o zelador trouxesse um sovéu
para amarrá-lo em uma árvore para que seu dono viesse buscá-lo.
Quando
cheguei perto, junto com os guris, meus parceiros de caça de pintassilgos com
gaiola, reconheci o tropeiro. Era Paulo Oppliger, sete ou oito anos mais velho
do que eu. Seu pai, homônimo, austríaco de nascimento, tinha um moinho e
matadouro de bovinos na beira do arroio do Engenho, logo além da sede do Clube
Tiro e Caça. Já se adaptara, perfeitamente, aos usos e costumes gaúchos.
A cena
surpreendente, de uma beleza impar e com final glorioso, para mim, foi
inesquecível.
O zelador
já sabia o preço que seria cobrado, deu-lhe uma cédula de cinco mil réis e eu
logo traduzi aquele valor. Daria para comprar 25 picolés no bar do Rico
Chiarelli. Que beleza.
O L A R À
P I O
Lajeado,
nos anos 1940/41, era uma cidade pacata, que desconhecia o que eram assalto,
roubos ou furtos banais. Em nossa residência, jamais se fechava à chave a porta
dos fundos à noite. Não havia nenhum perigo. As ocorrências policiais eram
brigas de bêbados e nada mais.
Uma tarde,
estávamos na área aberta na frente de nossa casa na rua Cel. Francisco Karnal,
meus pais e meus irmãos, quando chegou a irmã de minha mãe, Dolores Reckziegel,
(tia Dola) oficial do Cartório de Registro Civil e contou, indignada, o que lhe
acontecera pela manhã.
Ao se
levantar, deparara com um jovem, aparentando vinte anos, afrodescendente, no
interior do seu pátio que arrecadava a roupa que ficara toda a noite no varal
externo. Lençóis, fronhas e roupas. Gritou para ele. Não se assustando, saiu do
pátio e em passos largos afastou-se em direção ao potreiro dos Hexsel, hoje
Parque Dick. Sumiu-se.
De repente,
olhando para a rua disse para meu pai. É aquele ali que está passando no outro
lado da calçada, de botas pretas e meio gordinho.
Meu pai
chamou-o, atravessou a rua e deu-lhe voz de prisão. Teje preso. Agarrou-o pelo
braço e o conduziu subindo os degraus da área. Pediu, não lembro para quem, que
fosse na casa de tia Fina Heineck e pelo telefone, chamar para a policia mandar
um soldado para levar o preso.
O alarido
da tia Dola, fez vizinhos acorrer para se inteirarem da novidade.
Nesse
ínterim, interpelado pela tia Dola, o preso estava silencioso e não manifestou
qualquer reação. Descalçou calmamente as botas e as encostou numa parede.
De repente,
em dois pulos desceu as escadas e disparou rua afora à direita da casa. Meu pai
fez o mesmo, eu logo o segui e meu irmão Luciano também. Fizemos uma fila de
quatro em desabalada carreira. Na esquina, o safado dobrou à esquerda e no
final da quadra novamente à direita.
Passamos em
frente à casa do Érico Jaeschke, que estava no jardim, juntamente com sua
esposa e a filha Miriam, assombrados com o que viam. Uma pessoa em fuga, um
advogado e seus dois filhos correndo atrás em plena tardinha. Patético.
Sentindo
que logo seria alcançado, saiu da rua e entrou no lado direito, onde havia uma
plantação de eucaliptos, recém arrancados. Dias atrás chovera bastante e
alagara a área onde anos mais tarde se criaria o Parque Esportivo Mário
Lampert. Não percebendo o perigo deu um passo e atolou uma perna. Tentando
voltar, encontrou meu pai chegando que aproveitou o embalo e lhe deu violento
murro no peito. Assustado, não tentou qualquer reação. Meu pai, com a mão
direita agarrou-o pela gola do casaco e eu segurei-o pela manga do casaco no
braço direito e Luciano atrás.
Fizemos o
caminho de volta e passamos novamente na casa do Érico, que à esta altura
estava, com a família, na calçada da rua, tentando compreender o que estava
acontecendo.
Chegados,
vitoriosos com o cativo, já encontramos um público maior na frente da nossa
casa e a tia Dola mais uma vez contando que fora furtada. Inacreditável.
Logo chegou
um policial que levou o meliante “por diante”, conforme costume local.
Dispersada
a plateia, ficamos na área e minha mãe, vendo as botas sem dono, perguntou:
Dolinha. Estas não são as botas do Arthur (seu marido). Eram. Lajeado dava os
primeiros passos em direção ao desenvolvimento e progresso. Já tinha até
ladrão.
Na
Delegacia, devem ter lhe dado alguns “conselhos”, tanto que nunca mais foi
visto na vila.
UM HOLANDÊS EM PORTO
ALEGRE E O TAXISTA
Os imigrantes que iam partir da Alemanha
para o Brasil, antes de embarcar, deveriam assinar um “termo de renúncia” da
cidadania germânica, para que nunca mais pudessem retornar e recebiam um “carta
de saída” para toda a família, que seria entregue na chegada.
Consegui uma cópia da família Lampert e
vi que faltava um imigrante. Partiram da Alemanha, Johann Jacob Lampert
(1784-1842), sua esposa e oito filhos, num total de dez pessoas. Desembarcaram
somente oito. Uma filha, Margareth Lampert, de três anos de idade, falecera na
travessia marítima. Continuava faltando um. Eu não deixaria o caso assim e
tratei de ver o que teria acontecido.
Consegui o endereço postal da paróquia
luterana de Niedereisenbach am Glan (hoje Glanbrücken), na região do Hunscrich,
Palatinado Renano e fiz, em inglês, uma consulta. Esta carta caiu nas mãos do
historiador local Hans-Georg Leppla, que já tinha correspondência com
solicitação igual enviada por Robert Donald Lambert, de Rotterdam, na Holanda,
descendente de Johann Jacob Lambert (1784) e seu filho homônimo Johann Jacob
Lambert. Leppla nos comunicou o fato e informou aos dois solicitantes os
respectivos endereços postais.
Trocamos correspondências em inglês e
constatamos que Johann Jacob Lambert (1804) (o filho), desistira de ir para o
Brasil e informara ao seu pai que iria para os Estados Unidos. Ficara sem
documentos.
Posteriormente, decidiu permanecer na
Holanda e tornar-se marinheiro e recebeu o apelido em holandês, que vertido ao
inglês, seria “walking feet”, na prática, um trotamundos. Aventureiro,
envolveu-se nas guerras de independência da Indonésia. Foi condecorado por
bravura e faleceu na ilha de Java em 1855. Deixou descendentes na Holanda,
entre eles o nosso parente Robert Donald.
Assim, finalmente encontramos o
descendente do parente desaparecido e separado da família brasileira por mais
de um século e meio.
Em maio de 1997, Robert Donald Lambert,
arquiteto urbanista, decidiu vir ao Brasil, visitar Brasília e nos informou.
Imediatamente o convidamos para vir ao Rio Grande do Sul e hospedar-se em nosso
apartamento. Convite aceito.
O levamos para conhecer vários municípios
de colonização italiana e alemã. Região dos vinhedos, do Alto Taquari, de
Gramado e arredores do Guaíba. Churrascos, galetos, cafés coloniais e outras
amostras da culinária gaúcha. Nunca viu tanta fartura. Fotografou todas as
churrasqueiras para não passar por mentiroso em suas volta a Rotterdam.
Um dia, manifestou o desejo de conhecer a
downtown – centro de Porto Alegre. Iríamos de taxi e ao chegar à calçada, vi
que um taxi se aproximava. Fiz o sinal e ele nos atendeu.
Entramos no veículo, eu ao lado do
motorista e minha filha Luciana, com um inglês um pouco melhor do que meu, ao
lado do Donald.
Seguimos em direção ao Mercado Público e
a Luciana mostrando a cidade ao convidado, que fazia perguntas em inglês. Notei
que o motorista do taxi estava inquieto, mexeu no espelho retrovisor e toda a
hora olhava para o Donald.
De repente, o motorista, falando em
holandês, inquiriu o passageiro. Pelo sotaque, concluíra que deveria ser um
holandês. Provavelmente era o único taxista de Porto Alegre que falava essa
língua. Inacreditável coincidência. Foram conversando animadamente até o fim da
corrida. Nós quatro nos divertimos um bocado com a situação.
Desembarcamos no mercado, cuja estrutura
encantou o Donald, assim como seu interior, cheiros, mercadorias e povo.
No café da manhã tinha comido goiabada,
desconhecida para ele. Adorou. Explicamos a origem. Logo comprou uma goiaba e
provou.
Caminhando pela feira, encontrou uma
banca que vendia cuias e bombas. Adquiriu os apetrechos e disse que queria
aprender fazer chimarrão. A Lucy providenciaria. Levaria para a Holanda como
suvenir.
No domingo seguinte, em Dois irmãos seria
realizada mais uma festa anual da família Lampert e o levamos para participar.
Lá chegados, Donald ouviu alguns participantes falando alemão e logo, para
surpresas de todos, entrou na conversa.
Donald falava fluentemente o alemão, o
francês e o inglês e logo todos se acercavam para uma conversa.
Estava presente uma professora, esposa de
um Lampert que logo o provocou falando francês, deixando os ouvintes mais
surpresos ainda. Donald fez sucesso. Jamais imaginou que encontraria no Rio
Grande do Sul, danças, canções, músicas e costumes há muito tempo em desuso na
Alemanha e ainda vivos por aqui.
Donald – De camisa branca ao meu lado.
Regressando à Rotterdam, Donald escreveu
agradecendo e ainda fazendo gozação sobre sua viagem ao Brasil. Relatou ao
amigos que não vira nenhum índio pelado, nem cobra, nem onça e muito menos
jacarés. Gostara muito dos gaúchos, pois lá os taxistas falavam holandês, as
professoras, francês e os demais, alemão.
Donald era o último Lambert na Holanda e
tinha só duas filhas. Anos mais tarde, informou-me que havia se divorciado e
contraído novo casamento. O casal teve um filho varão, que, possivelmente dará
continuidade à linhagem Lambert em seu país.
Nunca mais voltou ao Brasil.
Tempos depois, lembrei-me do chimarrão
(levara um quilo de erva mate junto) e perguntei a ele, já por email, como fora
a experiência. It was horrible. Não precisa de tradução.
A
NENÊ
Acordei da sesta e fui ler. A Lucy permaneceu
na cama. Um pouco mais tarde, com os olhos marejados perguntou-me – Adivinha do
que eu estava me recordando. – Te lembras, ainda em Bom Retiro do Sul, quando
estávamos num baile do CTG, uma mulher apareceu com um filhinho no colo ……. –
Lembro, e passamos a reconstituir o episódio ocorrido em 1960.
No recém
construído salão de festas do CTG “Querência da Amizade”, participávamos de um
baile tradicionalista. Todo o mundo vestido a caráter e alegria generalizada.
Participávamos ativamente.
Lá pelas
tantas, vimos um movimento incomum na porta de entrada e fomos ver o que estava
acontecendo. No lado de fora, uma mulher jovem, roupas modestas, com um
filhinho no colo e seu marido ao lado, em pânico e chorando convulsivamente.
Nos contou que seu nenê estava muito doente e se digira ao hospital da vila.
Fora informada pela plantonista que o médico estava viajando e, vendo o bebê,
aconselhou que fossem até o hospital de Estrela procurar um médico. Precisava
de ajuda. Comovido, olhei para a Lucy e li nos olhos dela a palavra “vamos”.
Nos oferecemos para levá-los. Estavam numa charrete e se transladaram para o
nosso carro. Partimos. Em seguida, num gesto de pedido de apoio, passou a nenê
para o colo da Lucy. Precisava de uma fada que, num milagre, lhe salvasse a
vida da filha.
Meia hora
depois, chegamos ao hospital de Estrela. A recepcionista encaminhou a Lucy e o
bebê para uma sala, fez uma análise rápida e disse: O médico não está, mas vou
chamá-lo. Em dez ou quinze minutos estará aqui.
Após o
telefonema, já surgiu com uma seringa e deu uma injeção na criança ainda no
colo da Lucy, certamente por determinação do médico. O caso era urgente.
Após alguns
minutos, a Lucy sentiu um estremecimento da nenê e um amolecimento no corpo.
Disse que achava que a nenê tinha falecido, logo confirmado pela enfermeira. Em
seguida chegou o médico que reconfirmou o óbito.
Explicamos
ao médico nossa participação na presença daquele casal e seu filho.
- Doutor,
quanto lhe devemos?
- Não devem
nada, vocês fizeram a sua parte e eu estou fazendo a minha.
- Obrigado
doutor.
Retornamos,
com um choro e desespero ainda maior e a criança com cerca de seis meses ainda
no colo da Lucy, que procurava, instintivamente, passar-lhe o calor de seu
corpo.
Chegados a
Bom Retiro, o baile já havia terminado e a Lucy, desembarcando entregou a filha
morta à sua mãe inconsolável. Que cena amarga.
Nessa
altura, já estávamos todos banhados em lágrimas.
Embarcaram
na charrete, deram um breve aceno e partiram. Moravam entre a vila e o atual
trevo de acesso a Bom Retiro na BR 386. Não perguntamos o nome deles e nem eles
perguntaram o nosso.
Partiram e
nos pareceu que estavam no máximo do desamparo e carentes de conforto. Sozinhos
na noite escura e com sua filha morta nos braços.
Eu e a Lucy
estávamos com o coração em frangalhos e o corpo cansado. Fomos para casa
dormir, pois o dia logo iria amanhecer.
Cerca de um
mês depois, a Lucy estava sentada nos degraus da porta de nossa casa, dois
quilômetros além da vila, quando notou que pela estrada, vinha uma mulher a pé
e com uma cestinha na mão. Ela aproximou-se, o portão estava aberto e ela
perguntou – A senhora é a dona Kiko?
- Sou eu mesmo (A Lucy era
conhecida apenas por seu apelido Kiko)
- Eu sou a mãe
daquele nenê que vocês levaram para o hospital de Estrela. Eu estava procurando
saber o seu nome e onde morava. Vim me apresentar e agradecer. Trouxe também um
pequeno presente, uma cestinha com ovos de galinha.
- Não precisava, mas de qualquer
forma muito obrigado.
Abraçadas,
ainda choraram mais um pouco. A mulher informou o seu nome e o da filhinha
falecida, agora já esquecidos e despediu-se. Nunca mais tivemos contato com
aquela mulher que, com dignidade, tentou e conseguiu localizar quem a tinha
ajudado.
Nosso
primogênito tinha nascido em 1955 e esperávamos mais filhos, que demoravam a
aparecer. Talvez apenas por coincidência, logo após o socorro ao casal, a Lucy
ficou grávida novamente e nossa filha Luzia nasceu em agosto de 1961.
O que teria
acontecido para que o episódio retornasse novamente ao cérebro da Lucy 56 anos
depois?
A COOPERATIVA AURORA (SC) E EU
Uma história quase inverossímil
Em outubro de 1961 assumi o cargo de
Superintendente na Cooperativa dos Suinocultores de Encantado Ltda., no ramo
principal de industrialização de suínos - ramo no qual eu já tinha 13 anos de
experiência em duas empresas industriais de caráter particular. O
cooperativismo era novidade para mim. Me limitei a comandar a aquisição,
industrialização e a venda dos produtos originados, assim como o comando das
finanças da cooperativa, com as habituais deficiências de caixa.
Em pouco tempo, consegui modificar
completamente a situação. A obtenção de resultados econômicos que fortaleceram
o nome e o caixa da empresa me trouxe conceito no meio cooperativo, apesar das
críticas à minha administração modelo “capitalista”. Eu a considerava
Cooperativismo de Resultados.
A Cosuel operava também como uma
Central Cooperativa, e tinha número razoável de cooperativas Agrícolas Mistas
ou Cooperativas Tritícolas associadas. Elas encaminhavam à Cosuel parte da
produção de suínos e soja dos seus associados, não havendo obrigação de
fidelidade.
Até cerca de 1964, as cooperativas
eram subsidiadas pelo governo do Estado, que as isentava do Imposto de Vendas e
Consignações (6 %) na aquisição da produção pecuária e igual montante
descontável no imposto a ser pago sobre as vendas da produção a terceiros. A
soma das duas isenções resultava em uma vantagem de cerca de 6% sobre as vendas
num ramo de negócios que, bem administrado, gerava cerca de 3% de resultado
positivo sobre o montante de vendas. Isto durou até que o Estado modificou o imposto
sobre as vendas (ICMS, 15%), igualando o imposto das cooperativas ao mesmo
valor das empresas privadas.
Com o passar do tempo, fui sendo
procurado em Encantado por diretores das cooperativas associadas – e também por
outras desconhecidas –, que vinham trazer ao meu conhecimento seus problemas
administrativos, procurando conselhos para resolvê-los. Na maioria dos casos,
já era tarde demais para quaisquer providências. Vi homens com os olhos rasos d
água ao saírem do meu escritório. Uma vida em torno de um ideal, perecendo
inexoravelmente. Num ano, mais de 600 cooperativas fecharam suas portas. Já
estavam insolventes com uma administração incompetente e distante da realidade.
Sempre os mesmos erros: compras e vendas mal feitas, dívidas incobráveis de terceiros
e de associados decadentes, além de artifícios contábeis para esconder
prejuízos. Diretores não sabiam nem ler e identificar um balanço geral, que
dirá um exame de velocidade de rotação dos estoques, e muito menos verificar o
índice de liquidez financeira, em plano decrescente a cada balanço.
Entre outros, lembro alguns casos em
que, chamado, fiz intervenção:
PADRE FELIX
BUSATTA – Vigário de Paraí, 100 km ao norte de Encantado.
Me visitou em Encantado. Estava
desesperado e me contou a sua história: Fundaram uma cooperativa industrial de
soja, e compraram uma pequena prensa expeller japonesa. Trabalharam durante
seis meses e não conseguiram vender nenhum quilo da torta e nem de óleo bruto.
Ingênuos. Não conheciam a área. Pediu socorro e apelou que eu fosse a Paraí
para ver de perto o problema. Fui no dia seguinte e logo vi o tamanho do rolo.
O padre já tinha visto que a prensa tirava apenas a metade do óleo de soja,
sendo que o óleo produzido era estocado em tanques horizontais sem torneira para
retirar o precipitado por decantação. Óleo com acidez e torta estocada já
rançosa. Os salários estavam atrasados e havia dificuldade para pagar a energia
elétrica. Que rolo. Pediu socorro para evitar o desastre de entrar em
liquidação. A Cosuel se propôs a adquirir o óleo, a torta (ambos precisavam de
rebeneficiamento) e também sugeri que vendessem a soja. Era perigoso arriscar a
aquisição de matéria prima semi elaborada e que ninguém queria comprar. A
Cosuel pagaria a primeira carga de torta e de óleo à vista para sanear as
contas mais urgentes. Sugeri que dentro de uma semana me informasse acerca do
andamento das coisas. Informei que haveria um grande prejuízo, mas era o melhor
que eu poderia propor. O Padre não esperou, tal a ansiedade – fechou o negócio
na hora. Mandou o óleo, a torta e todo o estoque de soja. A Cosuel pagou e
nunca mais tive noticias além de que a pequena cooperativa tinha fechado as
portas. Não fui o curandeiro. Fui o coveiro.
COOP.
TRITÍCOLA DE NÃO ME TOQUE - Uma associada. Tudo idem, com duas prensas iguais.
Um mês depois, já souberam da solução de Paraí e desejavam tratamento igual. OK. Mas havia uma
diferença: a tritícola já era uma Cooperativa viável. O seu presidente tinha o
sobrenome Roos.
COOPS.
TRITÍCOLAS DE SANTA BÁRBARA, ERVAL SECO E A OUTRA POSSIVELMENTE DE PALMEIRA. –
Eram associadas. Mandaram me chamar, pois estavam insolventes e queriam fazer
fusão numa AGE coletiva num sábado próximo - queriam a minha opinião. Fui. Me
convidaram para sentar junto à mesa. O clima era favorável (na minha opinião,
três se afogando e cada um agarrado no outro. Morte certa). Juntando três
quebradas, daria uma inteira. Ao pedir a minha palavra, elogiei a iniciativa de
buscar uma solução conjunta, mas na minha opinião não deveriam formalizá-la por
escrito. A situação atual era devida em razão de que a cobrança dos serviços
(pesagem, secagem, armazenagem e carregamento da produção agrícola) não pagava
o custo operacional e que deviam, em conjunto, fazer um estudo do custo real,
mais a inflação e mais a cobertura do prejuízo do ano para a safra seguinte.
Fizeram uma pausa para o churrasco e logo me despedi, deixando liberdade para
cada um se manifestar sem o constrangimento de minha presença. Se os associados
não aceitassem, que providenciassem na extinção das cooperativas. Lei seca.
Mais tarde, e por terceiros, soube que tinham aceitado a minha sugestão. Nunca
mais tive qualquer notícia. Estão vivas, separadas e operantes até hoje.
COOP.
AGRÍCOLA MISTA RIO PARDINHO – SANTA CRUZ DO SUL. - Associada. Mandaram me
chamar para uma reunião do Conselho. Estavam insolventes e a produção de suínos
local era enviada ao concorrente de S. Cruz do Sul. Queriam socorro. Repeti a
sugestão que já tivera sucesso em outras cooperativas. A cooperativa seguiria
comprando os suínos a 30 dias e a Cosuel os pagaria a vista em dinheiro ou
mercadorias de venda nas lojas, transferidas ao mesmo preço praticado com as 24
lojas da Cosuel. Fidelidade obrigatória. Na minha opinião, seriam necessárias 2
cargas de suínos por mês para a sobrevivência e três para o desenvolvimento.
Com menos de 2 cargas por mês, a cooperativa não sobreveria. Primeiro mês,
sucesso – 3 cargas. No segundo, duas, e no terceiro uma. Fim de papo. O
presidente veio a Encantado explicar que a suinocultura estava sendo trocada
pela fumicultura e queria adquirir mercadorias de loja a prazo. Neguei e dei as
dicas para fecharem a cooperativa, dando o mínimo de prejuízo para os
associados. Sou um defensor da eutanásia de empresas. Não deixe morrer. Mate.
Primeiras coisas a fazer: não pagar os impostos nem duplicatas de fornecedores.
Vender ou hipotecar o imóvel para saldar dívidas bancárias com aval de colonos
e pagar os sócios pequenos. A cooperativa iria à liquidação voluntária e os
credores, inclusive os funcionários, seguiriam dentro dos preceitos legais de
precedência.
COOPERATIVA
TRITÍCOLA DE SOLEDADE. - Associada. Seu presidente na época tinha o sobrenome
Pederiva. Os associados pecuaristas (alguns já associados à Cosuel, que
limitara o número de criadores de gado) o convenceram a contragosto a edificar
um matadouro de gado na cidade. Estavam escavando os alicerces quando o
presidente resolveu me procurar. Estava receoso de má iniciativa. Dei totais
garantias de insucesso. Fui curto e positivo. Não se meta onde você não
entende. Associados da Cosuel só entregavam gado para abate de janeiro a maio,
época de fartura. Desistiu. Dois anos depois, nos encontramos. Ele, rindo, me
agradeceu por tê-lo livrado de uma iniciativa ruinosa. Até hoje ninguém
construiu matadouro bovino com Inspeção Federal em Soledade. Foi o único que me
agradeceu.
COOPERATIVA
AURORA – SC - Não me admirei do convite feito pela
Aurora. Era simples rotina. Eu não iria à Chapecó sem ter sido convidado (e
gratuitamente) por alguém que não merecesse a minha consideração – no caso, o
prefeito de Encantado, Adilar Bertuol, irmão de Valmor Bertuol, ligado à
administração da Coperalfa ou Aurora.
Eventualmente,
eu dava assessoria a uma série de cooperativas que andavam mal das pernas. Para
muitas, eu não receitava remédio e simplesmente dava logo a extrema unção. Uma
cooperativa somente terá sucesso se for necessária aos associados.
Eu tinha salvado a Cosuel da derrocada e gozava de alto conceito no meio
cooperativo e, consequentemente, no Banco do Brasil. Talvez o Valmor Bertuol,
na Aurora, sufocado por um empréstimo do BB que provavelmente não viria mais,
pediu ao irmão que me convidasse para dar uma ajuda. Fomos eu e o Nelson
Schwambach, diretor industrial da Cosuel. Esperavam-nos várias pessoas
desconhecidas: Valmor Bertuol, provavelmente o gerente do BB e mais duas ou
três pessoas ligadas à administração da Aurora.
Eu
apenas escutei o que tinham a dizer, e tomei algum conhecimento. Quando surgiu
a ideia de vender a cooperativa (creio que a sugestão foi dada por alguém do
BB) ao Plínio de Nes do Frigorífico Chapecoense e ninguém se manifestou,
perguntei – por que não vamos lá? Eu não conhecia o Plínio de Nes nem ele a
mim, mas ambos sabíamos quem o outro era. Fomos. Era 14 de janeiro de 1972. O encontro
aconteceu. O Plínio foi bastante atencioso e como todos se calaram e olharam
para mim, eu é que tive de fazer a oferta, sem ter a menor autoridade para
isso, recusada com polidez.
Voltamos à Aurora em clima de velório. Imaginei um tiro no escuro
e eu sugeri se - quem sabe - uma correspondência minha ao BB ajudasse. Eu não
tinha muita fé, mas era uma derradeira tentativa. Eu faria um reestudo e
pequeno plano para abater 200 suínos por dia, com a lucratividade habitual de
todos (3%), acrescido da posição de Chapecó, grande produtor de milho e suínos,
ponto geográfico dos melhores e existência de um rebanho já com indícios visíveis
da aceitação do suíno tipo carne, formado por várias cooperativas
agrícola-mistas e outros argumentos. No fim do trabalho anotei que referências
sobre mim poderiam ser obtidas na gerência do BB de Encantado. O reestudo foi
entregue ao BB de Chapecó. Dias após, o
gerente do BB de Encantado me avisou que o BB de Florianópolis queria uma
entrevista comigo. Eu disse – Não vou. Só irei se mandarem um avião me buscar. Marcamos dia e hora e esperei pelo voo na
pista do aeroclube em Estrela.
Aterrissado
o avião e contatado o piloto, me apresentei como piloto privado de aeroclube e
me permiti sugerir um plano do voo feito por mim. Voaríamos a 400 m de altura
sobre o solo, direto para São Francisco de Paula, dali para o Itaimbézinho e
até o mar, subindo pelo litoral até Florianópolis. Deu uma risada e aceitou.
Quando chegávamos ao Itaimbézinho perguntou-me. – Vi que você gosta de
aventuras. Você já voou abaixo do solo? Não? Então agora vai! – e conduziu
avião para dentro do cânion. Pelas janelas laterais da aeronave, vi apenas as
paredes rochosas e vegetação. Aventura fascinante e inesquecível. No trajeto
pela orla marítima, vislumbrei paisagens lindíssimas até o aeroporto. Quando
passamos sobre um local, eu disse para o piloto: - Um dia terei uma casa nessa
praia. Poucos anos depois, comprei terreno e construí uma casa na praia do
Sonho, na rua Tangarás, 56.
Na
reunião com o Banco do Brasil em Florianópolis (só agora concluí que também o
BRDE e FUNDESC também estavam presentes) estiveram quatro pessoas, entre eles
um que visivelmente era resistente à proposta. Me inquiriram à vontade. Queriam
saber tudo. Diálogo proveitoso. Lentamente essa pessoa também passou a aceitar
o plano e quando notei, durante o diálogo, não se usava mais a palavra “se” e
sim “quando”. Fiquei razoavelmente otimista. Recomendaram a aceitação do
reestudo de viabilidade e as Diretorias Financeiras Bancárias formalizaram os
contratos de financiamento. Minha participação se encerrara e meu silêncio
começava.
Eu
soube pelo BB de Encantado da aceitação do meu trabalho e abertura de crédito
para a Aurora. Nunca mais tive qualquer informação.
Um
primeiro passo havia sido dado e agora cabia ao Conselho tomar as demais
providências que seriam necessárias. Entre os conselheiros e participantes,
temos os nomes de Orlando Jacob Cella, Nilson Olímpio Batiston, Victorino
Setembrino Zanchet e Gil C. Tozzi, que em conjunto prosseguiram com as
démarches juntos aos Bancos Financiadores e legalização junto às autoridades
fiscais. Restava definir uma pessoa capacitada para exercer o comando efetivo
da cooperativa. A escolha caiu sobre Aury Luiz Bodanese, acompanhado de outros
diretores, que trataram logo, com sucesso, de todos os assuntos pertinentes ao
desenvolvimento da Cooperativa Aurora.
Logo após a entrega do pedido ao
BB, soube por terceiros que Aury Luiz Bodanese assumira a presidência da Aurora
e acompanhei de longe, orgulhoso, o desenvolvimento que ele imprimiu para levantar
a Aurora ao nível de sucesso e segurança financeira e econômica.
Pouco tempo depois, fui a um
simpósio de cooperativas em Recife e vi que Aury Luiz Bodanese era um dos
participantes. Procurei-o e ao encontrá-lo me identifiquei como sendo o autor
do reestudo de viabilidade econômica junto aos bancos de Florianópolis. Aury,
sem dizer uma palavra, retirou-se. À tarde, procurei-o novamente e outro afastamento.
Não entendi o acontecido. Tempos depois, num outro simpósio, nem nos olhamos. Aquele
homem me detestava. Por quê?
Mesmo
com suas deselegâncias comigo, tive satisfação do desenvolvimento dele. Afinal,
eu me considerava um dos “padrinhos” da Aurora e o sucesso dele também era o
meu.
Calei durante quase meio século, esquecendo o
episódio e não me perturbei. Nesse ínterim, a notícia aterradora da TV sobre o
desastre com o avião que levava jogadores e diretores do Chapecoense para a
Colômbia, matando quase todos os passageiros e tripulantes. Chocante.
Eu
não acompanho jogos de futebol. Sabia que o Chapecoense era um time da primeira
divisão, mas não sabia que a Aurora o patrocinava.
Vendo
e ouvindo as notícias na TV, tive um choque emocional e me contive, desligando
a TV, para não chorar. Aquela gurizada com camisetas da Aurora, a bananada do
piloto, a minha afilhada Aurora de luto. Por já ter tido uma pane num avião que
eu pilotava (um monomotor Paulistinha) e feito um pouso sem motor – perfeito,
em uma roça de fumo - sabia da emoção e lembrança do caso frustrante e
inexplicável da Aurora/Bodanese. Que tragédia. Me recuperei e tornei a ligar a
TV de novo.
Contei
o fato para meu amigo fraterno Milton Lunardi, de Chapecó. Ele interessou-se em
descobrir o que poderia ter acontecido com o Aury, segundo ele, um gentleman,
para me tratar daquela maneira. Iria tentar descobrir o que poderia ter
acontecido. Localizou Orlando Cella, ex secretário da Aurora na época e um dos
que me aguardavam em Chapecó, ainda vivo e lúcido. Inquiriu-o e ele disse que
um “alemão” e um companheiro fizeram um reestudo de viabilidade econômica da
Aurora, ele o lera e achara bom. Milton lhe perguntou se seria o Leandro
Lampert, disse-lhe: Era mesmo ele.
Pesquisando no Google, Milton achou crônica sob o tópico Aury Luiz
Bodanese, e me passou informações que permitiram eu também encontra-la,
referências elogiosas a um líder cooperativista gaúcho, vítima imprudente de um
fato lamentável que conto em meu livro – FATOS E CRÕNICAS – sem citar nomes,
mas agora, repito o que escrevi nominando empresas e pessoas. Para que o fato
seja conhecido com o subtítulo de Reminiscências Profissionais 1. Segue abaixo
REMINISCÊNCIAS PROFISSIONAIS - 1
Em
1961, quando assumimos cargo de Diretor Superintendente da Cooperativa dos
Suinocultores de Encantado Ltda., já encontramos um acordo verbal em vigor
entre as cooperativas de produção e as de consumo. Estas dariam uma preferência
de compras àquelas e que em retribuição adotariam o prazo de vendas de 45 dias,
em lugar dos habituais 30 dias vigentes no comércio tradicional.
Como as cooperativas de consumo pagavam
habitualmente no prazo faturado, não existiriam maiores problemas. Assim se
passaram alguns anos sob constante vigilância da Cosuel.
Entretanto, verificamos que essas
cooperativas de consumo de funcionários de grandes empresas econômicas (Coop.
dos Bancários e Coop dos Funcionários Públicos), entre outras, passaram a
atrasar os compromissos, pagando juro de mora pelo atraso que chegava a 15 dias.
Assim, compravam e pagavam a 60 dias e venderiam no máximo em teóricos 30 dias,
uma vez que o consumo mensal dos seus associados seria descontado nas folhas de
pagamento das categorias com associados de padrão médio. O fato despertou um
alerta íntimo. Havíamos encontrado algo inexplicável.
Era fácil prever o sucesso dessas cooperativas
de consumo, desde que houvesse um limite técnico e rigoroso para o consumo
mensal de cada associado, baseado no valor nominal do salário de cada um. Sem
limite, desastre previsível.
Em 1966 quando a Cosuel decidiu entrar no
ramo de supermercado para atender seus associados e funcionários, cabia uma visita
às cooperativas de consumo já existentes e que gozavam de alta consideração por
sua organização e eficiência.
Solicitamos uma visita às duas
maiores para formarmos uma ideia de um ramo desconhecido para nós. Convidados,
lá nos apresentamos.
Recebidos com gentilezas, fomos conduzidos
às instalações físicas adequadas e também aos escritórios de contabilidade e
tesouraria. Tudo dentro dos conformes.
Nos foi entregue um balancete atualizado e um
balanço do exercício anterior. Rapidamente avaliamos a sua liquidez financeira,
bastante razoável, mas nos chamou a atenção um imenso ativo realizável a curto
prazo. Inquirimos o contador que nos explicou que aquele montante era o valor
dos débitos de compras de todos os associados e para nossa surpresa, igual à
soma de dois meses de venda. Assim, o prazo médio real de venda seria de 60
dias e não no mês subsequente como a teoria indicava. Daí o aperto financeiro.
Horrorizados, previmos que isso acabaria mal em pouco tempo.
As
diretorias permitiram que os associados se endividassem progressivamente, sem
nenhum critério de responsabilidade. Certamente contavam com esses votos para
se reeleger nos cargos administrativos. .
Desses devedores, possivelmente a maioria,
mantinha suas contas em dia e para que desse essa média, uma minoria deveria
estar com grandes atrasos e esse débito seria rolado cada mês e jamais seria
ressarcido. Em resumo, a cooperativa estava, na realidade, insolvente e a situação
progrediria até que um dia estourasse.
Não demonstramos
surpresa, agradecemos e fomos à outra cooperativa de consumo. Constatamos
existir situação idêntica e que logo generalizamos a todas as cooperativas de
consumo, nossas maiores clientes. Em caso de quebra generalizada, seríamos os
primeiros a sofrer as consequências. O valor que perderíamos, seria igual à
venda de dois meses para elas. Não teríamos como suportar.
Seria preciso enérgica
providência e o sigilo era absolutamente necessário. Determinamos por escrito a
cada unidade de venda em Porto Alegre, que, sem maiores explicações,
suspendessem a venda a prazo para todas as cooperativas de consumo, alegando
ordens superiores.
A ordem causou enorme rebuliço e contestação.
Nos recusamos a explicar. Quebraria o sigilo indispensável. Pedimos que confiassem e que sabíamos o que
estávamos fazendo. Nem ao nosso presidente revelei. Ninguém bota fora, sem
razão, uma clientela que representava mais de um terço das vendas em Porto
Alegre.
As unidades de venda, bem gerenciadas, logo
conquistaram novos clientes e a venda mensal continuou a mesma.
A
Cooperativa dos Suinocultores de Getulio Vargas assumiu o nosso lugar sem a
menor consulta a nós ou aviso. Logo entendemos que ela seria a vítima
voluntária e inocente a ser sacrificada no altar da voracidade do comércio e
indústria. Problema dela. Ignorara que não existe almoço grátis.
Dentro de dois meses, a Cosuel não tinha mais
nenhum haver das cooperativas de consumo.
Era só esperar pelo estouro que
certamente em breve viria.
Pouco tempo depois, numa reunião mensal do
Sindicato das Indústrias de Produtos Suínos do RGS, um colega, diretor de uma
média indústria na região italiana, nos puxou para o lado e perguntou se era
verdade que suspendêramos as vendas para todas as cooperativas de consumo.
Confirmamos e depois perguntou por quê. Nos encaramos e lhe dissemos em dialeto
vêneto – Fate furbo – Faça-te experto ou abra os olhos e nos afastamos. Logo
vimos que ele segredava para outro colega alguma coisa e fazia gestos em nossa
direção. Entendemos que ele estava recomendando para ele também suspender as
vendas aos mesmos clientes.
O estouro estava iminente e logo aconteceu.
Ninguém mais quis vender a prazo para essas cooperativas de consumo. O déficit
financeiro logo apareceu e em seguida cerraram as portas por falta de
mercadorias e crédito.
Prejuízos em larga escala para muitos
fornecedores.
Cooperativas não entram em falência e sim em
liquidação. Dezenas fecharam as portas e não pagaram nenhum credor. Os
patrimônios serviram apenas para pagar os encargos trabalhistas. Ufa, escapamos
por pouco.
Os
associados, por óbvio, não resgataram seus débitos com as cooperativas e ainda
rasparam fiado os saldos do estoque.
Fomos severamente criticados por não alertar as
outras cooperativas de produção, mas o sigilo absoluto era necessário para que
nos salvássemos dum enorme prejuízo. Os diretores da Getúlio Vargas é que foram
imprudentes.
A
cooperativa industrial que nos substituiu junto às cooperativas de consumo teve
o destino previsto.
Ficamos
sabendo que essa cooperativa solicitara auxilio de Aury Luiz Bodanese para que
a Aurora a encampasse. Para tanto e certamente, atribuíram mim as culpas pelo
ocorrido. Um traidor do sistema cooperativo. Daí, concluí, a reação negativa de
Aury sobre a minha pessoa. A Aurora recusou a incorporação.
Minha responsabilidade
era apenas com a Cosuel, que pagava os meus salários. As demais cooperativas,
que abrissem os olhos – fate furbo.
Em Getúlio Vargas, com os
mesmos associados e diretores, havia a Cooperativa Tritícola, que terminou por
absorver a coirmã insolvente e passou a gerenciar a atividade industrial com
seu nome até novo incidente que a seguir relato em
REMINISCÊNCIAS PROFISSIONAIS - 3
Em 1961, assumimos como Diretor
Superintendente da Cooperativa dos Suinocultores de Encantado Ltda. e
constatamos que a Cosuel já tomara medidas competentes para se atualizar
industrialmente. Construíra um túnel de congelamento de carne suína e
respectiva câmara de estocagem para 70 toneladas. Iniciara a produção, lotara a
câmara e o túnel. Produzira mas não vendera um quilo sequer. Assim a
encontramos.
As vendas da produção industrial da Cosuel
eram todas realizadas por intermédio da União Sul Brasileira de Cooperativas
Ltda., uma cooperativa central à qual a Cosuel era filiada. Ela recebia,
vendia, cobrava, prestava contas e enviava o dinheiro pelo banco. O critério de
pagamento era o da antiguidade do crédito. Justo, mas excessivamente demorado. Criava
problemas no fluxo de caixa e era imprevisível. Os preços obtidos eram
adequados e estavam dentro de valores plenamente aceitáveis.
Como a União não tinha câmaras frias e não
entendia do ramo, não se interessou em intermediar a produção de carne
congelada suína da Cosuel e a produção ficou encalhada. Nenhuma outra medida
foi tomada. Depois de 6 meses congelada, a carne suína perde o valor comercial.
Oxida e ninguém mais a compra.
De
imediato, tomamos as primeiras medidas para iniciar a venda. Conhecíamos uma
representação no Rio de Janeiro, que efetuara as vendas durante os 11 anos em
que trabalhamos num frigorífico de Bom Retiro do Sul. Corretos e competentes.
Vendiam por pedidos, mediante comissão e o faturamento era direto pela Cosuel,
que tinha a possibilidade de descontar a duplicata em bancos, obtendo o
dinheiro no dia seguinte ao embarque. Mudou completamente o fluxo financeiro.
Aos
poucos, o mesmo representante foi autorizado a vender outras mercadorias
fabricadas pela Cosuel. No mínimo serviriam como parâmetro para comparar com as
vendas da União. Igualavam-se nos preços, mas o faturamento direto permitia a
obtenção imediata do dinheiro no banco.
Junto
à União, constantemente reclamávamos da demora e imprevisibilidade do dinheiro.
Cada vez mais mercadorias para o representante e menos para a União. Nunca
fomos a uma Assembleia. A Cosuel sempre foi representada por seu presidente.
Numa Assembleia Geral Ordinária, sem sermos
consultados, nos elegeram por um ano como um dos três membros do Conselho
Fiscal.
No escritório da União, procuramos nos
atualizar nos sistemas, sempre atendidos com frieza - e até mesmo hostilidade.
Começamos fazendo perguntas banais até sermos classificados como ingênuos e
inofensivos. Eles veriam quanto.
Numa oportunidade e na ausência do contador,
pedimos a um funcionário a abertura de um ativo realizável a curto prazo de
valor expressivo. Tínhamos constatado que esse valor era o mesmo do balanço do
ano anterior e no mínimo esse ativo, não seria de “curto prazo”. Na série de
fichas a que tivemos acesso, o último lançamento era de seis anos atrás e dizia
apenas - saldo devedor. Eram mais de 10 fichas, todas em nome de cooperativas
desconhecidas. Fizemos mais algumas perguntas inocentes e nos retiramos.
Ante
o Diretor Administrativo, fizemos uma pergunta em tom casual. Que Cooperativa
era aquela que se chamava ………..…. – Essa cooperativa já fechou as portas há
muitos anos atrás. Conclusão: esse enorme ativo realizável a curto prazo era composto de créditos de cooperativas que
já tinham cerrado suas portas há muito tempo
e simplesmente não valiam mais nada.
O Ativo do balanço tinha o Caixa, o
Imobilizado e o Ativo (ir)realizável. Feito novo exame, constatamos que a
União, simplesmente estava insolvente e irrecuperável.
Não
tivemos qualquer dúvida, como membro do Conselho Fiscal, em aprovar as contas
daquele exercício. O problema era muito anterior ao nosso mandato.
Oportunamente, quando os haveres da Cosuel tivessem sido ressarcidos, ele seria
devidamente considerado. Novamente, o sigilo seria necessário.
Daquele
dia em diante e sem justificativa, não enviamos mais nenhuma mercadoria para
ser vendida pela União. Mantivemos sigilo total. Dentro de três meses a União
havia pago todos os nossos créditos. Tínhamos nos safado mais uma vez de um
considerável e previsível prejuízo.
Na
AGO seguinte, no momento de ser aprovado o balanço, pedimos a palavra e
solicitamos a abertura daquele ativo. Surpresa geral, estupor e correria.
Assembleia suspensa e conhecimento de todos da real situação da União. A
Diretoria demitiu-se. Falou-se em eleger novos diretores. Afastamo-nos para um
lado e não participamos das tratativas. Já sabíamos que a União estava
liquidada.
Nos afastaríamos da
Cosuel no fim do mês e me atribuí, antes disso, o dever de erradicar a União,
burocrática e já desnecessária. Não seria preciso eutanásia. Ela já estava
morta no mínimo há seis anos e ninguém vira. Que incompetentes. Diretores e
associados completamente cegos. Não viram em anos o que eu percebera em apenas
um minuto. A erradicação era necessária, pois eu acreditava que com o meu
afastamento a Cosuel viria novamente vender seus produtos através União. Foi o
meu último ato cooperativo e despertei novos rancores.
Na minha opinião, o fechamento da
União não faria nenhuma falta. Cada cooperativa deveria ter o seu próprio
marketing e comandar as vendas segundo seus interesses e necessidades
financeiras.
Todas
as demais cooperativas filiadas tiveram que suportar a sua proporção no
prejuízo no enceramento das atividades. Não receberam seus créditos. Muitas
entraram em liquidação. A Cosuel foi a única que nada perdeu.
O abalo foi de tal monta, que nem chegamos a
ser criticados pela manutenção do sigilo até que o momento fosse oportuno.
Foi então que a Tritícola Getulio Vargas, por
sua vez, tornou-se insolvente e sem capital de giro, teve de alugar suas
instalações industriais para a Pamplona Alimentos de Santa Catarina até hoje.
Um
grupo de diretores de cooperativas associadas à União consultou-nos se
aceitaríamos presidi-la. Recusamos, é lógico. Era início de março de 1973 e no
dia 31 sairíamos da Cosuel. Dentro de um mês, em 1º de maio, numa AGO já
convocada, assumiríamos como diretor do Frigorifico Ideal em Serafina Corrêa,
onde atuamos durante nove anos.
Nesse ínterim, projetamos, construímos e
ativamos o matadouro de aves e todos os seus departamentos: produção de ovos,
incubatório, galpões automatizados para produção de frangos, caminhões para
distribuição de rações a granel, licenciado para exportação e que há muitos
anos abate 180.00 aves diariamente. Mudou completamente a fisionomia econômica
e social daquele município.
Vide
Reminiscências Profissionais 9, pg 43
---oooOooo---
Retornando ao meu
diálogo com Milton Lunardi, ele continuou com as pesquisas e a Aurora o
abasteceu com uma ata da COOPERATIVA CENTRAL OESTE CATARINENSE LTDA, datada de
28 de março de 1973, que registra o seguinte relatório:
Sempre
que houvesse alguma dúvida na administração das empresas em que fui diretor,
mentalmente, eu trocava de lugar com o lado contrário para formar uma opinião
segura. Foi o que eu fiz em relação à Aury Luiz Bodanese. Se um colega e amigo
confiável me informasse que o diretor de uma cooperativa coirmã agira de modo
destrutivo e criasse uma cilada em relação à minha empresa e a prejudicasse, eu
também agiria com essa pessoa da mesma forma com que Aury agiu comigo. No caso,
o informante que estava pedindo auxílio deve ter contado a história de maneira
envenenada, eximindo-se de ter agido afoitamente e sem a necessária cautela
para o fato de um dirigente aceitar clientes que a colega rejeitara, sem
procurar a razão disso, foi de uma imprudência abissal. Custou-lhe caro. Para
safar a Cosuel, o sigilo absoluto era necessário. Jamais fiz qualquer sugestão
para alguém assumir o nosso lugar numa operação que, eu antevia, terminaria em
desastre. Por isso, livro Aury Luiz Bodanese de qualquer suspeita de má fé.
A desgraça se repetiria
com o desastre da União. No caso, a Tritícola de Getúlio Vargas deixaria de
receber os valores que tinha a receber dela e, por sua vez, ficaria ela própria
insolvente a ponto de ter de alugar o estabelecimento industrial de abate de
suínos para outra empresa de Santa Catarina, a Pamplona Alimentos, concorrente
da Aurora. Mais uma consequência da má administração da Cooperativa dos
Suinocultores de Getúlio Vargas – a mesma que administrara vários anos a União
das Cooperativas.
Tenho certeza que Aury
agiria da mesma forma que tive de agir para salvar a empresa da qual eu era
funcionário. Creio que o Aury, pela forma de agir, tinha relativa semelhança
com a minha maneira de administrar uma cooperativa.
Num momento crucial eu
fora um elo decisivo na corrente da vida inicial da Aurora e gostaria que os
atuais diretores tenham conhecimento da minha participação. Já fui muito
gratificado pelo sucesso da Cooperativa.
Porto Alegre, 31 de março de 2017
Poa, 16-11-2017
Caro Orlando
Jacob Cella (ex secretário da Aurora)
A vida nos
juntou apenas por um dia inesquecível quase meio século atrás em Chapecó.
Estivemos no mesmo lado com os mesmos objetivos e os alcançamos. Os resultados
se multiplicam à medida do decorrer do tempo. A Coop. Aurora está aí para
conferir. Continuo acompanhando seu desenvolvimento e há poucos dias li que
foram efetivadas as compras dos dois frigoríficos de Erexim. A semente que
amparamos numa dificuldade momentânea sobreviveu e prosperou. Alegria e deveres
cumpridos para você, eu e outros mais.
Escrevi
e enviei pelo Milton Lunardi o mesmo trabalho que estou juntando a esta correspondência
para ser entregue em mãos ao atual presidente da Aurora. Foi entregue há meses.
Esta cópia destina-se ao seu arquivo como uma das provas de sua participação
positiva no episódio.
Não recebi
qualquer manifestação da Aurora até hoje. Certamente assuntos mais importantes
tomaram o tempo da administração. Não importa.
Santa
Catarina foi um estado vizinho importante na minha vida profissional e
aventuras, contados também em outro anexo. SC mora no meu coração.
Esperando que
vc continue gozando de plena saúde junto com sua família, deixo um abraço.
Leandro Lampert
Encontrei
seu endereço postal pelo www.telelistas.net
REMINISCÊNCIAS
PROFISSSIONAIS - 2
Na Cosuel, num fim de ano, mandamos
fazer estatística verificando quantos suínos cada associado produzira durante o
ano decorrido e o município de sua procedência. Não tivemos muitas surpresas:
Na média geral, pouco mais do que 15 animais e, especificamente cerca de 20 em
dois municípios, Muçum e Arroio do Meio. No de menor produção, não mais do que
5 por ano
Profissionalmente, estes números não se
prestavam para definir o colono como sendo um suinocultor.
Na época de 1964, 55 frigoríficos de
suínos com Inspeção Federal, abatiam 2 milhões de suínos anualmente. Em 10 anos
restaram menos de 20 fábricas que abatiam quase o dobro desse volume. Também ali ocorreu a seleção natural.
De maio à dezembro, 90% dos abates e nos
meses de janeiro a abril, não mais de 10%, caracterizando excesso na safra e
carência na entressafra e mercado sujeito a altos e baixos. Banha, o produto
principal.
Essa pequena produtividade, é lógico, não
era suficiente para a sobrevivência e progresso material do associado.
O suíno é um subproduto do milho e o
aumento da produção deveria ser seletivo. Menos criadores, com mais suínos cada
um.
Pouco tempo depois e com novas técnicas de
produção, o abate mensal ficou estabilizado, deixando de existir safra e
entressafra. Carne, o produto principal.
Na mesma época, débeis tentativas de
exportação de carcaças ou cortes já estavam sendo aventadas. Lá por 1967,
ocorreu uma primeira exportação brasileira, destinada à Polônia, então
pertencente à esfera comunista do COMECON. Não compravam em dólares e apenas
trocavam por outras mercadorias a exportação momentânea. A Polônia estava
vendendo ao Brasil maquinaria agrícola e aceitava receber carcaças de suínos
congeladas. Cinco empresas formaram um pool para dividir as 600 toneladas, com
igual proporção. Na época, uma aventura. Sadia, Perdigão, Santarrosense, Ideal
de Serafina Corrêa e a Cosuel, via porto do Rio Grande.
Verificou-se que apenas em 5% dos animais
abatidos, as carcaças se enquadravam nas exigências dos compradores: Animais
precoces, pesados e com gordura lombar com menos de 2 cm. Seria necessária
evolução genética do rebanho e nutrição balanceada para continuar com as
exportações.
Quatro meses depois, nova e similar
exportação para a Tchecoeslováquia, com as mesmas exportadoras. Novo sucesso.
Nos meses subsequentes, a Cosuel sozinha
realizou pequenas exportações de cortes de carne suína congelada para o porto
livre Hamburgo. Num pequeno avião do aeroclube de Estrela, fomos a Rio Grande
acompanhar o primeiro lote.
Dimensionadas várias alternativas,
horti-fruti-grangeiros, fruticultura, floricultura e outras foram aventadas e,
por decorrência, restou a produção de leite como outra possibilidade econômica
viável para o colono.
O leite produzido na região era canalizado
às indústrias através de intermediários transportadores, que adquiriam o leite
na fonte produtora todas manhãs. O intermediário, que tinha a concessão de
“linhas” não tinha concorrentes, nem havia espaço para dois simultâneos.
Pesquisa em Arroio do Meio mostrou que a
metade dos produtores de leite era associada à Cosuel, e a outra metade não.
Os suínos dos mesmos produtores eram
canalizados pelos associados à Cosuel e a outra metade, através dos mesmos
freteiros de leite, entregues à outra indústria local, utilizando os mesmos
veículos à tarde.
Os freteiros, após a pesagem do leite de
cada dia, o misturavam com os demais e o vendiam, mediante exame por
amostragem, às indústrias. Iniciavam de madrugada e encerravam as entregas até
o meio dia. Acertavam as contas cada fim de mês.
A Cosuel decidiu a entrar no ramo de
coleta de leite e produção de lácteos, montando uma indústria específica em
local ainda a ser divulgado.
A Cosuel se propôs a novas modalidades e
sem similares na região. Cada produtor teria o rebanho previamente examinado
por veterinário que verificaria a ocorrência de tuberculose ou brucelose. Os
tarros Individuais com leite não seriam pesados no local da produção, apenas na
entrega na indústria. Este esquema permitia que até às 9 horas, todo o leite já
estivesse sido entregue e analisado, evitando, no verão, a acidez decorrente do
calor.
A escolha de Arroio do Meio foi técnica e
evitava o passeio do leite até Encantado e que depois voltaria pela mesma
estrada precária, cerca de 25 km. até
chegar ao mercado da região metropolitana. Além disso, em Encantado não havia
leite.
A Cosuel adquiriu área nas cercanias da
cidade, onde já havia uma construção de fábrica de subprodutos do leite
fechada, adaptável à indústria pretendida. A coleta diária seria estendida aos
municípios periféricos da indústria.
Assistência técnica ao produtor, aumento do
rebanho, genética, pastagem artificial, ordenhadeiras mecânicas, inseminação
artificial, fornecimento de remédios, vacinas e rações balanceadas e ajuste de
contas à vista no fim do mês.
A coleta do leite produzido pelos
associados, a metade dos produtores, iniciou-se com garantia de peso mínimo aos
freteiros (mas não intermediários) contratados.
A coleta da outra metade ficou inviável
economicamente e os freteiros desistiram das linhas, dentro do esperado. A
indústria que recebia esse leite identificou novas áreas de coleta e compensou
o volume perdido.
Aos produtores não associados à Cosuel,
não restou outra alternativa além de aderirem aos estatutos, canalizando também
a produção paralela de suínos ao matadouro de Encantado. A nova sistemática, de
tarros individuais e o exame do leite agradou à todos os agricultores porque
havia o preço extra premiando a qualidade . O produtor não frauda leite.
Os colonos, a partir daí, aumentaram
substancialmente a produção de leite e a fábrica de laticínios se capacitou
logo ao maior volume e à modernização, como produção de leite B e coleta a
granel.
Oportunamente, diretorias subsequentes
criaram fábrica de leite em pó em outro local, também no município de Arroio do
Meio, reguladora dos excedentes momentâneos.
Esse segundo setor econômico somado à
indústria suína elevou as oportunidades do agricultor. Um número muito elevado
de criadores de suínos desistiu e a produção foi compensada e ampliada por
suinocultores já mais especializados e em forma de parceria com a
cooperativa. Teve sucesso.
REMINISCÊNCIAS PROFISSIONAIS
- 4
Originária da China e adaptada ao
sul do Brasil a árvore produtora do fruto
denominado “tungue”, de cujas amêndoas se
extraía um óleo industrial secativo natural, utilizável na conservação da
madeira e como componente na fabricação de tintas industriais, foi plantada na
região colonial italiana no RS, de Encantado até Caxias do Sul, nas pequenas
propriedades rurais, para complemento de renda do agricultor. Sendo perene, uma
vez plantada, teria vida ativa por muitos anos e não requereria cuidados
especiais. Era só juntar o fruto e vendê-lo.
No RS havia duas indústrias que
mantinham prensas mecânicas contínuas. A Cosuel em Encantado e outra, uma
Cooperativa exclusiva de óleo de tungue em Caxias do Sul. A produção anual de
cada uma era de cerca de 200 toneladas no início da década de 1960. No Paraná,
outra indústria, produzia mais 400 toneladas. A Cosuel detinha 25% do mercado.
O óleo, uma vez filtrado e
clarificado, era vendido às fábricas de tintas brasileiras existentes na região
sudeste, dentro da lei de oferta e procura. Era conhecido sempre o valor de
cotação do mercado internacional, base para o mercado interno. Produção e
consumo se igualavam. Não ocorrera nenhuma exportação até então.
Na ocasião do cinquentenário do
município de Encantado, a Cosuel teve ativa participação. No desfile, os alunos
dos colégios locais portavam produtos fabricados com a marca Dália, entre ele
os óleos comestíveis de soja, milho, amendoim e girassol e mais o óleo
industrial de tungue (fruta que, se ingerida mesmo em mínima quantidade,
provocava terríveis cólicas e incontrolável diarreia nas pessoas. Quando
sentia-se o sinal, ………... já era tarde) em vidros transparentes com uma
etiqueta. Depois do desfile, os vidros com as amostras passaram a fazer parte
de uma exposição em uma das salas do colégio, mostrando a produção local de
bens de consumo. Encerrada a mostra, os vidros desapareceram e só mais tarde
identificamos onde. No colégio das freiras, os óleos foram consumidos na
cozinha, inclusive o de tungue. Logo recebemos reclamação que numa tarde,
durante a concretagem de mais um pavilhão, os operários e também as freiras,
comeram uma fritada de bolinhos feita com óleo da Cosuel e provocara tremenda
diarreia em todos. Alguns conseguiram chegar aos banheiros, mas a maioria
baixou as calças no meio do caminho, diziam que inclusive as freiras. Não
duvidamos. Logo localizamos o paradeiro do vidro com o óleo de tungue.
Provavelmente a etiqueta descolara. Que
cena burlesca deve ter sido.
A safra de 1965 encontrou
dificuldades de escoamento e redução de procura. A informação era de que as
indústrias de tintas estavam, gradativamente, substituindo o óleo vegetal por
um composto à base de petróleo.
Em 1966, a procura reduziu-se à
zero e a produção de mais de 1.000 tambores de 200 quilos ficou estocada no
pátio. Em contato com a similar de Caxias, verificamos que eles também não
tinham conseguido vender a safra. O futuro estava incerto e o destino natural
seria fechar as fábricas por falta de comprador do óleo.
As manchetes dos jornais
publicaram o ataque de forças militares de países árabes ao estado de Israel em
5 de junho de 1967.
Sabia-se que os EEUU mantinham
uma reserva estratégica de óleo de tungue, utilizável na pintura e combustível
de mísseis balísticos militares.
Com a guerra, a cotação
internacional do óleo de tungue teve repentina alta de 20% num mesmo dia. No
dia seguinte, mais uma pequena alta e no dia posterior mais outra. A Cosuel
recebeu proposta firme de preço FOB de um importador americano para as 200
toneladas, para exportação imediata e a direção da Cosuel teve que optar e
aceitar ou não a proposta. Era bem viável que nos próximos dias a elevação de
preço continuasse positiva.
Reunimos a diretoria, dois
Conselheiros e mais alguns altos funcionários para decidir na hora o que fazer.
Queríamos cobertura para uma decisão crucial – vender ou não toda a produção de
um ano para um único comprador, naquele momento. Dentro do esperado, todos
fugiram da responsabilidade e apenas sugeriram cautela que, aliás, não queria
dizer nada. O que precisávamos era solidariedade. Não a obtivemos e decidimos
aceitar a oferta e assumindo sozinhos a responsabilidade. Fechamos o negócio. Providenciamos
na abertura de Carta de Crédito Irrevogável e documentações correspondentes. O
embarque para o porto de Rio Grande foi imediato.
A operação de venda seria hoje,
em valor atualizado, cerca de um milhão de reais e com …… o dinheiro dos
outros.
No dia posterior, nova pequena
alta e mais outra no dia seguinte. Quietos, tivemos que ouvir recriminações –
eu falei para ter cautela - a pressa nunca foi boa conselheira - foi afobação e
discretas risadinhas. Se isso continuasse,
logo seríamos taxados de burro. Após 6 dias do início, a guerra acabou, o preço
internacional do óleo de tungue
despencou ao valor anterior e a procura desapareceu. Ufa, que alívio. Tornou-se
conhecida como A Guerra dos Seis Dias.
Não se fazem mais guerras como antigamente.
Fomos submetidos à pressão de
vender ou não toda a produção de um ano para um único comprador num único dia.
Seríamos homem ou um rato? Era a nossa profissão e responsabilidade e as
exercemos conscientemente.
Na manhã seguinte, um dos que
participaram da reunião para decidir a venda, que se omitira e depois criticara
a afobação, abriu a porta do nosso escritório e disse em alto e bom som: RA BU
DO.
Aliviados, telefonamos para os
colegas de Caxias. Não venderam, esperando uma provável alta maior que nunca
mais viria. Ficaram com seus estoques sem comprador e encerraram as atividades
da fábrica de óleo de tungue. Provavelmente, lá como cá, haveria muitos ratos.
Nunca soubemos o que aconteceu com a colega do Paraná.
Antes da safra seguinte a Cosuel
também fechou a sua fábrica e a plantação de tungue deixou de ser uma atividade
rentável para o colono. A Cosuel não teve que arcar com nenhum prejuízo. Teve
sorte.
REMINISCÊNCIAS PROFISSIONAIS
- 5
Aproximava-se a data do
cinquentenário da criação do município de Encantado e o prefeito Adilar
Giuseppe Bertuol iniciava os primeiros passos para os festejos que a data e o
município mereciam.
Nos eventos, um desfile de carros
alegóricos e uma série de festejos entre os dias 1º e 9 de setembro de 1965.
Comissões foram formadas para administrar cada ato comemorativo.
O prefeito entendeu que Encantado
também merecia um parque de exposições, de preferência na periferia da cidade e
iniciou a procura de terreno que fosse apropriado.
Localizou uma área nos arredores e
iniciou as tratativas com o proprietário Albino Zuchetti para compra. A
prefeitura não dispunha verba alocada, mas concluiu os entendimentos com o
proprietário que, sensibilizado, fez um preço aceitável. Foi o primeiro a dar a
sua patriótica contribuição. Não pode ser esquecido.
O local foi denominado “Parque
Cinquentenário”
As construções necessárias deveriam
ser realizadas no período de menos de quatro meses, pois o dia de inauguração
se aproximava.
Voluntários não faltaram e o
prefeito contava com sua equipe de administração, acrescida de vereadores e
pessoas influentes. A comunidade despertara e o entusiasmo contagiou seus
habitantes. Cada um se oferecia para ajudar.
Nem sempre é acertado nominar
pessoas participantes de um fato ocorrido meio século atrás, mas vamos ativar a
memória lembrando, além do prefeito Adilar G. Bertuol, os nomes de Jordano S.
Cé, presidente da Comissão de Festejos, Ampère M. Giordani, Secretário Geral e
Severino A. Pretto, Chefe de Obras do parque.
À liderança do prefeito e à Comissão dos Festejos, se deve a organização
e sucesso da festa.
Comércio e indústria local se
apresentaram interessados em ter seu próprio carro alegórico para participar do
desfile que surpreendeu e deixou orgulhosa a comunidade de Encantado. Todos se
sentiram participantes e responsáveis pelo brilhantismo.
Estandes particulares nos pavilhões
adornados com bom gosto mostravam aos visitantes a excelência e a pujança do
ensino, comércio, indústria, pecuária e agricultura do município. A Cosuel
apresentou um estande duplo.
Iniciadas as obras de construção do
parque e o prazo ficando cada dia menor, proporcionou a Severino A. Pretto
revelar seus dotes de administrador das obras civis. Obteve da prefeitura e dos
encantadenses todo o auxílio que solicitou e no dia da inauguração, estava tudo
pronto, contrariando as previsões negativas de alguns poucos.
Solenidades, desfiles de estudantes
com bandas marciais com garbo incomum, discursos a valer e a participação ativa
de toda a comunidade. Euforia geral.
A Cosuel esteve representada pelos
seus diretores em todos os eventos durante o período festivo.
Cabe
recordar o desfile de inúmeros carros alegóricos, entre eles, o do carro da
rainha dos festejos, Shirley Tarter, que com suas princesas, deram um destaque
de brilho, elegância, beleza e simpatia ao acontecimento. A Cosuel
apresentou-se com dois carros alegóricos. Clubes, entidades, professores e
alunos dos estabelecimentos escolares tiveram participação acentuada nos
festejos. O CTG Giuseppe Garibaldi, do patrão Jorge Moreira, esmerou-se com
seus peões e prendas no desfile com primoroso carro alegórico.
Nosso CTG também realizou um
primeiro Rodeio Crioulo. Sucesso absoluto.
Na inauguração do parque, todos os
espaços que foram reservados para os expositores e seus estandes revelaram o
capricho com que todos apresentaram ao público. Admiração e elogios. Encantado,
de fato, já não era mais o mesmo.
Sede com restaurante, pavilhões de
expositores de animais, mercadorias e arte, banheiros públicos, acessos, ruas e
calçadas, iluminação pública, arredores com gramado e arvoredo. Tudo dentro do
mais alto capricho. Uma semana com visitantes locais e cidades circunvizinhas,
autoridades federais, estaduais e regionais se fizeram presentes, entre elas o
governador do estado Ildo Meneghetti, que chegou de helicóptero, tendo pousado
no campo de futebol da Cosuel. Marcamos o local com um lençol branco estendido
no meio do gramado. Foi um sucesso a chegada e pouso do helicóptero, visto de
perto pela primeira vez pela população curiosa.
Num domingo, o parque foi reservado
para um churrasco aos associados da Cooperativa dos Suinocultores de Encantado
Ltda. Distribuídos os convites para cerca de 4.000 associados e familiares, a
Cosuel adquiriu 40 bovinos de um associado de Soledade e selecionou as carnes.
O encarregado do churrasco foi o diretor Industrial da Cosuel Nelson
Schwambach. Churrasqueira de tijolos com 50 m de comprimento, utilizável pelos
dois lados, 2.000 espetos de taquara com dois kg de carne cada um, cuidados por
50 churrasqueiros funcionários da Cooperativa. Um pacotinho com farinha de
mandioca para cada espeto. Cada um trouxe seus pratos e talheres. Na hora
certa, sem filas e atropelos os 4.000 participantes foram servidos a contento.
Bastava trocar o tíquete de reserva pelo espeto assado com carne suculenta. Até
então, o maior churrasco coletivo da região. Foi um exemplo de planejamento e
eficiência. À tardinha, quando a maioria dos participantes já se retirara,
demos uma olhada no local. Parecia o rescaldo de uma batalha campal, com os
espetos ainda cravados no gramado ou espalhados pelo chão.
Nos festejos do cinquentenário, o
povo de Encantado descobriu-se capacitado a ingressar num período coletivo de
confiança e desenvolvimento.
O sucesso das festividades ficou
gravado em minha memória. Parabéns ao prefeito Adilar e ao povo de
Encantado.
REMINISCÊNCIAS
PROFISSIONAIS - 6
OS FRIGORÍFICOS DE SUÍNOS DO VALE DO
TAQUARI
Em 1964 existiam onze abatedouros de
suínos com inspeção federal no Vale do Taquari. Entre Bom Retiro do Sul,
Teutônia, Roca Sales, Lajeado, Arroio do Meio e na sede e distritos de
Encantado. Eram todos de tamanho médio, subordinados a épocas de safra e
entressafra, decorrentes de maior ou menor existência de suínos nos meses de
inverno e verão. Abundância de maio a dezembro e carestia de janeiro a abril.
Os preços dos suínos invertiam essas posições, preços baixos na safra e
elevados na entressafra. A banha, então ainda produto principal, era estocada
pelos fabricantes até meados do verão, aguardando cada ano, a habitual elevação
do preço, que conduzia à obtenção de lucro especulativo. A banha logo teria seu
infeliz destino traçado. Perderia sua principal utilização nas cozinhas pela
troca por óleo vegetal. Quem não alterou a qualidade dos suínos que abateria,
perderia por completo a capacidade de concorrer. Não haveria mais tempo de
fazê-lo. Só tinha um caminho: o fechamento da empresa, com todos seus problemas
econômicos, sociais e desemprego. A carne suína tornou-se o produto principal.
Essa
situação não poderia perdurar para sempre. O suinocultor estava tendo prejuízo
e já estava descapitalizado. Clamava-se ao governo o estabelecimento de um
preço mínimo, tecnicamente inviável. Os produtores, o mercado e a indústria
teriam que encontrar a solução dentro das leis naturais da oferta e procura.
Já
havia sido criada a Associação Brasileira de Criadores de Suínos, da qual
fizemos parte em suas primeiras diretorias. Formou-se um consenso, aceito por
alguns e desprezado por muitos. O tempo iria mostrar.
Para
que houvesse suínos durante todo o ano e que a carne substituísse a banha como
produto fundamental, era aconselhável seguir as seguintes providências:
Introdução de reprodutores do suíno tipo carne, instalações adequadas,
assistência técnica, manejo, nutrição balanceada e respectivo financiamento.
Cálculo permanente dos índices de conversão física e econômica em cada lote. A
soma dessas providências conduziria, por si só, produção igual nos doze meses
do ano, levando à estabilidade nos preços desejada por todos.
Entre
esses frigoríficos, somente dois adotaram as providências acima enumeradas: as
Cooperativas Cosuel e Languiru. As duas cooperativas não tinham capital para
financiar os produtores e convênios com Banco, permitiram financiamentos
rápidos e sem burocracia aos produtores, todos avalizados pelas cooperativas, e
tornava a fiscalização bancária desnecessária.
Era denominado “repasse” e nem era necessário o suinocultor ir ao banco.
Mais tarde, novo frigorífico de capital particular foi criado em Lajeado,
operando desde o início dentro das normas necessárias.
No
restante do RS ocorreu situação idêntica: Dos cinquenta e cinco frigoríficos
existentes na época, restam hoje em atividade apenas dezoito.
Em
nosso entender, na época, os demais frigoríficos já estavam condenados a
fechar. Não tiveram visão administrativa, não acreditaram no futuro que haveria
de vir nem se dispuseram à análise de uma outra estratégia.. Era só uma questão
de tempo. Um a um, lentamente, foram desaparecendo na mesma medida que as duas
cooperativas e outros aumentavam substancialmente a sua capacidade de abate. Frigoríficos que estocaram banha aguardando a
tradicional alta no verão foram rechaçados em seus objetivos. Já ocorria maior
abate nos meses iniciais do ano e nem os frigoríficos que não estocaram banha
permitiriam um aumento abusivo nos preços. O consumo de banha já tivera redução
expressiva.
. Acertados
entre si, três frigoríficos do RS e dois de SC mantiveram o mercado abastecido,
vendendo a banha em pequenos lotes para cada comprador. Como a alta do preço da
banha não ocorreu, os demais se viram obrigados a vendê-la meses mais tarde,
por preço cada vez menor. Prejuízo na certa. Alguns, em decorrência,
simplesmente fecharam as portas.
Os
bancos também já haviam suspeitado que haveria poucos frigoríficos
sobreviventes e controlaram o endividamento dos demais. A falta de crédito
bancário precipitou o desenlace de cada um.
Havia
uma cooperativa Agrícola Mista em distrito do município de Lajeado, que tinha
matriz e duas filiais em região colonial de grande produção de suínos. Vendia
toda a produção a prazo para um frigorífico local que já começava a atrasar os
pagamentos e a cooperativa, já descapitalizada encontrava-se em situação
financeira desesperadora. Decidimos auxiliá-la, atraindo a sua produção, que
elevaria o abate em mais de 50 suínos por dia, subtraindo-os do colega. Seria
também mais um pequeno empurrão ao concorrente em direção ao seu inevitável
fechamento.
Fomos
procurá-los e fizemos a seguinte proposta: Eles continuariam a adquirir os
suínos para pagamento em trinta dias e a Cosuel, que dispunha de capital para
tanto, os pagaria a vista, no ato de entrega dos suínos. O preço e prazo que a
Cosuel pagava era o mesmo para todos, mas nas circunstâncias que a Cooperativa
Agrícola vivia, nada mais era que um gesto de boa vontade. A nossa exigência
era a de fidelidade total e lhe vedava a venda de suínos para frigoríficos
concorrentes. Aceitaram.
Em
duas semanas, já haviam liquidado contas antigas, pagos os impostos e
contribuições sociais atrasadas e sortido suas lojas desfalcadas de
mercadorias. Era outra vida.
O
frigorífico concorrente, já em situação difícil, via diminuir seus abates, sem
que conseguisse adquirir outros suínos nas redondezas. Já perdera o crédito.
Após
alguns meses de penúria, voltaram à Coop Agrícola Mista e fizeram propostas de
preços acima do mercado, prometendo pagar os créditos atrasados e garantindo os
pagamentos em dia, pois um grande financiamento de capital de giro já fora
aprovado no banco. Jamais se concretizou.
Assistimos,
consternados e impotentes, o presidente daquela cooperativa tomar uma medida
imprudente e sem diálogo, da qual se arrependeria pelo resto dos seus dias.
A
cooperativa voltou a fornecer suínos, mas o frigorífico não conseguir cumprir o
prometido e a cooperativa ficou em situação ainda pior do que estava antes. O
frigorífico requereu falência, levando a cooperativa insolvente a entrar em
liquidação com evidente prejuízo para seus associados. Já esperávamos por isso.
A diretoria da cooperativa não entendeu que sua fartura financeira momentânea
era totalmente dependente da Cosuel e sem esta, haveria o caos. Assim Foi.
REMINISCÊNCIAS PROFISSIONAIS - 7
JACOB MARKUS KATZ
ZH de 8 de abril noticia o
falecimento do menino imigrante polonês Markus, um amigo leal, em 15 de fevereiro, já com seus
95 anos, quase todos vividos em Encantado. Sempre correto em suas atitudes, nos
traz à memória sua presença na nossa vida social e profissional.
A primeira coisa que
fizemos foi reler o livro de crônicas de sua autoria Filósofo de Aldeia.
Vivemos ou fomos contemporâneos de alguns dos seus episódios
Éramos parceiros no Lyons
Clube e na vida comunitária da cidade. Ele, d. Berta e filhos gozavam de nossa
estima e consideração.
Além da loja de venda de
máquinas de costura, tinha uma pequena granja onde criava suínos e depois aves
para abate em frigoríficos especializados. Creio que na época (1963), sua
criação de frangos de corte era pequena, não ultrapassava lotes de quatro mil
aves. Era associado da Cosuel da qual eu era diretor e permanentemente
conversávamos sobre os problemas de sobrevivência dos pequenos agricultores.
A Cosuel tinha fábrica de
rações, quase toda destinada à produção de suínos, devidamente testadas em
granja própria e registradas no Ministério da Agricultura. Também se fabricavam
rações para aves, baseando-se em critérios nutricionais indicados pela empresa
criadora de raça especifica para corte, e os valores indicados em cada época da
vida do frango. Seguíamos regras universais. Tínhamos confiança na nossa
capacidade de cálculo, porém, não tínhamos como comprovar física e
economicamente sua viabilidade. Aliás, o volume de vendas também não justificava
o investimento particular e pessoa capacitada em coordenar um teste real.
Um dia, fomos procurados
pelo Markus e ele nos disse que decidira iniciar a produção industrial de aves
para abate, tinha construído instalações adequadas e conhecia os procedimentos
de manejo. Tinha apenas o dinheiro para comprar os pintos. Restava o problema
da nutrição e financiamento. Aventou soluções.
Transformar um pinto em
frango, naquela época, levava quase cinquenta dias e o frigorífico os pagava
decorridos trinta dias após a entrega das aves. Ele não tinha capital
disponível e pretendia ser financiado pela Cosuel.
Era a oportunidade de
testar a qualidade das nossas rações para aves e o Markus, meticuloso ao
máximo, era a pessoa confiável indicada a fazê-lo sem custos. Fizemos um
convênio verbal. A Cosuel forneceria todas as rações e as financiaria até que o
lote fosse pago, sem juros. Em contrapartida, Markus registraria todas as
despesas decorrentes e informaria a quantidade de rações consumida para ser comparada
com o peso das aves vendidas. Essa operação indicaria a conversão de alimento
em peso vivo, que avaliávamos seria de 2,1 a 2,2 quilos de alimento por peso
vivo de ave vendida. Paralelamente, seria calculado o custo financeiro, para
saber a conversão econômica. Tudo acertado e aí Markus inquiriu “e se o lote
der prejuízo?” - Conversaremos. Tudo na mais absoluta confiança recíproca.
Vendido o primeiro lote,
Markus trouxe, já calculada, a conversão física e econômica, assim como cálculo
percentual da mortalidade havida. Foi só passar a limpo o teste. A conversão
física correspondeu às expectativas e a econômica apresentou resultado que o
Markus achou satisfatório. Passamos a repetir, daquele dia em diante, a mesma
sistemática, com evidente aprendizado, confiança na qualidade da ração e
satisfeitos com a parceria.
Sua atuação foi de
inquestionável valor profissional. O homem certo no lugar certo.
A pesquisa realizada por
Markus, logo tornada pública, incentivou os produtores rurais a utilizar as
rações balanceadas na primeira etapa da vida do pinto. Duas semanas depois era
solto e terminava sendo um frango caipira precoce. Aceitaram a técnica pela
metade. A produção industrial de frangos ainda demoraria alguns anos até que se
tornasse corriqueira e mais uma atividade econômica viável para nosso produtor
rural. Markus foi um pioneiro.
Muitos anos depois e já
afastados da comunidade de Encantado, fomos surpreendidos pela visita de um dos
seus filhos em Xangri-Lá, que nos brindou com o livro de Markus, seleção de 51
gostosas crônicas de cidade pequena, semanais e divulgadas pela emissora de
rádio local. Emocionados pela gentileza e lembrança depois de tanto tempo e com
a leitura do livro, revivemos episódios descritos com a verve de um legítimo
filósofo de aldeia. Recordamos nossa permanência feliz em Encantado durante 11
anos. Retribuímos enviando-lhe um exemplar de nosso livro “Os Lampert –
Origens, História e Genealogia”.
Sempre admiramos que Markus
e d. Berta geraram seis filhos varões e a todos eles o casal proporcionou
estudos em universidades. Não deve ter sido fácil.
Nunca mais tivemos outro
contato, mas sabíamos de sua vida, inquirindo pessoas de Encantado a quem,
eventualmente, perguntávamos sobre os nossos amigos que lá permaneceram.
Deixamos nesta crônica a
nossa homenagem póstuma ao Markus, a alegria e a saudade de ter convivido com
ele e sua família. Que descanse em paz junto a Jehová.
REMINISCÊNCIAS
PROFISSIONAIS – 8
Em 1961, em Encantado, encontramos a
fábrica de rações construída, instalada e inativa. Faltavam apenas as balanças
automáticas acopladas para a descarga do misturador, a máquina de costurar a
boca dos sacos plásticos, o registro dos rótulos junto às repartições públicas
e, também nestes rótulos, a identificação de um responsável técnico: químico,
veterinário ou agrônomo. Faltavam também as fórmulas das rações para suínos,
aves e bovinos em suas respectivas idades. Ninguém tinha sido procurado para
assumir essas responsabilidades.
Conhecíamos a área por termos
frequentado nos EEUU em 1957, durante dois meses, a convite do seu Ministério
da Agricultura, junto com mais 13 brasileiros, cursos para “Swine Production”
no North Carolina Land Grand College em Raleigh durante um mês e outro em
viagens para conhecer criatórios de suínos, centros de pesquisas de nutrição,
fábricas de rações e matadouros frigoríficos. Retornamos munidos de tabelas de
valores nutritivos de cada componente de rações e, especialmente, o valor
nutritivo total a ser alcançado em cada tipo de ração, assim como os
suplementos de aminoácidos, minerais e vitamínicos. Nutrição animal tornava-se
apenas um tema de matemática, já que cada raça de reprodutores indicava os
níveis necessários. Bastava calcular os valores naturais e complementar com os
químicos. O cálculo de custo era elemento fundamental. Dominávamos o
conhecimento da área e estávamos aptos a disputar vendas com a concorrência.
Criamos as fórmulas e iniciamos a
produção para rações de suínos – logo ampliada para bovinos e aves. A
satisfação e aprovação dos consumidores ampliou significativamente a produção
diária. Não se produz um suíno “tipo carne” sem raça, nutrição e manejo. Ademais,
não pode ser esquecido o financiamento, já que o suinocultor encontrava-se, no
momento, deveras descapitalizado. Tomamos as providências junto ao Banco do
Brasil, tornando a Cosuel intermediária e fiadora de cada financiamento a ser
aprovado pela cooperativa. O Banco colocava um valor à disposição, logo
sensivelmente aumentado, e funcionários da Cosuel faziam um pequeno plano de
manejo, evitando o desconforto de cada um ir ao Banco. Em quinze minutos, a
operação de financiamento estava executada. Era permitido à Cosuel financiar
associados residentes nos municípios periféricos. A Cosuel não financiava em
dinheiro e sim em adubos, rações e sementes, o que evitava comprovação do uso
do dinheiro - era chamado de “repasse”. Teve total sucesso e foi responsável
por atração de maior número de associados, assim como crescimento significativo
da agência do Banco do Brasil de Encantado.
Com essas providências, iniciava-se
o fim de safra e entressafra, tão danosas ao equilíbrio da produção/consumo.
Estabilizava a produção e os preços durante todo o ano.
Lentamente, com o plantio crescente
da soja e produção de óleo vegetal comestível, o consumo de banha foi cada vez
mais diminuindo, substituído por gorduras vegetais mais saudáveis, enquanto o
preço da banha ia se desvalorizando. Para termos uma ideia, com um quilo de
banha se compravam quatro quilos de pernil. Em pouco tempo, com um quilo de
pernil compravam-se quatro quilos de banha.
A produção de suínos encaminhou-se
no rumo certo: menor número de suinocultores e produção maior individual dos
que se especializaram em criar o suíno “tipo carne”.
De imediato, a Cosuel implantou um
secador de cereais, descarga a granel em moega e balança para caminhões. A
mecanização cada vez maior da fábrica que, contudo, estava prevista, em breves
anos se tornaria obsoleta e teria de ser reformulada e aumentada para produção
e transporte de rações a granel em veículos específicos.
Doze anos depois, já em Serafina
Corrêa, onde também assumíramos a formulação das rações, fomos informados da
existência de um laboratório particular de análise de rações. Portando amostras
das nossas rações e levando cópia das formulações, contratamos os exames de
qualidade. Fomos pessoalmente à Campinas, em São Paulo, e uma semana depois
recebemos os laudos. Não sugeriram nenhuma adição ou subtração da ingredientes.
REMINISCÊNCIAS
PROFISSIONAIS - 9
A
REPRESÁLIA
Corria o ano de 1966 e como
consequência do contido nas Reminiscências Profissionais nº 1, era esperada uma
tentativa de represália por parte da Cooperativa que fora prejudicada em seus
interesses, a ponto de ter de ser absorvida por uma sua coirmã na mesma cidade
e com os mesmos associados. Também os diretores eram os mesmos e não deixariam
passar em branco o que consideravam uma falta de coleguismo da Cosuel.
Um dos seus diretores era deputado
estadual e ligado ao cooperativismo social e oficial do estado e deve ter
acionado o DAC (Departamento de Assistência ao Cooperativismo) para dar uma
“batida” na administração e registros das Cosuel. Deveria haver algum “furo” a
ser detectado.
Eu já prevenira o contador,
Flordelino Goldoni que se preparasse.
Passadas três semanas, ele entra na
minha sala e, rindo, me disse: terça feira dois homens do DAC virão aqui.
Solicitaram uma sala, mesa, duas cadeiras e uma máquina de escrever. Que
venham.
No dia marcado, o contador
apresentou-os e eu afirmei que tudo o que eles solicitassem seria atendido. Se
houvesse algum problema, que viessem falar comigo.
Eu havia dito ao contador, que também
acrescentasse uma máquina elétrica de calcular, logo dispensada pelos fiscais.
Não entendi. Fariam cálculos de cabeça?
Pediram ao contador todos os livros
de presença e de atas dos últimos cinco anos das Assembleias Gerais, das
Reuniões Mensais do Conselho de Administração
e
das Reuniões da Diretoria. As reuniões diárias, pela manhã, não tinham atas.
Eram informais.
Na mesa deles, uma montanha de
livros e começaram o trabalho. Com um sorriso de deboche, o contador me passou
a informação. Eu o havia preparado: Separe os balanços gerais dos últimos cinco
anos, balancetes mensais deste ano, verifique se tem vale no caixa, se os
demonstrativos bancários estão conciliados, a estatística da situação de
liquidez financeira com seu crescimento mensal
nos últimos doze meses, quantos dias a contabilidade está atrasada –
quatro – . Nada disso foi pedido pelos fiscais.
Eu, quando atendia uma solicitação
de uma cooperativa com problemas, lia o balanço e anexos e também perguntava os
sintomas. Fácil. Eram sempre os mesmos.
Estavam hospedados num hotel uma
quadra distante de minha casa e lhes dei carona durante os três dias.
No início da tarde do terceiro dia,
afirmaram que o levantamento estava pronto e fariam o laudo e que eu teria de
dar meu conforme.
Ficaram três dias procurando nos
registros dos livros de presença se algum associado não teria assinado duas
vezes, se fora alcançado o número mínimo de presentes de acordo com os
estatutos e outras perfumarias inúteis.
O laudo: De acordo com as normas do
Dec. xx, itens xx, alíneas xxx e por aí afora, repetindo decretos, artigos,
itens e alíneas até encher uma página inteira, não dando a menor possibilidade
de entender nada. Como tudo foi aprovado, o teor não me interessava. Com tal
complexidade do laudo, qualquer pessoa certamente poderia ingressar no
departamento de imigração dos Estados Unidos e até da Coréia do Norte. Assinei
o “de acordo”.
Aprovados com louvor, perguntamos se
à noite, aceitariam um churrasquinho no escritório, lombinho, costela de porco
e salsichão, junto com diretores e funcionários da contabilidade. Aceitaram. -
Tomam aperitivo – Não. - E uma cervejinha gelada. - Até vai. Eu queria,
discretamente, fazer algumas especulações e as fiz: Como escolhem uma
cooperativa para ser fiscalizada? Por sorteio? Não, quase sempre por alguma
denúncia de provável irregularidade. Agimos imediatamente.
Durante a confraternização inquiri:
E se alguma reunião da cooperativa foi realizada sem o número legal, o que
acontece. – Ela é notificada – E se reincide. – É notificada novamente. - E
depois? - Nada mais, permanece notificada. A cooperativa notificada deve ficar
apavorada com tamanha possibilidade. Risível.
Perguntei se recebiam dos chefes um
roteiro a seguir. Sim, o mesmo que praticamos aqui. Gente boa e mal dirigida.
Perda de tempo e dinheiro. O retrato da nossa burocracia estatal.
Em resumo, a “batida” fiscal não
serviu para nada, além de manter funcionários públicos ocupados em trabalhos
que não fiscalizam nada. O cooperativismo que se rale e muitas cooperativas
cujo destino fatal poderia ser evitado se algum órgão oficial ou ligado às
associações de cooperativas tivessem identificado seus problemas e aceitassem o
concurso de quem entende do assunto.
Nenhum
funcionário do DAC serviria para isso. O DAC, simplesmente não servia para nada
além de cabide de empregos.
REMINISCÊNCIAS PROFISSIONAIS
- 10
Como a cobiça de 300 toneladas de
sorgo se transformou em campus universitário.
A ESCOLA AGRÍCOLA DE
ENCANTADO
Em
Porto Alegre, entrei nos escritórios da União Sul Brasileira de Cooperativas,
onde a Cosuel era associada e participante. Logo notei um alvoroço na sala.
Corria a notícia que uma entidade de Cooperativas da Igreja Católica da
Alemanha tinha disponibilizado 300 toneladas de sorgo em grão, destinados à
Cooperativas do RS que em situação financeira de risco, se habilitassem a
recebê-las gratuitamente e sem nenhuma reciprocidade.
Logo, um dos presentes (um dos
poetas do cooperativismo) tratou de eliminar a Cosuel da participação e
disse-me. – O Marchese me falou que a Cosuel não tem mais problemas financeiros
– Respondi: Tivemos “sorte”. Permaneci mais um pouco e retirei-me.
Fui á uma sala anexa onde havia
telefone e com vários contatos, descobri o nome da entidade alemã e seu
endereço postal. Calei-me e voltei para Encantado.
No caminho de volta, imaginei
correspondência aos alemães mostrando nosso interesse. Relataria a verdade, não
tínhamos problemas financeiros, mas estávamos em período de transição entre o
suíno tipo banha e o tipo carne. Seria necessária a contratação de técnicos em
suinocultura e financiamento de rações de fabricação própria. O Suinocultor
estava descapitalizado e desgostoso. Não havia ainda financiamento bancário.
Em Encantado, redigi a
correspondência, dei para o colega Egon Lohmann dar uma olhada. Sugeriu alguns
acréscimos e traduziu o teor para o Alemão. Assinamos e enviamos a
correspondência. Pedi sigilo.
Não recebemos resposta, mas semanas
depois fomos informados que uma cooperativa de laticínios de Pelotas fora
escolhida para receber todo o sorgo. Já estava no porto.
O sorgo não tinha plantações do RS,
era mercadoria sem preço e nenhum interesse de algum comprador. Logo tomei a
decisão de ir na madrugada do dia seguinte a Pelotas e tentar adquirir parte do
sorgo para a Cosuel usá-lo em suas rações balanceadas para suínos. O produto
não tinha cotação e teoricamente valia cerca de 10% menos que o milho.
Ofertamos 75% do valor do milho para
100 toneladas, um carregamento semanal, as duas primeiras cargas com o cheque
do pagamento entregue ao motorista. O restante faturado em 30 dias e duplicata
descontada em Banco. A operação foi
realizada (na palavra) com recíproca satisfação. Um mês mais tarde, pelo
telefone ofereceram o saldo de 40 toneladas disponível, nas mesmas condições.
Aceitamos.
Chegou correspondência dos alemães,
oferecendo o envio de um técnico em suinocultura que falava também o inglês e
recém-casado com uma brasileira, durante no mínimo dois anos e gratuitamente,
desde que a Cosuel alugasse e mobiliasse uma casa para sua residência em
Encantado. Como sua principal e inicial área de atuação seria Arroio do Meio,
onde 90% era bilíngue, não haveria problema de comunicação entre os
suinocultores e o técnico alemão. Chegou de viagem Jurgen (leia-se Iurguen) e
passou a residir em Encantado.
Após o primeiro contato, passamos a
tratar das fórmulas de fabricação de rações para os diversos tamanhos do suíno.
Afirmei que o nutricionista era eu mesmo e tinha os conhecimentos necessários.
Ele mostrou-me uma tabela em alemão
dos valores nutricionais existentes em todo o tipo insumos de rações, em ordem
alfabética. Eu dispunha a mesma em inglês. Conferimos, eram iguais.
Partimos para a comparação de
valores totais de nutrição inicial para suínos. Para recíproca surpresa, eram
99,5% similares, diferenças mínimas e desprezíveis num mineral (SE), em dois
aminoácidos e duas vitaminas do complexo B. Num gesto para evitar discussões,
afirmei que modificaria nossas fórmulas para atingir os valores que ele
dispunha nesta e nas outras rações para suínos. Com isso, nós teríamos o aval
dele, um nutricionista alemão, nas nossas fórmulas.
Ele logo mostrou sua capacidade de
trabalho e persuasão, inicialmente em Arroio do Meio e depois em todos os
municípios periféricos de Encantado. A venda de rações, agora com
financiamentos do BB, aumentou consideravelmente e o presságio era de que nos
meses de entressafra (janeiro a abril) haveria substancial aumento dos abates,
meta para o equilíbrio dos preços durante todo o ano.
Um dia, apresentou-se com um padre,
(Martin Schneiderbauer), falava alemão e um pouco de inglês, o suficiente para
nos entendermos quando não havia tradutor perto. Tinha a missão de verificar a
possibilidade de criar uma escola agrícola, financiada pela mesma entidade que
enviara o técnico na criação de suínos. Desejava conhecer a região e
mostrei-lhe um mapa.
Num domingo à tarde levei-o para um
voo panorâmico na região do vale do Taquari, mostrando onde eram as
colonizações alemã e italiana. Achou que a região era similar aos vales do Reno
e do Mosela..
Eu não entendia de escolas, não
queria que ela fosse dependente da Cosuel e por isso procurei as lideranças do
município para que assumissem os encargos.
Prometi o apoio da Cosuel, mas não
tinha tempo nem interesse para participar dos trabalhos.
A escola foi criada e eu pouco tempo
depois, em 1973, mudei de residência para Serafina Corrêa e nunca mais tive
qualquer informação.
Restaram as lembranças de que a
comunidade escolheu Ampère Giordani, professor e da liderança local, presidente
da FATERCO durante os três primeiros anos, que abraçou com vigor a condução dos
trabalhos, partindo do zero: Legalização de terras de propriedade do Ministério
da Agricultura, antigo e inútil Posto de Cooperação nas cercanias da cidade a
serem doadas à Escola, legalização perante a Secretaria da Educação, do
currículo, projeto e construções necessárias,
professores e um número quase
infinito providências.Teve a participação ativa de Severino Augusto Pretto nas
obras civis. Eficientes, em noventa dias a escola estava apta a receber alunos
e professores.
Lembro ainda, o flagrante
desinteresse dos filhos dos colonos em frequentar a escola. Era um sinal de que
o êxodo rural estava se acentuando.
Surgiu o boato que os alunos que
fossem aprovados seriam contratados pela Cosuel e isso me trouxe dissabores e
desgaste junto aos associados da Cosuel, que vinham todos os dias buscar
inscrição de seus filhos. Cabia a mim desiludi-los e que, justamente, a escola
era que permanecessem nas propriedades rurais. Tive de ouvir algumas palavras
desagradáveis e ameaças veladas. Essa situação acentuou a minha resolução de
que o meu tempo de Cosuel estava chegando ao fim e era hora de procurar
trabalho em outro lugar. Era meados de 1972 e em 31 de março do próximo ano
venceria meu mandato de diretor eleito. Igualmente, estava sendo proposta a
modificação dos estatutos, onde os executivos não seriam mais eleitos e sim
contratados como gerentes. Eu não teria interesse.
Acompanhei de longe, o trabalho
profícuo do Ampère e do Severino e as soluções para os contínuos percalços que
se apresentavam todos os dias, ainda mais com os contatos burocráticos
permanentes com o Ministério da Agricultura e Secretaria da Educação.
Enfim, a escola da Faterco foi
inaugurada e a cada ano, os alunos foram rareando e com o fim da subvenção
alemã à escola e depois de eu não residir mais em Encantado, encerrou as
atividades, sendo o estabelecimento então alugado à Prefeitura Municipal e à
Universidade do Estado do Rio Grande do Sul (UERGS), com diversos cursos de
interesse da agricultura-pecuária e prestando ensino similar ao que a Faterco
proporcionava. O esforço de poucos não foi em vão.
Não foi possível estancar o êxodo
rural dos jovens que tinham outras ambições. Restaram no interior muitas glebas
de terras onde somente idosos ainda realizam algumas atividades de
sobrevivência. Contudo, a região hoje tem um campus universitário para os
jovens filhos de colonos se aperfeiçoarem na sua profissão.
Boas lideranças fazem bem a uma
comunidade.
REMINISCÊNCIAS
PROFISSIONAIS - 11
A PRIVADA HIGIÊNICA
Lá pelo ano de 1965, o novo
prefeito, Adilar Giuseppe Bertuol, recém empossado, tinha projetos para o
retomar o crescimento do município de Encantado, sabendo que deveria começar pela agricultura.
A prefeitura distribuiu mais de mil
mudas de árvores da flora local e mais mil de pinus elliotis entre os
agricultores.
Severino Augusto Pretto comandou a
“operação tatu”, a coleta de amostras de terra para exame laboratorial e o
necessário para a sua correção. Teve sucesso.
Era o começo de uma nova era na
produção rural. Atingiu as expectativas.
Entre outras medidas, tratou de trazer
para o município um escritório da ASCAR, hoje EMATER, cuja competência já dera
mostras em outros municípios.
Após a instalação, o agrônomo e a extencionista
convocaram pessoas da comunidade para tomarem conhecimento da programação de
atividades para o ano que se sucederia, entre eles, os três gerentes dos
Bancos, Severino Augusto Pretto, representando a Prefeitura, duas professoras e
eu, representando a Cosuel. Mais algumas outras pessoas da comunidade. Ouvimos
e aprovamos.
No ano seguinte, nova reunião com as
mesmas pessoas e mesmos fins. Logo no
início, interrompi a nova programação e perguntei se a do ano anterior havia
sido cumprida. Informação positiva. Perguntei mais – quantos folders de
privadas higiênicas haviam sido distribuídos – duzentos. Quantas haviam sido
construídas – uma. Quem construiu, pois quero registrá-lo no meu livrinho de
capa branca – Fulano de Tal – Eu o conheço, mora logo antes de chegar à vila Dr.
Ricardo, entra à esquerda e cem metros adiante está a casa dele. Um dia irei
visitá-lo.
No ano seguinte, perguntei sobre as
privadas – oito – A nova moda estava se iniciando. Tinha futuro.
Numa oportunidade, eu e o colega da
Cosuel Nelson Schwambach estávamos voltando de Ibirubá e ainda havia tempo de
visitar o tal de Fulano, que mereceu meus melhores elogios. Saímos da estrada e
de longe, já vimos um clarão, a privada estava pintado com cal e brilhava ao
sol da tarde contra o arvoredo. Chegamos à casa e fomos recebidos com alegria
pelo colono.
Viemos conhecer a tua privada
higiênica e te felicitar. O visitado ficou meio sem graça e eu fui logo me
dirigindo à privada que estava com a porta fechada pelo lado de fora. Abri a
porta e o recinto estava atravancado de ferramentas rurais: enxadas, ancinhos,
picaretas, vassouras, serra para toras, serrotes, alavancas e uma caixa de
ferramentas sobre a bancada e assento.
Pela ausência de uma caixinha com
sabugos de milho de várias bitolas (que substituiriam o papel higiênico –
(vapt-vupt), constatei que a privada jamais tinha sido usada e servia apenas
como um monumento inútil ao progresso que estava despontando.
Imaginem a minha decepção, a
fisionomia perplexa do dono da privada, com cara de quem tinha sido flagrado
pecando contra o sexto mandamento e a risadinha de deboche do Nelson.
Tive que aguentar suas gargalhadas até
o fim da viagem.
REMINISCÊNCIAS
PROFISSIONAIS – 12
O BANQUINHO
Em 1966 a Cosuel, em sua fábrica de
laticínios em Arroio do Meio, tinha seis “linhas” econômicas de coleta de leite
cru no município, que se limitavam às várzeas do rio Taquari e do Forqueta na
região de colonização alemã e cogitamos de estendê-las até os altos de Nova
Bréscia, já de colonização italiana, com produção mínima de leite por falta de
comprador. Lá, ainda era desconhecida a inseminação artificial de animais.
Iríamos investir nessas áreas, visando trazer
mais associados para preencher a ociosidade parcial da fábrica de laticínios e
produção maior na indústria. Mesmo deficitária inicialmente, tinha um futuro
próximo positivo.
As “linhas” sucederam outra indústria
que as havia abandonado em face do interesse da Cosuel e sua extensão não
prejudicaria a rapidez da atual coleta.
Novidade: Tarros individuais numerados
e coleta apenas com pesagem na plataforma da fábrica, visando dinamiza-la e
evitando a presença do produtor esperando pela pesagem. Os tarros cheios
estariam disponíveis em uma plataforma na margem da rua, em frente à
propriedade rural e retornariam vazios na volta do caminhão. O colono poderia
voltar logo ao lado de sua Frau ou Donna na cama quentinha. Novidade na região
saudada por todos.
Um dia visitando a fábrica, perguntei
ao inseminador, funcionário da Cosuel, como iam as “coberturas” das vacas. Bem,
disse ele. Ontem iniciei trabalho na região de Nova Bréscia, assisti uma cena
bizarra e ainda tive que ouvir um desaforo da esposa do associado. Rindo,
relatou-me o episódio:
Ao chegar de moto na propriedade, fui
recebido pela esposa do produtor, que teve de ausentar-se e me levou ao
estábulo onde a vaca a ser engravidada estava presa numa corrente. Disse-me que
o marido a havia instruído a disponibilizar o que fosse necessário. Com o dedo,
mostrou-me uma bacia com água, um pedaço de sabão e uma toalha limpa e …….. um
banquinho de quatro pernas. Falta mais alguma coisa? Não, está bom assim.
Ela afastando-se, saiu do estábulo e
antes de fechar a porta, com o rosto severo, disse-me em tom ofensivo
“porcatchon” e fechou a porta.
A curiosidade é um atributo feminino
positivo e imaginei que ela trataria de ver o que iria acontecer. Uma fresta na
parede de madeira do estábulo seria o lugar ideal e discreto para espiar sem
ser vista. Imaginou o homem em ação, realizando a cobertura da vaca. Que
história “cabeluda” para contar às comadres no domingo, depois da missa.
Terminada a operação, ao despedir-se
pedi que informasse o marido que a vaca havia sido inseminada e fui embora,
ruminando o que poderia ter acontecido com os pensamentos da mulher.
Logo vimos uma situação divertida e
passamos a imaginar o que teria se passado na mente fértil da mulher.
Concluímos que ao receber instrução do marido tenha refletido: A outra vaca do
casal quando entrou em cio, ela tinha ajudado o marido para levar a vaca até um
vizinho que dispunha de um touro de raça indefinida. Assistira à fecundação e a
vaca fora trazida de volta. Agora, estava tudo mudado e a fecundação seria
feita um homem especializado, empregado da
Cooperativa. Em sua imaginação, calculou a virilha do homem e a altura da vaca e teria concluído que ele necessitaria de um banquinho para acertar o nível.
Cooperativa. Em sua imaginação, calculou a virilha do homem e a altura da vaca e teria concluído que ele necessitaria de um banquinho para acertar o nível.
Que modernidade diferente! Como um
homem aceita esse trabalho e como o padre permitia isso? O terneiro nasceria
parecido com o inseminador? Dio Cristo! Madonna! É o fim do mundo!
Depois de comum acordo, rimos à
vontade do ocorrido e só agora, mais de meio século depois, resolvi contá-lo.
Se non é vero, é bene trovato.
REMINISCÊNCIAS
PROFISSIONAIS – 13
O TORÓ
O prefeito de Encantado, Adilar
Giuseppe Bertuol, já em seu segundo ano de mandato, mantinha excelente convívio
com os padres das várias paróquias do município e seguidamente era ouvido por
eles.
Estava em curso a possibilidade de
implantação do suíno tipo carne, em substituição ao suíno tipo banha e
dimensionadas suas consequências junto aos colonos. O pensamente geral era que
inúmeros suinocultores desistiriam da atividade e a produção seria compensada
por um número de produtores com criação em maior escala.
A produção média dentre os sócios da
Cooperativa não chegava a dez suínos por ano. Número insuficiente para
caracterizar um suinocultor.
Deveria acontecer a seleção natural do
mais apto, preconizada por Darwin. E os demais?
Igualmente, no RS havia 55
frigoríficos com abatedouros. Sobreveriam todos? E as repercussões nas
comunidades? Tema complexo.
O prefeito, inquirido, aceitou a
sugestão de convidar-me para uma palestra e debate com os vigários sobre tema.
- Que escolham a data, hora e local, irei
consigo.
No sábado seguinte, à tarde,
reunimo-nos no salão paroquial da vila Dr. Ricardo, hoje município. Seis padres
do interior me esperavam.
Fiz uma pequena dissertação e aguardei
as perguntas, logo avisando que eu não era um profeta, mas transmitiria o meu
pensamento.
Em clima ameno fui respondendo às
perguntas, até que o padre de Putinga, em tom áspero e voz incisiva (parecia o
Torquemada inquirindo um judeu na idade média.), perguntou-me:
- Quem tem o poder de decidir os
preços dos suínos a serem pagos aos associados da Cosuel.
- Sou eu.
- E por que não paga preço maior?
– Porque tenho a limitação de obter
resultados no fim do ano. A pretensão é de 2 a 3% sobre o montante de vendas e
eu jamais ofertaria preços que levassem a Cooperativa a prejuízos. O preço
atual é com resultado zero. No momento não cabe aumento de preço.
- Cooperativas não visam lucros, disse-me ele.
- Mas são necessários para compensar a
inflação, manter recursos no caixa e capitalização para investimentos.
Cooperativa que não tem superávit, o seu destino é fechar as portas.
- Por que não pagam os suínos a vista?
- Simplesmente porquê a Cosuel não
dispõe do dinheiro.
- O que fariam os suinocultores que
abandonassem a criação de suínos?
- Temos programada a instalação de uma
fábrica de laticínios. Essa era uma opção, a outra, um abatedouro de aves. A
cooperativa estava atenta.
O prefeito tentando encerrar a reunião
perguntou – Alguém tem mais uma pergunta?- Eu tenho, falou o padre.
- Quanto a Cosuel lhe paga de salário?
- O senhor sabe quanto o médico de
Putinga ganha por mês?
- Não sei, mas tenho uma ideia.
- (Sorrindo) Eu recebo menos da metade
da receita dele.
Olhei para o Adilar e falei-lhe
“vamos? Levantei-me e não dei tempo para novas perguntas.
Despedimo-nos com os ânimos meio
serenados. Dei a mão para todos, mas padre de Putinga estendeu-me a mão e olhou
para o lado, visivelmente agastado.
No retorno, o Adilar e eu comentamos
que o padre nos havia feito uma cilada. Não queria nada com o suíno tipo carne
e sim provocar um aumento no preço do porco por pressão dos padres e saber o
meu salário.
Tempos depois, ocorreu o falecimento
de Demétrio Parisi, decano cooperativista residente em Charqueadas, no interior
do distrito de Putinga. Ex-professor, um dos líderes da fundação da Cosuel,
gozava de alto conceito e eu mantinha respeito e consideração por ele.
Seguidamente me visitava na Cosuel e o nosso tema era sempre o cooperativismo,
que estava atravessando um período de dificuldades, inclusive com o fechamento
de inúmeras cooperativas. Na minha opinião, apenas deficiência administrativa.
Enterro marcado e providências
tomadas. Uma multidão compareceu, inclusive eu.
O relógio marcava as horas, nem
notícia do padre e o tempo estava escurecendo, prenunciando temporal.
Preocupação generalizada. Ao aproximar-se o temporal, muitas mulheres foram
embora levando os seus filhos. Havia a possibilidade das crianças se molharem
na chuva.
O padre de Putinga só chegou duas
horas depois do horário marcado, fez a encomendação no corpo que estava na
capela e o féretro se dirigiu ao cemitério, nas imediações.
No momento de baixarem o caixão,
sentia-se que a chuva era iminente e vi quando um jovem funcionário da
Cooperativa de Charqueadas, já incorporada pela Cosuel, vinha abrindo caminho
às cotoveladas no meio da multidão e portava um guarda-chuva. Eu logo percebi
que era para o padre.
O padre era o único responsável por
mais de trezentas pessoas que se encharcariam com a chuva que desabaria em
instantes. Não mesmo.
Eu tinha na minha memória um Ativo
Realizável a Longo Prazo e era hora de cobrá-lo. Eu o faria, com juros de mora
e tudo o mais.
Chamei-o – Vem cá e tomei o guarda
chuva da mão dele. Ele ficou perplexo, nos encaramos por seis segundos e o toró
anunciado desabou, molhando todo o mundo, inclusive eu, que fiquei com o
guarda-chuva fechado na mão, em posição vertical. As pessoas que me cercavam,
riram-se do ocorrido.
Nunca mais vi um a encomendação tão
rápida.
Todos somos iguais perante o Senhor,
na noite, no sol e na chuva.
O defunto foi o único que não se
molhou.
S P R I T O
D E M I C O
Lá
pelo ano de 2002, encontrei, não lembro onde, cinco páginas avulsas de um livro
de nome “Cidades Vizinhas”. O capítulo estava incompleto e faltava o final da
sátira. Não consegui saber o nome do autor.
O tema me interessou pois eu fora testemunha dessas ocorrências ainda menino.
Fiz xerox das páginas e coloquei uma folha de papel dobrado servindo de capa
com o título do conteúdo.
Guardei o impresso tão
bem guardado que nunca mais o encontrei. Em fins de abril de 2015, numa pasta
de couro, junto com outros trabalhos históricos meus que não seriam divulgados,
encontrei o dito xerox. Ufa.
Como o tema era uma
briga generalizada, em Estrela, depois de uma partida de futebol vencida pelo
Estrela Futebol Clube contra o Clube Esportivo Lajeadense, por 2 x 1, passei a
procurar o nome do autor. Pedi socorro a vários amigos e J. A. Schierholt
descobriu e me indicou o nome, mas desconhecia o teor do livro. Era Olides
Canton, de Arvorezinha, autor de várias obras editadas. Ele deve ter
interrogado muitas pessoas, pois fez um relato saboroso e debochado da peleia
ocorrida em 1940. Nem tudo confere com o que eu vi, mas decorridos mais de 60
anos, talvez, a memória dos entrevistados se confundira um pouco.
Entre meus amigos de
Lajeado ou Estrela, nenhum sabia da existência desse livro.
Esclareço que o apelido
de Spritu ou Sprito de Mico, apodo do personagem e sub título, foi originado
por discussão com um cliente à respeito de um serviço de mecânica de automóvel.
O mecânico acusou o outro de estar com espírito de mico com ele, tentando
lográ-lo.
A seguir, o capítulo xeroqueado
das páginas 55 a 59.
ESTRELA X LAJEADO
“Spritu de Mico”
Lá pelos idos de 1940,
em plena ditadura do “bom velhinho”, o então chefe de polícia do Rio Grande do
Sul, Cel. Dagoberto, baixou uma portaria e PROIBIU jogos de futebol entre o
ESTRELA F.C. e SPORTIVO LAJEADENSE! Os antecedentes indicavam memoráveis peleias,
que embora não alcançassem as famosas degolas de 23, estremeceram o
Alto-Taquari. O rio cristalino e limpo daquele tempo era o divisor do ódio
entre estrelenses e lajeadenses, rivais além do futebol. De repente, o bom
senso voltou, foi instituída a Taça da Paz, para selar o reatamento das
relações entre as margens esquerda e direita do Taquari. A Agência Chevrolet,
capitaneada pelo velho Spohr, caprichou no troféu.
Trombetas e fanfarras
saudaram a boa nova. A pomba da paz voltara a voar. Os bodoques e estilingues
foram aposentados e os guerreiros das duas bandas deixaram enferrujar suas
gloriosas adagas enfiadas em bainhas de couro de mula.
A “Baixada” estrelense
viveu um dia de esplendor no dia do jogo. Gente até debaixo da cama da velha Moda,
que fazia uns pastéis de carreira e “nariz entupido”, recheado com creme de
ovos, amarelinho, amarelinho. Não era, porém, parecia.
.
Nosso glorioso Estrela tinha o Negrão no
golo e logo na primeira investida do ataque do Lajeadense, o joelho de nosso
arqueiro atingiu abaixo do umbigo do ponteiro Cé. A voz de comando veio do
velho Caboclo, lá das bandas de Cruzeiro do Sul, território “inimigo” dos
estrelenses. O pai do Ênio, um dos maiores craques de todos os tempos do Alto
Taquari, deu o berro e as tropas adversárias passaram por baixo dos parapeitos
(não existia alambrado) e tentou fazer uma manobra de “pinça”. O entrevero foi
dos mais lindos, começando com uma bocha nos beiços do Cunha, um gurizote
debochado barbaridade. A cerca de tábuas não resistiu ao entrechoque e ruiu
como o muro de Berlim, deixando a alemoada e os pelos duro numa guerrilha de
ruas, todas elas repletas de cascalhos das barrancas do Taquari.
Enquanto o João Porto mordia a mamica do
Klein, o Mário Lampert, que chegou a ser deputados estadual levou um ½ tijolo
na cabeça, protegida por um daqueles capacetes que os ingleses usavam quando
saquearam o continente africano. Foi farelo para todos os
lados e o sangue brotou na cabeça da grande figura que foi o Mário Lampert. Em
um dado momento, as fileiras estrelenses estavam caindo feito pinos de bolão.
Era o Spritu de Mico. Um negrão tipo os armários antigos de quatro portas, que
vinha fazendo grande estrago. Tinha gente até cuspindo os dentes, perdendo a
“chapa” e sangrando pelas ventas. Então os soldados da Brigada Militar, ainda
herdeiros belicosos e valentes de seus antepassados guerreiros entraram em ação.
Destaques para o Francelino e o Aires. Desembainharam suas espadas “rabo de
galo” (parecidas com uma cimitarra) e afofaram as paletas do Spritu. Já com o
matambre prá lá de espichado, o negrão procurou refúgio debaixo do Ford 23,
acho que do seu Lulú Ruschel. Cercado e apertado como rato em guampa, reuniu as
últimas forças e se mandou ladeira abaixo na Rua da Praia em direção à barca do
Adelino Englert, que fazia a travessia do rio. Começou para os lajeadenses a
longa retirada aquática, tipo a de Dunquerque dos ingleses na 2ª Guerra
Mundial. Os estrelenses, com o farto material de cascalhos, bombardeou os
lajeadenses encurralados e desprotegidos dentro da barcaça. Os “hospitais de
campanha”, comandados pelo Dr. Breier, ficaram lotados com gente de côco
quebrado pela mira certeira dos estrelenses. A paz, que nem fora selada, já se
transformava em guerra declarada.
Anos mais tarde, com as feridas já
lambidas e saradas, após muitas conferências de cúpula, a normalidade voltou a
imperar. Surgiram os grandes times. O do Estrela (5x0) em cima do Lajeadense,
com Negrão; Madeira e Nelsinho; Duca, Gregório e Markus; Lino, Ovídio, Acosta,
Ado e Élico. Do lado direito surgiram craques de primeira grandeza, como Ênio
Azevedo, que tinha um chute mais forte do que “peido de burro atolado”; os
zagueiros Baldo e Klein, os arqueiros Schimitão, mais tarde Assis; Darcy
Schmidt, Brauner (que jogou ao lado de Pelé no Santos), os irmãos Crespo,
Pintado (jogaram no Grêmio POA), e o grande Pequeninho, Costinha, Ilmo Fleck,
Boris, Moacir (jogou no Cruzeiros POA), Paulo Kieling e Paulinho Heineck.
Quase ao nascer dos anos 50, brotou
na Baixada e se consagrou no então estádio Walter Jobim (hoje municipal), o
campeão do Alto Taquari, defendido por Amaury (atuou pelo São Paulo, na capital
bandeirante); Lamão e Nelsinho; Ataíde, Tito e Laurinho; Talo (adivinhem quem é
este veloz e aguerrido pioneiro?)
Yéyé, Prego (que foi craque do
Grêmio POA), Mirinho e Polaco ou Loy (que jogou com o Geada no Floriano NH),
Renato Porto, Vicente Meira, Wilson Onzi o negro Chipi, Geraldo, o zaguero
Carrion, o goleiro Stefani, o Bepi e tantos outros.
Entretanto, em todos os tempos, os
dois símbolos do clássico, às vezes sangrentos entre Estrela x Lajeado, foram o
zagueiro estrelense Nelsinho, o famoso pé de ouro, e um dos maiores atacantes
de todos os tempos do futebol gaúcho, o grande comandante Ênio Martins de
Azevedo.
Evocar este passado, sem lembrar as
figuras magistrais de Aloysio Schwertner, Achiles de Vianna Morais (o eterno
Quilote); o velho Viola, jogador da seleção uruguaia dos anos 20/30, Bertold
Gaussmann, Edmundo Hergoemöler, Heitor Kist, Calvino Reis, o tesoureiro Kreutz,
chefe da copa Edgar Müller (o schnaps e a cerveja davam mais renda que as
bilheterias), Wilimar Schneider, Nilo Luchesi, Armando Gemmer, Salvo Abech,
Fritz Seibot, pelo lado estrelense e de Lajeado, o Carlos Trierweiler, o Carlos
Marques, o Roque Lopes e tantos outros abnegados e heroicos seria uma lacuna. A
eles a nossa saudade e as nossas homenagens. No apresilhar destas linhas,
destaco como craque que foi, dirigente que ia aos últimos sacrifícios, o grande
Eugênio Noll, o Óigen. Com ele e já com quase mais ninguém reparto, quando
nossos encontros, as evocações e um passado romântico, doce e que nos proporcionou,
talvez, os mais significativos momentos de nossas vidas.
Ainda hay peleas nas barrancas? Não.
Os peleadores morreram agarrando a alça do caixão do Estrela F. C. Sem inimigo,
o Sportivo Lajeadense, ainda ativo e glorioso, perdeu a joia mais rara de sua
já longa existência: o clássico das barrancas. Era a nossa Copa do Mundo. Podia
se ganhar do Grêmio, do Inter, do Juventude, do Floriano, do Esportivo de
Bento, do Santa Cruz, do …….. e aqui termina o Xerox, na página 59 do livro
Cidades Vizinhas – Amor e Ódio, do escritor de Arvorezinha Olides Canton. De
forma nenhuma consegui encontrar o restante do capítulo. Um dia irá aparecer.
Em 1940, eu tinha onze anos e fui
testemunha ocular de alguns episódios acima referidos e de outros tomei
conhecimento pelo depoimento do meu pai Mário Lampert, também presente no jogo
e espectador da briga.
Me permito algumas retificações no
trabalho do Olides, seguindo a sequência de sua sátira:
Durante a partida daquele domingo
não houve briga, nem de jogadores nem de torcida, apesar das trombadas e
caneladas recíprocas entre os atletas, saudadas com um “bah” pelas torcidas.
Muito menos invasão de campo por torcedores e derrubada da cerca, fatos
ocorridos anteriormente em outros jogos.
Entre as figuras proeminentes do
Clube Esportivo Lajeadense, é citado Carlos Trierweiler. O Carlos tinha a minha
idade e o dirigente lajeadense era seu pai Octávio Trierweiler
O campo de futebol do Estrela F.C.
era na barranca do rio, na beira do local denominado Buraco dos Cachorros,
propriedade do meu avô materno Mathias Ruschel Sobrº, que o alugava ao Clube
estrelense.
A copa era explorada pelo clube, mas
minhas tias, numa lateral, mantinham uma pequena banca, onde vendiam fatias de
bolo aos espectadores.
A torcida estrelense ficava no lado
da barranca, com o sol nas costas e os visitantes de frente para o rio e para o
sol.
Assisti o jogo do segundo time (1 a
0) para o lajeadense e o jogo do primeiro time (2x1) para o Estrela, já
mencionado.
Terminada partida, a retirada
coletiva dos jogadores misturados ao público, pela rua perpendicular e
contrária ao rio.
Eu, que assistira o jogo com outros
meninos, decidi ir até a banca da tia
Lena no lado oposto do campo e filar uma lasca de bolo: Leandro. Queres uma
fatia de bolo? - Quero, e me dirigi ao portão de saída. Fui o último a sair.
Poucos metros à minha frente, um
grupo de seis adultos, bem vestidos, caminhava em linha.
De repente, ouço passos apressados
atrás de mim e alguém me ultrapassou, vestido com calças compridas e botina de
futebol nos pés. Tinha o cabelo molhado e uma trouxa de roupa enrolada dentro
de uma toalha debaixo do braço. Não o identifiquei.
Ao ultrapassar os seis, dois deles
correram e um deles acertou um chute no traseiro do cidadão, que parou e
voltou-se para ver quem era o agressor.
Logo foi cercado pelos outros e deram chutes a vontade no coitado. Eu,
surpreso, dava gargalhadas ao ver a cena inusitada. Não me dei conta que o ato
era uma covardia desnecessária e sem motivos. Hoje, creio que ele deveria ser
um jogador do 2º time do Lajeadense. Mesmo cercada, a vitima conseguiu uma
brecha e disparou rua afora, sumindo-se dobrando a esquina para a rua da praia
em direção à barca. Acho que vi sair faíscas da botina dele nas pedras do
calçamento.
Logo que dobrei a mesma esquina, já
vi meia quadra adiante o rolo. As torcidas, lajeadense no passeio esquerdo
(iriam dobrar depois para o rio) e a estrelense no passeio direito. Iriam
continuar pela rua da Praia ou subiriam o zigue-zague até a praça da matriz. No
meio da rua, com calçamento de paralelepípedos estavam os guerreiros e muitos
populares. Pugilatos, tapas, empurrões, desaforos, muitos pontapés nos
traseiros e nas canelas, o diabo. O Sprito já debaixo de um fordeco, todo
sovado de pranchaços de espada. Ele era um pacato mecânico em uma oficina de
automóveis, grande e de porte atlético 1,90 m x 100 kg. Me assopraram que seu
nome seria Benedito dos Santos. O Ubaldo Plein aos socos com um adversário, o
Arno Klein também, só que nas costas dele havia mais um que lhe aplicava
mordidas na paleta e depois encarapitou-se em seu dorso. Vi a esposa do seu
Caboclo, vociferando desaforos e ameaçando com uma sombrinha já com o cabo
quebrado e as varetas apontando para o chão. Muita gritaria de mulheres. Dá
nele. Separa. Ataca. Cuidado. Aparta. A briga era volátil. Dá um soco ou um
pontapé e corre, pois já vem mais dois atrás dele com intenções assassinas.
Todos caminhando devagar e sem parar.
Meu pai assistiu a tudo na calçada e
não se envolveu em brigas. Era um apaziguador. Usava o chapéu do explorador
inglês que Olides referiu, mas o meio tijolo e o sangramento foram fantasiosos.
Quando chegaram à rua da descida
para a travessia do rio, as torcidas se separaram e a peleia corpo a corpo
terminou. Os lajeadenses, em bloco, se aproximavam do local de embarque, a
barca já vinha atracando e um grupo de cerca de 20 estrelenses, com um claro de
30 metros atrás, esperava pelo embarque. Eu, atrás deles com alguma distância.
Eu fora de carona com um tio e voltaria para Lajeado um pouco mais tarde.
A barca ficou lotada de pedestres e
desatracou, iniciando a travessia. Nesse momento, dois ou três valentes
correram até a prancha de embarque, juntaram alguns cascalhos grandes e os
atiraram nos passageiros da barca. Tchum Tchum, caíram na água. Recarregaram
com munição de menor tamanho e novamente tchum. A barca já estava muito longe.
Os retirantes, apavorados no início e à medida que se afastaram dos projéteis,
brindaram os artilheiros com uma estrondosa vaia. Diziam que fora ouvida até no
morro de Cruzeiro do Sul. Duvido.
Entre mortos e feridos salvaram-se
incólumes todos os lajeadenses. Voltei para a casa do meu avô, a primeira bem
em cima da barranca, aguardando a minha carona junto com minha irmã Leonor.
Comentários correntes nas duas
cidades: Demos uma surra nos lajeadenses.
Entortamos os estrelenses a tapa. Todos vitoriosos.
A peleia teve grande repercussão e
chegou aos ouvidos do chefe de Polícia em Porto Alegre, que mandou dois
delegados às cidades para verificar o que acontecera. Essa medida não agradou
aos barranqueiros. A alemoada já estava sofrendo as acusações e perseguições
por ser taxada de “quinta-colunas” simpáticos ao nazismo e isso acabaria
azedando mais a situação. Os delegados iniciaram por Estrela ouvindo as
testemunhas. Todas se queixaram que apanharam dos malvados lajeadenses, que nem
respeitaram uma idosa. Gente de maus bofes. Chegados a Lajeado, a mesma lamúria
– Os estrelenses agrediam inocentes espectadores e mostravam improváveis
vestígios de agressões. Meu pai havia coligido depoimentos nesse sentido e foi
procurado pelos dois delegados.
Conhecidos os depoimentos dos
lajeadenses, os delegados logo manifestaram sua opinião. Apanhar não é crime. E
como todos apanharam sem bater em ninguém, sugerimos dar o acontecido por
encerrado. Que acha seu Mário? – Acho muito bom – Agora iremos à Estrela e
conferir. Também acharam muito bom encerrar a bagunça. Ficou por muito tempo
registrada na memória com mil versões, depois quase esquecida e agora pertence
à História
E assim, meus amigos, encerro o
relato de acontecimentos ocorridos 75 anos atrás ainda vivos na minha memória.
Meninos! Eu vi.
TRANSCRIÇÕES DA FOLHA DA
TARDE
de
19 e 20 de agosto de 1947. Curioso o linguajar da crônica esportiva da época:
NUVENS NEGRAS NO ALTO TAQUARÍ –
Perturbado o ambiente esportivo naquela região do Estado.
Não é só no foot-ball, mas em todos os
setores, que a rivalidade entre as duas progressistas cidades do Alto Taquari,
Lageado e Estrela, se espraia, trazendo no seu bojo, em parte, largos
benefícios pela emulação que domina seus habitantes, cada qual procurando
colocar o “seu chão” numa posição de maior destaque do aquela ocupada pelo
“lugarejo” do outro lada do rio….. Porém, nem tudo é azul nessa rivalidade
entre Lageado e Estrela. De vez em quando surgem casos que entristecem àqueles
que acompanham com interesse a evolução e o progresso das duas cidades. São
casos que, infelizmente, acontecem justamente no esporte, que deveria ser um
veículo seguro para a aproximação, já não diremos de povos estranhos, mas dos
filhos de uma mesma Pátria, separadas apenas por um curso dágua – o correntoso
Taquari.
DOCUMENTOS SELADOS E REGISTRADOS NÃO
ADIANTARAM.
Vamos passar a contar o fato, conforme
nos foi relatado pelo esportista Orlando Fischer, representante do C. E.
Lageadense junto à FRGF: no dia 7 de maio do ano corrente, parecia que a paz
tinha voltado ao foot-ball de Alto Taquari porquê os presidentes dos clubes de
Lageado e Estrela, respectivamente Hugo Ruthner e Heitor Ivo Kirst, resolveram
chegar a um acordo e assinar um documento comprometendo seus clubes em duas
partidas de confraternização – uma em cada cidade a realizarem-se nos dias 13
de junho em Estrela e no dia 20 do mesmo mês. em Lageado. Feito isso, o
documento recebeu todos os “sacramentos”: firmas reconhecidas, testemunhas,
registro em cartório, etc, etc.
Mas não adiantou ……
A PRIMEIRA PARTIDA NÃO TERMINOU.
Chegou o dia do primeiro encontro, e
Estrela recebeu a visita dos lageadenses, em grande número. A renda cresceu nas
bilheterias até atingir Cr$ 5.752,00, quantia bastante apreciável no foot-ball
daquela zona. E o jogo começou. Começou, mas não terminou. Quando ia o prélio,
aliás cheio de “coizinhas”, na altura do 23º minuto do segundo tempo, o goleiro
estrelense “Negrão” aplicou, violento ponta-pé no ponteiro lageadense Domingos
Cé, o qual ficou estirado no gramado. Interrompido o match, foi o jovem player
visitante atendido pelos médicos, que determinaram sua imediata hospitalização,
e no posterior auto de corpo delicto, feito pela polícia, foi constatada grava
contusão no fígado e no rim direito, nematuria, etc. Em face do acontecido e da
invasão de campo, etc, os lageadenses, sentindo o ambiente inseguro, resolveram
retirar-se do gramado já que tudo aconselhava a suspensão da partida – então
empatada em dois tentos – devido à fraca atuação do árbitro e à exaltação dos
ânimos.
AGORA A RENDA ………
Terminado o encontro, na maneira que
relatamos acima, os dirigentes do C. E. Lageadense foram receber a parte que
lhes tocava na renda do match – 50% e mais Cr$ 1.500,00 para o transporte – de
acordo com o estipulado no contrato, mas, com surpresa geral, o presidente do
clube de Estrela, negou-se a fazer o respectivo pagamento, alegando que o
encontro não havia terminado, embora não fizesse a devolução dos ingressos ao
público.
Posteriormente, os dirigentes do
grêmio lageadense tentaram de conseguir um acordo, propondo a disputa dos
minutos restantes e, por fim, chegado o momento, solicitando à FRGF a
respectiva licença para a realização do segundo jogo, a fim de dar cumprimento
ao ajustado. Porém, os dirigentes do Estrela negaram-se a tudo. Os lageadenses
enviaram ofícios para autenticar seus propósitos, e solicitaram a firma do
presidente do clube contrário, para poderem provar a qualquer tempo a sua boa
vontade em solucionar a questão. Todavia, o primeiro mandatário do grêmio de
Estrela declarou que não assinaria nada …..
VEM O CASO PARA A FRGF
Foi então, que o esportista Hugo
Ruthner, presidente do Lageadense, resolveu trazer o caso para a FRGF. O Dr.
Arando Borsatto, vice presidente em exercício da entidade máxima, tentou uma
reconciliação e, por duas vezes convocou os dirigentes dos dois clubes de Alto
Taquari para estudarem um acordo. Em vão, só compareceram às reuniões da FRGF
reuniões determinadas pelo primeiro mandatário, os representantes do clube de
Lageado.
Em vista disso, a Federação resolveu
tratar do caso em caráter oficial e, na reunião do seu Conselho Diretor ontem
efetuada, determinou que o E. F. Clube o recolhimento imediato dos Cr$ 5.752,00
aos cofres a FRGF, onde ficarão até que a questão seja solucionada. Foi dado ao
clube faltoso um determinado prazo e, findo este, se não for atendida a
determinação do Conselho Diretor, o Estrela F. C. será denunciado ao Tribunal
de Justiça Esportiva, já agora, não só por ter deixado de cumprir o acordo com
o Lageadense, por desobediência a uma resolução da Diretoria da Federação.
E então, portanto, em maus lençóis os
estrelenses ……
IRÃO ATÉ A JUSTIÇA CIVIL
Por último disse-nos o Sr. Orlando
Fischer, no caso de entrar a questão no Tribunal de Justiça Esportiva, é
pensamento do meu clube convidar, para defender seus pontos de vista, o
conhecido causídico Paulino de Vargas Vares, presidente do Internacional.
Também, se o “caso” não ficar somente nisso: iremos à Justiça Civil, para
processar os agressores do jogador Domingos Cé e exigir o pagamento de
indenizações que julgarmos devidas, não só pela perda da renda do segundo jogo,
como, também pelos gastos feitos com a hospitalização por mais de 15 dias do
player agredido, que até hoje não retornou a seu estado físico normal.
A TEMPESTADE ESPORTIVA NO ALTO TAQUARÍ
A verdade, para o Estrela, não combina
com a verdade Lageadense – Fala à nossa reportagem o ex-secretário do Estrela,
contradizendo declarações do representante do clube de Lageado.
O último vencedor do Prêmio Nobel, o
alemão Herrmann Hesse, disse certa vez que “o contrário de todas as verdades
deve ser também verdade, se comprova diariamente nos “casos” footbalísticos. Em
nossa edição de ontem, por exemplo, divulgamos as declarações do Sr. Orlando
Fischer, representante do C. E. Lageadense junto à F.R.G.F., através dos quais
esse esportista relatava os acontecimentos desenrolados, antes, durante e
depois do choque footbalístico entre o clube acima citado e o Estrela, da
cidade do mesmo nome, o qual, como se sabe, não primou pela regularidade.
Acontece, porém, que o contrário de
muita coisa que nos disse o Sr Orlando Fischer, é também verdade, ao menos no
ponto de vista do Estrela, segundo nos veio dizer o esportista Sr. Aury de
Azeredo, ex secretário do Estrela e autorizado pela direção deste clube para
contestar muitos dos pontos de vista do Sr. Fischer.
E eis então que a nossa reportagem se
viu envolvida no meio de um fogo cruzado de pontos de vista contraditórios que
foram pedir justiça a Salomão, cada um reivindicando para si a verdade
verdadeira ……
Como ontem demos a palavra ao Lageado,
toca hoje ao Estrela falar. Eis o que nos disse o Sr. Azeredo, empunhando um
recorte da ”FOLHA DA TARDE”, onde estavam as declarações do esportista Fischer,
com certos trechos prudentemente sublinhados:
- Vamos por ordem – começou o Sr.
Azeredo: aqui se vê, é o que o match foi “cheio de coisinhas”. O que não é
verdade. Tudo ia correndo normalmente até o momento do choque entre o guardião
do Estrela e o ponteiro do Lageado. Só então é que se registraram os
incidentes. O fato decorreu da seguinte maneira: após um passe longo, a bola se
ofereceu igualmente pata o nosso arqueiro Negrão e para o winger visitante. E,
como era natural, os dois correram em direção à bola, cada um procurando chegar
primeiro. E quem primeiro chegou e imobilizou a bola em suas mãos, foi o nosso
arqueiro. Como o seu adversário vinha na corrida, e para proteger a bola e o
próprio corpo, o guarda-vala ergueu um joelho. Foi quando o ponteiro Domingos
Cé se chocou contra o keeper. Não houve como diz o “representante” do
Lageadense, agressão por parte do arqueiro, que foi quem primeiro, pegou a
bola. Ao contrário, o ponteiro adversário é que, a despeito de ter perdido o
lance, não se deteve senão quando se esbarrou contra o goleiro, ou porquê não
pôde se deter ou porquê não quis. Este é um detalhe que pouco importa. E tanto
o lance foi considerado proposital, que o árbitro não marcou falta alguma. As
consequências, porém, do choque foram lamentáveis, pois o jogador visitante se
machucou. A torcida de Lageadense, então invadiu o campo, não tanto com
intuitos agressivos, mas para induzir os seus jogadores a se retirarem do
campo.
O árbitro está sendo acusado de
inepto. É curioso. O Sr. Mário Coelho, residente em Taquara, foi indicado pelo
próprio Lageadense para apitar o cotejo. Tocava à esse clube indicar o juiz e,
como nãou houvera ele providenciado junto à F.R.G.F. para conseguir um árbitro,
apresentou, à última hora, o nome do Sr. Mário Coelho, o qual, diga-se de
passagem, por várias vezes controlou partidas entre o Estrela e o Lageadense,
sempre com a maior correção e imparcialidade. Em vista disso, o Estrela não
teve dúvida em aceitar a sua indicação para juiz desse encontro.
Tenho para mim, porém, que a
interrupção da partida, provocada pela invasão ao campo dos torcedores
lageadenses, foi proposital, isto é, que havia intenção preconcebida de impedir
o seu prosseguimento em face da inequívoca certeza de que o Estrela venceria o
jogo, muito embora o escore estivesse empatado em dois tentos. É que os
lageadenses haviam apostado grandes quantias em seus favoritos e estavam em
eminência de perder a aposta, em virtude da flagrante superioridade técnica que
vinham demonstrando os locais e aproveitaram-se do incidente com seu ponteiro
para truncar a partida e, assim, fugir ao compromisso de pagar a aposta
perdida.
Quanto à questão da renda, o que se
passou foi o seguinte: desconformes com o abandono do campo, o público de
Estrela exigiu do presidente do clube que não fizesse a entrega da parte que
cabia ao Lageadense, chegando mesmo um grande número de associados a ameaçar de
demitir-se no caso de ser entregue 50% da renda. O presidente, interpelado
pelos dirigentes visitantes a respeito da parte da renda que lhes cabiam
ponderou que, diante da situação que se creára, não tomaria não tomaria a
decisão enquanto não consultasse a diretoria. Após o que a parte que cabia aos
Lageadenses foi depositada num Banco, onde se encontra à disposição dos
visitantes apenas seja resolvida a questão.
Não é verdade, também, que o
lageadense tenha feito propostas para a disputa dos minutos restantes. Assim
como também não exprime a verdade a alegação de que por duas vezes o presidente
do Estrela tenha sido convocado para comparecer F.R.G.F. por sugestão do
vice-presidente desta entidade, Sr. Arnaldo Borsatto a fim de resolver a
pendência amistosamente. Apenas uma vez foi ele convidado e não compareceu
porquê, de momento estava em excursão com seu clube numa cidade próxima
conforme mandou oportunamente notificar.
Afirma o representante do Lageadense
se que seu clube irá convidar para defender seus direitos o Dr. Paulino de
Vargas Vares, presidente do Internacional, a instaurar, junto à Justiça Civil,
um processo de agressão ao ponteiro Domingos Cé., afigura-se-me difícil que o
Lageadense consiga provar que houve tal, pois o juiz, no lance, não marcou
falta e nem podia marcar, tratando-se um choque tão comum em partidas de
foot-ball. De mais a mais, como dizíamos, se houve agressão, partiu essa do
ponteiro, a ponto de ser o arqueiro Negrão, para se defender da entrada
violenta, ter-se protegido com o levantamento do joelho.
Fala também o Lageadense de exigir,
por meios legais, indenizações pelos gastos feitos com a hospitalização do seu
defensor. Que vamos dizer nós que tivemos nosso gramado simplesmente depredado
pelos torcedores do Lageadense, os quais, ao se retirar, derrubaram parapeitos
e arrasaram cercas? Não entregarem a parte da renda ao clube visitante enquanto
também nós não formos ressarcidos desses prejuízos.
Aí está pois, segundo as palavras do
Sr. Azeredo, a outra face da verdade. Que os “Salomões” da F.R.G.F. resolvam o caso com a sua proverbial
sabedoria.
SPRITO DE MICO – EPÍLOGO
Ao escrever e distribuir a crônica
sobre o Sprito de Mico tomei por base as páginas que eu possuía do livro
Cidades Vizinhas, de Olides Canton.
O que eu vi e escrevi, existe nas
cinco páginas, mas nelas existem fatos que eu omiti, pois não os vi. Agora
explicáveis.
Distribuí minha crônica para cerca
de quarenta habituais correspondentes e, como sempre, com mínimas referências.
Se leem, não prestam muita atenção.
Duas pequenas pistas me deixaram
desconfiado e me levaram ao reestudo da crônica. Historiador tem que ser
meticuloso. Alguma coisa não estaria certa:
Fato um: Quando menino conheci o
Negrão, citado como goleiro do EFC no jogo em 1940. Negrão era amigo de meus
primos de Estrela, Alvinho e Fritz e seria da mesma idade deles, na época 12 ou
13 anos;
Fato dois: Domingos Cé, a vítima do
choque com o Negrão, casaria mais tarde com uma colega minha de ginásio pouco
mais nova que ele. No meu entender, na época, também teria mais ou menos 13
anos e nem residiria em Lajeado.
Sérgio Mello Jaeger, outro amigo de Lajeado a quem seguidamente peço e
forneço informações históricas, enviou-me xerox de um recorte de jornal (Folha da Tarde) com duas crônicas
intituladas – Nuvens Negras no Alto Taquari – e – A Tempestade Esportiva do
Alto Taquari – No topo de uma delas, escrita à mão a data de 19-8-1947, que
revela conflitos em jogos de futebol entre Lajeado e Estrela. Seguem em outro anexo. Mostram perfeitamente
que foram duas histórias diferentes. Para mim, isso foi suficiente para eu
inferir que Olides Canton recebeu as informações de um estrelense agora identificado.
Sérgio Jaeger encontrou o livro do Canton na biblioteca da Prefeitura de
Lajeado e informou-me a parte final da crônica, pg 60, que eu não possuía: ……do Avenida, do Taquariense, do Juventude e
do Caxias, que o sabor jamais se igualava a uma vitória no braço e na bola no
clássico. Tinha mais guerra do que jogo. Hoje serve apenas para contar
histórias. Como esta.
Também o nome do colaborador. Nada menos que Antônio Carlos Porto, o
Talo Porto, nosso leal amigo desde a juventude e um pouco mais jovem que eu
(deve ter nascido em 1931/32), aguerrido jogador de futebol do EFC e
conceituado cronista esportivo do Correio do Povo, lido e respeitado pela sua
notável capacidade de comunicação, legou seu apelido e sobrenome à posteridade
esportiva do RS.
A parte inicial crônica do Talo
Porto foi a transcrição de informações esparsas que recebera dos torcedores
estrelenses que lhe contaram as peripécias de duas partidas de futebol,
separadas por sete anos uma da outra, acumuladas dos habituais exageros e meias
verdades comuns em brigas coletivas. Misturaram as informações de duas épocas
numa só e o Talo assim as relatou. A parte final é toda de sua lavra.
Se lermos as crônica dos anexos,
somadas ao que eu escrevi, teremos a crônica do Talo editada com delicioso
humor no livro do Canton, descontando, é lógico, os exageros e inverdades.
O Olides editou uma história
constituída por duas verdades independentes entre si e separadas por sete anos
uma da outra.
As duas vítimas lajeadenses, O Arno
Klein, mordido na paleta por João Porto, a pedido, mostrava as marcas dos seus
ferimentos. Diziam que exigira do médico do Esportivo que fosse inoculado com
vacina antirrábica. Seguramente conversa fiada. Eu acredito que o Sprito foi
sovado pelos dois policiais muito mais por ser o único afrodescendente do que
por ser participante da torcida do lajeadense e envolvido no rolo. Pau nele.
COMENTÁRIO FINAL: O clima de antipatia recíproca entre as duas cidades
que já foram similares, já tem mais de um século e deverá perdurar para o todo
o sempre. Não procurei saber qual foi a sentença da FRGF, pois absolutamente
não interessa qual tenha sido. A baderna foi lamentável sob todos os pontos de
vista. Nada que se possa imaginar modificará sensivelmente a relação entre as
barrancas do Taquari. Iremos conviver eternamente com a rivalidade. Se
possível, com dignidade.
O AERO CLUBE ALTO TAQUARI (ACAT)
Há pouco tempo, me foi entregue
em mãos por Sérgio Mello Jaeger, habitual parceiro na troca de informações
históricas, um exemplar do livro do qual ele foi um dos organizadores,
denominado SEM TÍTULO - As Crônicas do Paquito - Francisco Merino Filho, pai do
Paulinho, que foi meu contemporâneo e vizinho de infância em Lajeado.
É uma edição póstuma de crônicas relativas à vida dos lajeadenses narradas
com propriedade e bom humor, publicadas no jornal da cidade A Voz do Alto
Taquari entre 1955 e 1962. Sua leitura agradou em cheio.
Numa crônica de 5 de maio de 1960 o autor destaca ……. quando não
fazendo sequer parte da diretoria …….. ele (entendi que era o prefeito de Lajeado
Bruno Born) não entregara os trinta mil cruzeiros decretados para auxilio do
município ao Aero Clube (de Lajeado). Essa verba fora consignada no orçamento
para o ano seguinte pelo ainda prefeito Mário Lampert.
É uma das provas do que mais adiante afirmo.
O tema Aeroclube trouxe-me à lembrança episódios que soube por
informações e muito mais por ter participado pessoalmente. Sou um dos raros
conhecedores e desejo deixar para a posteridade o relato dos fatos que
necessitam continuar vivos na memória. Viveremos ainda muito anos até que sejam
sepultados nas brumas do tempo e até lá sirvam de lição às gerações vindouras.
Eu me considero um conhecedor profundo dos acontecimentos que geraram a
criação do Aero Clube Alto Taquari (ACAT), com sede em Estrela, que depois teve
o nome modificado para Aeroporto Municipal de Estrela (AME) e consequente
criação do Aeroclube de Lajeado (AL), finalizando com a reunificação das duas
sociedades com o título de Aeroclube Vale do Taquari (AVT) já em pleno ocaso da
atividade aérea na região.
O início da segunda guerra mundial, iniciada na Europa em 1939,
provocou grande interesse pela aviação. Seja como instrumento de transporte ou
arma de ataque e defesa.
Nos municípios do Vale do Alto Taquari, principalmente em Lajeado e Estrela,
as lideranças passaram a interessar-se pelo transporte aéreo de passageiros em
face às dificuldades de locomoção rodoviária. Estradas ruins e inexistência de
pontes nos rios Taquari e Caí, obrigavam os veículos a inevitáveis demoras pela
espera de sua vez no uso de barcas para transpor os rios. Levava-se até dez
horas de viagem para ir ou voltar de Porto Alegre (cerca de cem km). Por via
aérea, menos de uma hora.
Em 13 de julho de 1940, as lideranças regionais se reuniram em Estrela
para dar início à criação de um aeroporto que atendesse às necessidades locais.
No município de Estrela, à beira do rio Taquari e em bem defronte a
cidade de Lajeado, foi encontrado local privilegiado. Decidiu-se pela criação
de uma sociedade civil denominada Aero Clube Alto Taquari (ACAT), com sede em
Estrela.
Os prefeitos dos dois municípios, Cláudio de Toledo Mércio (de Estrela)
e João Frederico Schaan (de Lajeado), adquiriram as áreas necessárias para, no
futuro, serem demarcadas duas pistas em X. O prefeito de Estrela comprou e doou
a área da primeira pista e o prefeito de Lajeado adquiriu uma perna do X, onde
seriam construídas, alem da sede, os hangares e demais dependências do
aeroporto. Esse imóvel ficou registrado em nome da prefeitura de Lajeado.
O aeroporto foi inaugurado em 26 e 27 de julho de 1942 com grandes
festas e pouso de inúmeros aviões da FAB e outros aviões de aeroclubes
congêneres.
Um ou dois anos depois, nova festa aeronáutica na sede do ACAT. O
aeroclube, para incentivar a vocação, desenvolveu projeto que convidava todas
as escolas para divulgar entre os alunos um concurso de estampas de avião
desenhadas em cartolina. Os dez melhores autores seriam premiados com um voo
panorâmico no dia da festa. Inscrevi-me e desenhei um avião de caça americano
Airacobra. Fui um dos dez selecionados. Após o voo, reafirmei minha vocação de
seguir a profissão de piloto militar.
Iniciadas as aulas teóricas e práticas de pilotagem e navegação aérea,
se sucederam inúmeras turmas de alunos brevetados. Creio que mais de duzentos.
Raros seguiram a profissão e a grande maioria apenas voava como lazer.
Moradores de Lajeado e Estrela inicialmente confraternizaram, mas aos
poucos a eterna antipatia, desconfiança e rivalidade recíprocas reapareceram
com seus deletérios resultados. Assim, em 15 de novembro de 1955, uma
Assembleia Geral modificou os estatutos criando a exigência de que todos os
diretores do ACAT fossem residentes em Estrela. O campo de aterrissagem passou
a chamar-se Aeroporto Municipal de Estrela.
Estava provocada a cisão. Os lajeadenses criaram um novo Aeroclube de
Lajeado, no distrito de Cruzeiro do Sul, hoje município desmembrado.
Solicitaram auxilio ao prefeito municipal Mário Lampert, a destinação
de verba para a aquisição da área para a nova pista de pouso. O prefeito
destinou para o novo aeroclube a área de propriedade do município anexa à pista
do ACAT, já então denominado Municipal de Estrela. Sua venda e cobrança do ACAT
serviria para dar suporte à verba a ser paga pela prefeitura em doação para o
novo Aeroclube, constante no orçamento municipal.
Com esses recursos foi adquirida a nova área para pista e anexos.
Ficaram os dois municípios, cada um com um aeroporto, O Aeroclube Alto
Taquari que encerrou suas atividades no ano de 1961 e o Aeroclube de Lajeado
que iniciou com a sua escola de pilotagem no dia 24 de novembro de 1963 quando
foi concluída a pista de pouso, hangar e com o recebimento de uma aeronave
paulistinha nova, cedida pelo DAC.
Pontes nos rios e melhores estradas aproximavam as cidades a Porto
Alegre, com viagem rodoviária de uma hora e meia, dispensando e inviabilizando
economicamente os voos de menos de 400 km. Linha aérea de passageiros, nem
sonhar. Os voos de aeronaves de pequeno porte para transporte regular de
passageiros já haviam cessado em todo o RS.
O Aeroclube de Lajeado nos primeiros
anos formou um bom número de novos pilotos, embora desde o início, a distância
do mesmo da cidade de Lajeado, 14 km de uma estrada apenas encascalhada,
dificultasse o deslocamento. A prometida estrada asfaltada que ligaria a cidade
de Lajeado à Venâncio Aires ficava só na promessa. Ela passaria a 100 m da
pista.
O retorno para à antiga pista de
pouso em Estrela ficava cada vez mais evidente.
Iniciou-se o ocaso dos dois aeroclubes. Cada vez menos alunos e voos.
Aproximava-se um inevitável final inglório.
Num último arranco de bom senso, em 1968 as diretorias aventaram e, por
fim, realizaram a fusão dos dois aeroclubes, que passou a ser denominado
Aeroclube Vale do Taquari (AVT).
A área da pista de pouso em Cruzeiro do Sul foi desapropriada pela
prefeitura de Cruzeiro do Sul - já município emancipado - e a destinou para o
Frigorífico Minuano, de Lajeado, que ali faria a instalação de criatório de
galinhas para matrizes. O valor foi de trinta mil cruzeiros.
PILOTO
Eu, desde menino, era apaixonado pela aviação. Comecei a frequentar as aulas de aeromodelismo
ministradas em Lajeado por José Winge em
1941. Adquiri um kit de planador com envergadura de asa de 100 cm e iniciei sua
montagem assistido pelo instrutor. Outros meninos fizeram o mesmo. Semanas
depois, três alunos levados por José Winge ao morro de Conservas, de cujo cimo
os protótipos foram lançados como teste. Tive a felicidade que meu aparelho foi
o único que voou cerca de 300 metros, quase atingindo o rio Taquari. A escola
durou pouco e logo encerrou suas atividades.
Foto:
Leandro Lampert
Em 1947, foram doadas duas bolsas de estudo para alunos, uma para um
lajeadense e outra para um estrelense. A de Lajeado coube a mim. Após algumas aulas
teóricas e oito horas de voo de instrução, comecei a ser hostilizado pelo
instrutor Bubi Benz (desafeto do meu pai), que finalmente me informou que minha
bolsa havia sido cancelada. A do aluno de Estrela continuou válida. Fiquei deveras
desiludido. Em 1949 mudei de residência para Bom Retiro do Sul e abandonei o
sonho da aviação.
Guardo até hoje o distintivo metálico de lapela do ACAT.
Em 1961 fui morar e trabalhar em Encantado. Em meados de 1968, aos 39 anos de idade, eu
tinha tempo, dinheiro e vontade para reiniciar o curso de pilotagem no
aeroporto em Estrela, já com a fusão realizada com o aeroclube de Lajeado. O
instrutor era o Zezinho Britto. Recebi meu brevê em 1969, juntamente com mais
três jovens alunos. Passei a voar pelo menos duas vezes por mês. Fiz parte da
última turma brevetada pelo Aeroclube Vale do Taquari, em clima de grande
camaradagem entre diretores, pilotos, instrutor e alunos.
O meu primeiro voo com passageiro foi com minha filha Luzia, então com
8 anos de idade.
Ao me dirigir para Santa Maria e realizar a prova prática, fui de avião
com o instrutor e fizemos uma pequena mudança de rota, para sobrevoar o morro
do Botucaraí, de meu interesse turístico na paisagem do pampa.
Abaixo: piloto Donald Johann, três colegas brevetados comigo, o
instrutor Zezinho Britto e eu no aeroporto em Estrela.
Foto:
Leandro Lampert
Fui piloto ativo até meados de 1973, quando mudei de residência para a
cidade de Serafina Corrêa. Depois, por algum tempo, voei nos aviões do
Aeroclube de Passo Fundo. Voar foi muito gratificante e útil na minha
profissão. Fui várias vezes e voltei no mesmo dia de Estrela até o porto de Rio
Grande, supervisionando embarques de exportação de carne suína, primeiramente
para a Tchecoeslováquia, depois para a Polônia e, finalmente, várias vezes para
o porto livre de Hamburgo, na Alemanha. O vôo de ida e volta no mesmo dia
demorava sete horas e só era possível porquê um dos colegas brevetados desejava
prosseguir profissionalmente e necessitava voar duzentas horas antes de obter
um brevê profissional. Acertado comigo, antes do clarear do dia já deixava o avião
abastecido, revisado e pronto para decolar. Nos primeiros albores do dia já
estávamos no ar. Nos registros dos aeroportos ele era o comandante e eu o
copiloto. Era excelente parceiro e fazia os voos com todas as despesas por
minha conta. Na rota, passaríamos sobre a ponte do rio Camaquã, mas fazíamos um
pequeno desvio para sobrevoarmos a costa da laguna dos Patos até ao aeroporto
de Rio Grande. Panorama de beleza emocionante. Na volta, pousaríamos em Pelotas
para reabastecer o avião. Querido companheiro. Lamento ter esquecido o seu
nome. Além dessa rota, também Santa Rosa, Ijuí, Cachoeira do Sul, Capão da
Canoa nos verões, idas às sextas feiras de tarde e retorno na segunda feira de
madrugada e muitas outras cidades.
Certa vez, levando meu irmão Luciano de carona para Capão da Canoa, nos
deparamos com um vento nordestão de proa tão forte que, ao olharmos para baixo,
os automóveis da rodovia iam mais velozes do que nós. Sacudimos à vontade, mas
em Capão, o pouso foi tranquilo. Meu irmão não quis voltar comigo, preferiu um
ônibus. Eu trouxe o Adir Cé, vizinho em Xangrí-lá e morador em Encantado, de
volta em lugar dele.
Nas demais oportunidades, voos panorâmicos sobre as belezas do vale do
Taquari. Inesquecíveis.
Abaixo: Foto da várzea de Arroio do Meio, as matas ciliares do rio
Taquari e os morros de Roca Sales.
Foto aérea: Leandro Lampert
O aeroclube de Candelária tinha encerrado suas atividades e surgiu a
possibilidade de transferir um avião paulistinha, que estava estacionado no
hangar, para o nosso aeroclube. Fui busca-lo e levei junto um dos meus colegas
de brevê para trazê-lo de volta. Examinei o avião e concluí que não deveria
permitir que o meu colega o pilotasse na volta. Estava em muito mau estado.
Retornamos e no caminho, já no município de Cruzeiro do Sul, tivemos pane no
avião e tornou-se necessário um pouso de emergência. O colega, assustado,
perguntou: “Será que vamo morrê?”. Eu estava no comando do avião e lhe disse: “Que
nada. Este teco-teco não mata ninguém”. Fizemos um pouso tranquilo, sem motor,
numa lavoura de fumo, já com as plantas bem desenvolvidas, na propriedade de
Oswaldo Wendt. O avião correu um pouco e as rodas atolaram na terra fofa,
embicando o nariz no solo e levantando a cauda para o alto. Parecia que o avião
tinha despencado direto no solo. Sem avarias no avião e tripulantes.
Rindo, saímos do avião e nos sentamos numas pedras aguardando socorro.
Em seguida, vimos um homem esbaforido correndo no meio do fumo chegar ao avião.
Olhou para dentro e não viu ninguém. Logo seu olhar nos encontrou e ele nos
disse muito desanimado: “Nunca cai um avião aqui e agora, quando cai, não morre
ninguém”. Paciência. Quem sabe, na próxima vez…
Fomos de carona para casa e no outro dia retornamos com um caminhão,
separamos a asa da fuselagem, carregamos tudo e fomos para Estrela.
Abaixo, a fuselagem do avião, já sem a asa, sendo carregada no caminhão
na beira de lavoura de fumo.
Foto: Leandro Lampert
Na Faculdade de Engenharia da UFRGS
havia um clube de paraquedismo e ficou acertado que no próximo domingo um grupo
viria à Estrela para uma série de saltos. Não sei quem agendou. Eles pagariam
as horas de voo e os pilotos seriam cortesia.
Nós quatro, recém brevetados, ficamos entusiasmados pela novidade e nos
preparamos para o evento. As portas das duas aeronaves seriam retiradas e
confabulamos sobre a técnica de lançamento dos esportistas. Avaliação da
direção e intensidade do vento. Aproximação do local contra o vento. Relação
com a altura do salto. Redução das rotações do motor e pequena elevação do
nariz do avião para diminuir a velocidade. Na hora H, gritar “salte” e retornar
ao solo. Fácil. O avião, sem a porta, ficava com enorme turbulência dentro da
cabina. Eram cerca de doze e entre eles havia três moças. Os três guris logo
disseram: “uma para cada um”. Todos pousaram na pista de aeroclube com sucesso
pleno. Nunca mais voltaram.
Lá por 1972 o então presidente Bruno Behs, pai de um piloto ativo da
penúltima turma de três brevetados, em vista à próxima eleição de Diretoria do
Aeroclube, convidou-me para fazer parte como tesoureiro e, apesar de minha
manifestação sobre residir em Encantado, afirmou que exerceria também a função
de caixa e a minha participação seria apenas protocolar para documentar no
Banco, face a uma improvável verba de Ministério ou outra origem. De qualquer modo, o AVT
vivia numa penúria financeira atroz.
Numa conversa com Bruno e outros nas dependências do clube, falamos da
miséria financeira e eu perguntei-lhe o que fora feito com o dinheiro que o
clube recebera com a desapropriação da pista de Lajeado, obtida na fusão dos
dois aeroclubes, feita pela Prefeitura de Cruzeiro do Sul.
Que dinheiro? Ninguém sabe de nada – Quanto? – Trinta mil. – Tá louco.
Eu disse-lhe: “Vou atrás desse dinheiro e vou encontrá-lo”. Forneceu-me
o nome do Banco, Agência e número da conta do aeroclube em meio de risadinhas debochadas
dos demais presentes. Um Don Quixote das barrancas.
Segunda-feira telefonei para o Prefeito de Cruzeiro do Sul, meu
conhecido, e perguntei-lhe sobre o dinheiro: “Está disponível aqui. Ninguém
veio procura-lo até agora”. – Por favor, remeta o dinheiro via bancária para o
Aeroclube Vale do Taquari, agência tal e número da conta. “Pode ser amanhã?” – Pode. Creio que era março de 1973.
No domingo seguinte, já ao desembarcar do carro, fui recebido no
aeroclube com sorrisos envergonhados. O gerente do Banco já havia informado ao
Bruno a chegada do dinheiro que esteve adormecido por mais de dois anos.
Inacreditável a incapacidade dos estrelenses em deixarem passar a
oportunidade de capitalizar o Aeroclube. E as diretorias anteriores do AVT que
realizaram a fusão, o prefeito, vereadores e os aficionados pela aviação onde
estavam? Dinheiro parado, corroído pela inflação. Desleixados. Estrela estava
desprovida de lideranças.
DESFECHO MELANCÓLICO
O Aeroclube tinha, agora e pela primeira vez, dinheiro em caixa. O que
fazer? Logo fiz uma sugestão: Deixar o dinheiro no banco até a definição da
escolha do local onde seria construído o superporto rodo-hidro-ferroviário de
Estrela, noticiado pela imprensa e que, em meu entender, seria no próprio local
da nossa pista.
Assim foi. Seria outro sonho quimérico para os estrelenses e mais um
monumento inútil à imprevidência administrativa do Brasil
Cerca de um mês depois, Bruno estava me esperando assustado e lívido.
Fora ao Banco, sendo informado que não era mais presidente do Aeroclube, eis
que uma Assembleia Geral Extraordinária (sem convocação) havia destituído toda
a diretoria anterior. A ata apresentada ao Bruno continha as assinaturas dos
cinco pseudoparticipantes de AGE e o novo presidente era o Zezinho Britto e os
outros quatro os demais membros da diretoria.
Sugeri entrar na Justiça, pedindo a anulação do ato, pois não
respeitara os estatutos do AAT que exigia que uma AGE só fosse convocada com
divulgação pela imprensa falada e escrita, com antecedência mínima de trinta
dias. Bruno não quis se incomodar e
limitou-se a informar ao Banco que nossa diretoria ainda se encontrava ativa
até o fim do mandato. O Banco suspendeu qualquer movimento do dinheiro enquanto
houvesse duas diretorias. Quando venceu o nosso tempo de vigência, a outra
ficou com todos os poderes.
A artimanha venceu.
Tempos mais tarde, li na imprensa que o DEPREC havia indenizado o
Aeroclube em 15.000,00, como compensação pela desapropriação de terras do
aeroporto. Não creio que o DEPREC tenha desapropriado toda a área, afinal, a
pista tinha 1.200 m de comprimento. Deve ter sobrado alguma área de terras.
Mudei de residência para Serafina Corrêa e nunca mais tive notícia do
Bruno Behs, nem do dinheiro do Aeroclube. Talvez possa estar ainda adormecido
até que apareça um novo Don Quixote nascido em outro município que se proponha
a procurá-lo - ou um historiador local que se disponha a pesquisar.
Tempos depois fui informado que Bruno e Zezinho haviam falecido.
Os dois filhos do Bruno Behs, ainda vivos - e se consultados -, não
terão dúvidas em confirmar o final do que acima relatei. Talvez algum
funcionário do Banco ainda se lembre.
E agora?
Prossigo, tornando a crônica mais investigativa do que histórica.
Assim, continua a interrogação: que fim levou o acervo do patrimônio do
AVT?
Somente algum residente em Estrela, se quiser, poderá trazer
informações concludentes.
Me recuso a fazer qualquer conjetura.
Espero que esta crônica, uma vez divulgada, anime pessoas da comunidade
de Estrela a buscar a verdade, bem como divulgá-la.
O JURI DO DR. VOLTAIRE
Em novembro de 2006 era aguardada
com ansiedade a publicação da biografia do Dr. Voltaire Bittencourt Pires,
livro do Dr. Amadeu Weinmann em que conheceria o restante de sua vida, além dos
fatos que presenciei e convivi com o biografado nas oportunidades em que
visitou meu pai em Lajeado.
Lido o primeiro capítulo (em
7 de novembro de 2006), desolado e inconformado, vi que não havia nenhuma
referência a meu pai na participação dos fatos épicos, frustrando minha
expectativa.
Naquele
momento, sob forte emoção, decidi enviar correspondência ao filho, Dr. Érico
Barone Pires, para relembrá-lo dos fatos pertinentes ao episódio e que estavam
ainda vivos na minha memória.
Eventualmente Dr. Voltaire, por via
fluvial, deslocava-se à Lajeado a trabalho, hospedava-se sempre na nossa
residência e retornava no dia seguinte ou no
subsequente. Ainda menino,
recordo sua figura cativante. Exercia um fascínio sobre mim e lembro como eu
desejava que meu pai fosse parecido com ele.
Nunca
em minha vida presenciei uma amizade tão intensa, fraterna, leal e
desinteressada entre duas pessoas com temperamentos tão diferentes. Creio que o
elo inicial da relação deles foi a repulsa a Flores da Cunha, que a ambos
sempre perseguira com tenacidade.
Meu
pai sabia quando ele viria, pois controlava no Cartório do Fórum as audiências
em que ele faria parte, e passava o dia com ele. Algumas vezes ele não
comparecia, mas meu pai o representava, pois tinha sempre uma procuração
substabelecida. Meu pai era um homem pobre e nem telefone tinha.
Até
5 de janeiro de 1937, o Dr. Voltaire Bittencourt Pires (nascido em 23 de
dezembro de 1905, em São Sepé), advogado recém formado em Direito, exercia sua
profissão no foro de Taquari e, eventualmente, no foro de Lajeado.
O
Capitão da Brigada Militar e escrivão do Cível e Crime de Taquari, Homero
Canabarro Cunha, era irmão do Comandante Geral da Brigada Militar do RS, Tte.
Cel. João de Deus Canabarro Cunha. Por razões de desencontro de contas com o
escrivão, ele e o Dr. Voltaire romperam as relações e se tornaram inimigos. Ele
era chefe político em Taquari, de família tradicional e ligado ao Interventor
José Antônio Flores da Cunha, ao tempo da ditadura getuliana.
O
Capitão ameaçara publicamente que daria uma surra de cinta no Dr. Voltaire
assim que o encontrasse. Dr. Voltaire, então, preveniu-se, passando a portar um
revolver na cintura. Os tempos eram de violência.
Passado
algum tempo, ao desembarcar de seu carro em frente ao Clube Renascença (onde
iria comprar champanhe para brindar com amigos a sua formatura em Direito), Dr.
Voltaire percebeu que o Capitão vinha ao seu encontro com visível
agressividade. Ao se defrontarem e ao constatar que seu inimigo tirava a cinta
da calça, sacou do revolver e avisou que atiraria se o interlocutor avançasse.
O Capitão continuou a se aproximar e Dr. Voltaire, em flagrante legítima
defesa, deu-lhe dois tiros quase a queima-roupa, acertando ambos.
Testemunhas presenciaram os fatos.
Socorrida a vítima, foi levada de vapor para Porto Alegre e operada, mas não
resistiu aos ferimentos, vindo a falecer.
Dr. Voltaire afastou-se do local e
escondeu-se no sótão de seu vizinho (à noite, voltava para sua casa).
Não sendo encontrado pela polícia, foi
considerado foragido e caçado com denodo pela Polícia e Brigada Militar.
De madrugada, atravessava a cerca de
tela e escondia-se no sótão de seu vizinho e, assim, se passaram cerca de três
semanas.
No
silêncio do porão à noite e do sótão de dia, solitário e desamparado, teve o
tempo necessário para projetar seu futuro próximo. Teria que encontrar um amigo
que se propusesse a ajudá-lo, mesmo com risco de vida.
Ele tinha um em Lajeado, meu pai Mário
Lampert.
Chegada a notícia em Lajeado e,
avisado, meu pai foi a Taquari para tratar da remoção do Dr. Voltaire para
outro local de menor risco. O correio e a telefônica eram censurados pela
polícia. Através de uma família amiga do Dr. Voltaire, foram acertados os
movimentos para retirar o foragido e conduzi-lo a um local seguro.
Numa
noite previamente acertada, três amigos seus de Lajeado – João Campani,
viajante comercial e proprietário de um Ford 1929, Eugênio Faller e mais Mário
Lampert – foram resgatá-lo em Taquari no outro lado do rio. O Dr. Voltaire,
vestido de mulher, atravessara o rio de canoa e os estava esperando. Os amigos
o conduziram a Lajeado, onde ficaria homiziado na nossa residência por cerca de
dez dias. Lembro sua chegada de madrugada. Estava absolutamente tranquilo.
Havia
um número excessivo de pessoas que sabiam da presença dele em nossa casa, além
das continuas imprudências do foragido que favoreceriam a descoberta do seu
refúgio. Meu pai era perseguido pela Brigada pelas razões apontadas em meu
livro – Os Lampert - e corria um perigo calculado. Na cidade, surgiu o boato
que havia ordens para que os capangas matassem o Dr. Voltaire.
Em
certa oportunidade, meus pais estavam na sacada de sua residência e minha mãe
alertou que soldados da Brigada e “bombachudos” – capangas mal encarados e
evidentes facínoras – rondavam nossa casa ostensivamente. Para evitar riscos
desnecessários para o amigo abrigado, e também para cinco crianças inocentes,
seria oportuna a partida do Dr. Voltaire para outro local. Na mesma noite, foi
levado por meu pai para a casa de Virgílio Lopes na vila de Cruzeiro do Sul,
com algumas ocorrências cômicas. Dois ou três dias depois, meu pai levou-o para
a área rural na Demanda, no interior do distrito de Cruzeiro do Sul (cerca de 13 km de Lajeado), onde o casal Lelo Rocha criava gado e
plantava arroz, em lugar completamente isolado e com péssimas estradas.
Virgilio
era primo-irmão e vizinho de Osvaldo Lopes, casado com a irmã do pai – tia
Zaira – e de Lelo Rocha. A esposa de Lelo, Paulina Schroeder, era prima-irmã do
pai. Dr. Voltaire lá permaneceu por cerca de cinco meses e enquanto foi
necessário, abrigado naquela residência. Uma vez fui junto com meu pai
visitá-lo. Eventualmente meu pai não conseguia uma carona dos amigos que
possuíam automóvel, Nessas ocasiões utilizava-se, às suas expensas, de um “auto
de praça”.
A
recordação subsequente é a chegada do Dr. Voltaire, trazido da Demanda por meu
pai, à noite, para que no dia seguinte ele se “entregasse”. Quando fui para a
escola de manhã, os dois já estavam prontos para se apresentarem ao Juiz da
Comarca de Lajeado, Dr. Décio Pelegrini.
Dr.
Voltaire ficou preso até o dia do júri, em sala livre, à direita, no andar
superior da Prefeitura velha e em frente à praça da Matriz.
Na
sala da prefeitura onde se encontrava recolhido, meu pai visitava o Dr.
Voltaire todos os dias e em inúmeras vezes fui junto. Outros amigos também iam,
colaborando em sua segurança e fazendo-lhe companhia. Ao lado da porta, sentado
numa cadeira, um brigadiano controlava a entrada dos visitantes. Surgiu novo
boato, o de que um Tenente da Brigada, exímio atirador, tentaria matá-lo na
Prefeitura. Todos sabiam o seu nome e ele era visto com frequência na cidade.
Sabia-se
do risco de vida do preso. Já nos primeiros dias, solicitou ao meu pai um
revolver calibre 38, uma caixa de balas e uma corda para, em caso de
incendiarem a Prefeitura (que tinha escada de madeira), pudesse escapar pela
janela. Foi atendido o seu pedido e meu pai lhe entregou a “encomenda”.
Numa
oportunidade, o pai e eu voltávamos da missa e passávamos na calçada da praça
em frente à Prefeitura e ouvimos o grito – Máaaario – era o Dr. Voltaire o
chamando, de camisa branca, nos acenando da janela da Prefeitura, um alvo perfeito.
Meu
pai ficou furioso e lá fomos. Ao ser
admoestado, deu uma gargalhada e disse que ninguém teria a coragem de matá-lo.
Ele estava enganado. Tinha.
No
livro do Dr. Amadeu lemos considerações sobre causas remotas do resultado do
júri. Em nosso entender, mais de um acontecimento conduziu a opinião pública de
Lajeado para total simpatia com o réu que seria levado a júri popular.
Inicialmente,
as revoluções de 30 e 32, que relatamos nas páginas 101 a 108 no livro dos
Lampert. Em seguida, o assassinato de
Orlando Fett, consequência da revolução e tão bem registrado pelo Dr. Amadeu.
De
repente, surge presa na cidadezinha, aldeia ainda, uma pessoa que tivera a
ousadia de enfrentar uma personalidade ligada à Brigada e ao Governo, não
importa quem e em que situação, nem as razões. Era ao menos um, retribuindo com
violência, as agressões e humilhações da Polícia e da Brigada, que os moradores
de Lajeado, após a revolução de 32, sofreram e tiveram que amargar quase
indefesos. Dessas famílias perseguidas, alguns seriam jurados. Ela era mais uma
vítima de perseguição implacável, um colega de infortúnio e um amigo natural
que merecia todo o apoio. O inimigo do meu inimigo é meu amigo. Meu pai
denunciava os fatos no seu jornal “A Semana”. Acabou preso também e enviado
para um Quartel da Brigada em Porto Alegre para cumprir 15 dias de prisão.
Criou-se
com naturalidade um clima de simpatia ao Dr. Voltaire, favorecido por
reportagens semanais no jornal do meu pai. A expectativa do júri dominava as
conversas da população, todas favoráveis ao réu.
Tenho
lembrança que meu pai, como defensor do Dr.Voltaire, participou das audiências
que antecederam o júri.
Estes
fatores remotos, penso, contribuíram para que o competente trabalho de seus
outros defensores, na ocasião do júri, tivessem como resultado a absolvição do
Dr. Voltaire, para grande satisfação de minha família e da comunidade de
Lajeado.
No
dia do júri (19 de fevereiro de 1938), a defesa do réu contou também com os
advogados Drs. Camilo Martins Costa, Lauro Menna Barreto e Clodoveu Bittencourt Pires. Após os três
primeiros terem se manifestado de forma brilhante, meu pai, inquirido pelo
Juiz, declinou de fazer uso da palavra. Era um orador modesto e não havia mais nada
para acrescentar. A absolvição do réu eram favas contadas. Meu pai conhecia
cada jurado e já antecipara o voto de cada um.
O clima político na cidade de Taquari era
tal, que o processo teve que ser desaforado para a comarca de Lajeado em
9-3-1937. Inseridos na nominata do corpo de jurados, vários dos atormentados
lajeadenses. As provocações e ameaças cessaram como por encanto, até o dia do
júri, já com o novo interventor. Entre os sorteados, várias vítimas de
perseguições. O resultado foi a absolvição do réu por sete votos à zero,
tornando transparente o voto de cada jurado. Mais uma vez se acentuaram as
violências e ultrajes, que só cessaram pelo suicídio de um dos jurados perseguidos. Os jurados foram Edvino Storck, Rui Lopes,
Eugênio Fluck, Benno Fischer, Fernando G. Scherer e Francisco Rodolfo Froelich
e Reinaldo Foltz (ambos Integralistas).
Pois bem. Conforme já relatado, após
lido o livro biográfico do Dr. Amadeu Weinmann sobre o Dr. Voltaire, escrevi ao
seu filho (Érico Barone Pires), descrevendo as minhas lembranças, desde a
infância, sobre a vida do biografado. O Dr. Érico, por duas vezes, me convidou
à sua residência, e estive lá para somar os conhecimentos sobre o Dr. Voltaire
e encontrar versão compatível.
Por intermédio de um amigo e advogado
de Lajeado, tentei encontrar os autos do júri do Dr. Voltaire, mas meu amigo
foi dissuadido no cartório, com as alegações sobre a dificuldade de
encontrá-lo.
Mesmo decorridos mais de 78 anos após
o júri, ainda é tempo do episódio ser relembrado e disponibilizado, para que
essa história verídica se perpetue nos
arquivos históricos na região do Vale do Taquari. Marcou época.
Após o júri, Dr. Voltaire ficou
morando com a esposa e filho perto da nossa casa em Lajeado e seguia advogando.
Meio ano depois, desejando mudar-se para a capital, procurou meu pai em nossa
residência. Pediu-me para chamar a minha mãe e convidou-o formalmente para
exercer advocacia em Porto Alegre em sociedade com ele. Eu assisti. Meu pai,
comovido, agradeceu, mas não tinha maiores ambições. Um abraço de ambos,
emocionados, selou a despedida.
Finalmente,
a morte trágica do Dr. Voltaire em 14 de agosto de 1950, deixou meu pai
arrasado e a comunidade desolada, mas sua figura e as recordações continuaram
vivas por muito tempo. Deixou inúmeros amigos. Sua morte, em acidente
aviatório, não tem explicação razoável. Para atender um processo trabalhista em
Lajeado, tendo como reclamada a firma Trierweiler & Cia. Ltda., Dr.
Voltaire embarcou em Porto Alegre num taxi aéreo Beechcraft-Bonanza, para pouso
na pista em Estrela. Perdido no meio da cerração atingiu o solo em São
Jerônimo, completamente fora de rota, matando o piloto e o passageiro.
Dr. Voltaire Bittencourt Pires
permanecerá vivo ainda muito tempo em nossa memória.
Dez
anos após o lançamento da biografia (com edição esgotada), fui informado que o
Dr. Amadeu Weinmann mandou fazer uma segunda edição, acrescentando no texto
inicial do novo livro na próxima feira do livro em Porto Alegre, a minha
contribuição ao conhecimento da vida do biografado, que eu havia encaminhado
anteriormente ao Des. Érico Barone Pires. Um gesto de grandeza e um carinho à
memória de Mário Lampert.
Muito me orgulha fazer parte desse
livro.
Obrigado Dr. Amadeu Weinmann.
IRMÃO EMÍLIO - SUA HISTÓRIA EM LAJEADO
Irmão Emílio
Cesário - fundador do Ginásio São José - foi religioso marista no Colégio São
José, em Lajeado, de 12-2-1939 a 15-1-1943. Para isso, diz a história dos
Irmãos Maristas de Lajeado, Irmão Emílio conseguiu a subvenção anual de 12 contos de réis,
importância da taxa de fiscalização exigida em lei. Em setembro de 1939
assentou-se definitivamente a criação dos cursos secundários.
Texto da colaboração de J. A.
Schierholt ao meu pedido. Vamos à história:
Em Lajeado, já existia há muitos
anos o Colégio São José, masculino, internato e externato, católico,
administrado pelos irmãos maristas, com 5 anos de ensino primário, mais 4 anos
de ensino propedêutico e, após, mais três anos de “guarda-livros”
(contabilidade).
Segundo nossas lembranças, em 1939
o Ministério da Educação e Cultura incentivou que todas as escolas do Brasil
adotassem um critério uniforme com programa e currículo sugerido pelo MEC. A
adesão era voluntária. O Ministério se comprometia em manter um fiscal
permanente durante os exames de fim de ano, para autenticar e dar validade à
aprovação do aluno que estaria apto a ingressar no curso seguinte. Lembramos
ainda seu nome: Dr. Marino Candal Fernandes.
Irmão
Emílio, diretor do colégio São José, entusiasmou-se em participar e, apesar do
clima social adverso na cidade, convenceu a comunidade de Lajeado a formar uma
comissão para tratar do tema. Na comissão, entre outros, João Frederico Schaan
(prefeito municipal) e líderes comunitários, entre eles Pedro Albino Múller,
Albino G. Arruda, Mário Lampert, Mário Jaeger, Lothar Christ, Hugo Oscar Spohr
e outros.
Devemos
ao Irmão Emílio Cesário o discernimento, iniciativa, liderança e execução de um
plano cujos efeitos positivos jamais alguém poderia imaginar. Ele participava
ativamente em todas manifestações da cidade, assim como, frequentava festas e
reuniões familiares. Era um comunicador nato.
Nossas
homenagens e gratidão.
Na
região, apenas em Santa Cruz do Sul, Passo Fundo e Caxias do Sul decidiram-se
pelo ginásio sugerido pelo MEC. Os demais municípios periféricos ainda
demorariam cerca de 8 anos para aderirem novo programa.
Lajeado
era uma cidade fragmentada e dividida entre ferrenhos católicos e luteranos
(maioria), de origem alemã em grande número. Descendentes de lusos e italianos
em bem menor escala. A dicotomia política entre governistas e contrários,
refletia-se também no futebol entre gremistas e colorados. Além disso, os
“inimigos do futebol” com as comunidades vizinhas. Nas escolas católicas,
rapazes numa escola e meninas em outra. Na igreja, homens à direita e mulheres
à esquerda. Preconceito racial, étnico,
social e econômico era a tônica natural. Cada um no meio dos seus. O
descontentamento era generalizado e ninguém se apresentava para dar início a uma
nova ordem.
Foto: Leandro Lampert
A
comunidade estava ferida e dividida desde o assassinato de um líder comunitário
e evangélico, Orlando Fett, cometido em 1935 por um sicário do Interventor
Estadual por razões de perseguição política às vésperas da eleição de João
Frederico Schaan para prefeito municipal e proteção ao criminoso - que logo foi
solto. Também o DOPS interviera na Sociedade Ginástica, expulsara toda a
diretoria e com meia dúzia de sócios, numa Assembleia Geral Extraordinária a
contragosto, nomeara por aclamação uma diretoria composta exclusivamente por
católicos, descumprindo (talvez sem o desejar), um conceito que desde as sua
fundação sugeria que os diretores deveriam ser escolhidos obedecendo uma
divisão equitativa. Os luteranos, ofendidos, se retiraram do convívio da
Sociedade Ginástica e a frustração e o ódio logo se fizeram presentes. Somente
anos após e com a eleição do luterano Norberto Heberle, estimado por todos, é
que a sociedade, depois de trocar de nome, voltou a contar com todos os seus
associados.
Essa
era a comunidade para criar uma escola paga, para ambos os sexos, laica e que
congregasse ao mesmo tempo alunos das cidades periféricas. Juntar tudo em um
clima de desconfiança e explosivo. Seria necessária a ruptura do passado e
início de uma vida nova na região do Vale e aceitação do semelhante. Não seria fácil. Todos teriam de ceder e
esquecer.
Seria
criado o Ginásio São José no estabelecimento dos maristas em Lajeado e as
meninas manteriam o mesmo currículo, fazendo os estudos no colégio Sant Ana
dirigida pela irmã Elvira, mas tarde Colégio Madre Bárbara, cuja diretora foi
Madre Alódia. Somente nos exames semestrais seriam agrupados em sala maior no
Ginásio São José, com as meninas devidamente custodiadas por uma freira.
Irmão
Emílio, um agregador nato, tendo criado a comissão, revelou seus dotes de liderança,
explicando desde logo que religião estaria fora do currículo e independente de
raça, etnia, gênero e condição social, cultural ou econômica.
Todos
os membros da comissão tinham filhos ou parentes que seriam candidatos aptos a fazer os exames de admissão e ingressar no primeiro
ano do novel Ginásio São José. A esperança era generalizada e o apoio vinha de
todos os níveis.
Sucesso
total.
Alguns resultados
que se seguiram foram muito além de qualquer expectativa, em consequência das
atitudes dos próprios alunos que se viram libertos das pressões que dividiam a
comunidade. Uma união voluntária de princípios, surgida espontaneamente entre
os alunos (não distinguimos lideranças) afastou, desde logo, diferenças de
etnia, religião, divisão de origem dos alunos provenientes de todas as cidades periféricas.
Nada os desunia ou perturbava. Transmitiram esses valores aos demais alunos que
viriam ingressar nos anos subsequentes e que se tornariam permanentes.
A
comunidade estava em dificuldades. A enchente do rio Taquari em 1941 deixara o
leito do rio assoreado, em agonia e o desenlace estava bem próximo. As estradas
de terra esburacadas e sem pontes nos rios Taquari e Caí, servidas por barcas,
submetiam à longas filas de espera. Um desafio permanente à paciência. Uma
esperança era a modificação do traçado da estrada projetada, que partindo de
Tabaí e atravessando o Taquari entre Estrela e Cruzeiro do Sul, via calha do
arroio Sampaio até Sete Légua, depois Soledade. Finalmente foi aprovado o
traçado da atual BR 386 que colocou Lajeado no fluxo de passagem de veículos do
nordeste do Estado com destino à Capital. Foi decisiva para o progresso da
região.
O
povo acreditou e participou.
Os
demais moradores de Lajeado, acabaram seduzidos pelo novo clima social que se
criou e foi fator decisivo para o vertiginoso crescimento da cidade, que se
transformou em polo rodoviário, escolar, médico, cultural e econômico.
No
primeiro ano do ginásio, menos de vinte alunos e apenas moradores de Lajeado,
Estrela e poucas cidades periféricas, mas já no terceiro ano desencadeou-se a
invasão dos “italianos” e ‘”lusos” para a cidade que nunca mais teve fim,
trazendo para a comunidade os seus valores, seus costumes que se mesclariam com
os já existentes, criando uma saudável pluralidade. Foi o ginásio que os
atraiu.
Identificamos
a época da “invasão” italiana, consequência da abertura do ginásio, que
sobrenomes italianos começaram a aparecer em 1944 cada vez com maior
frequência, logo seguida de descendentes lusos. Sem maiores preconceitos,
iniciaram-se os casamentos de pessoas de outra origem. Hoje, a cidade tem um
equilíbrio saudável entre as etnias e o tema tornou-se secundário.
Depois
do ginásio, mais três anos. As meninas frequentariam a Escola Normal no colégio
Madre Bárbara e os rapazes o curso de Técnico Contábil, Contabilista e no
terceiro ano (o meu) Contador, no Ginásio São José. Os demais prestariam exame
vestibular para as universidades em Porto Alegre, optando para curso Técnico ou
Cientifico.
Uma
geração posterior, descendentes da comissão primitiva da criação do ginásio,
juntamente com mais pessoas, fariam parte de uma nova comissão que criaria a
Univates em Lajeado e a levaria a um desenvolvimento cada vez maior e alterando
totalmente o ensino, a cultura, a riqueza, lavoura, pecuária, indústria e
comércio.
Em
Lajeado haverá um logradouro que o homenageie? Creio que não.
CLUBE TIRO E CAÇA – SUA HISTÓRIA
O Tiro de Guerra 236, sociedade
civil com estatutos registrados em Cartório, foi fundada em 20 de agosto de
1916, era proprietária de sobrado sito na Rua Santos Filho, 275 em
Lajeado. Cumpriu seus objetivos até 1945,
quando os cursos de ensino militar particulares foram encerrados no Brasil.
Restou um patrimônio imobiliário,
gravado com um contrato de comodato com o Ministério da Guerra, só extinguível
com o encerramento das atividades da Sociedade e liquidação do patrimônio que,
por imposição estatutária, seria doado às entidades assistenciais de Lajeado. O
imóvel também achava-se hipotecado junto à Cooperativa Banco Popular de Lajeado
(Caixa Rural), gerenciada por Jacob Scheid Sobr., em garantia de empréstimo
para adquirir a sede na cidade. Estava com seus compromissos financeiros em dia
e restava ainda um saldo a pagar para liberar a hipoteca.
Surgiu a ideia de, aproveitando a
existência de razoável patrimônio líquido, criar um novo clube com a venda do
acervo, com outros objetivos sociais, bem como pagar a Caixa Rural e investir
numa área com bosque na periferia da cidade, criando um clube campestre. Logo
evoluiu para um Clube de Caçadores, existentes em todo o mundo desde a idade
média.
Em Lajeado, pelo menos um terço dos
homens adultos caçava a fauna nativa, durante todo o ano, sem distinção de
espécie. Não havia limites e poucos tinham registros de armas e licenças de
caça. Não havia fiscalização.
Alem da caça desenfreada, o
desmatamento e mais tarde o uso de inseticidas na lavoura, estava levando a fauna
à extinção.
O novel clube colaboraria com a
Federação dos Clubes de Caçadores do RS na divulgação de regulamento indicando
espécies, quantidade, épocas e rotatividade de áreas rurais e proibindo a caça
de espécies que estavam em risco de extinção. Pela primeira vez, parte da
população estava compreendendo o que era ecologia e defesa do meio-ambiente. Os
próprios associados fariam respeitar as normas.
Tudo parecia fácil, mas as
dificuldades logo se apresentaram. Primeiramente, o Ministério da Guerra recusou-se
a liberar o contrato de comodato que garantia a disponibilidade de residência
para o sargento instrutor, sala de aula, depósito de munições e local para o
armamento. Aceitava a mudança do objetivo, mas exigia que no novo nome da
sociedade – que sucederia o Tiro de Guerra – tivesse a palavra TIRO, deixando
evidente a dependência com o Exército. Em lugar de Clube dos Caçadores e por
decorrência da palavra Tiro, a diretoria da nova sociedade teve que mudar o
nome pretendido para Clube Tiro e Caça, que não agradou a ninguém. Exigia que o
novo imóvel assumisse o contrato de comodato, em vigor até hoje e uma entidade
que avalizasse esse compromisso. O prefeito nomeado Ruy Azambuja (procurado por
Mário Lampert e um Coronel do exército devidamente credenciado), no mesmo ato,
editou documentos que a Prefeitura Municipal de Lajeado assumiria, se fosse
exigida, essa responsabilidade.
Restou a opção: Transigir com Clube
Tiro e Caça ou nada. Deu Clube Tiro e Caça. Um nome não faz um clube e sim um
clube faz um nome.
Formalmente a diretoria do Clube Tiro
e Caça tratou de vender a sede do antigo Tiro de Guerra 236, adquirir na
periferia da cidade uma área rural com mata nativa e resgatar a hipoteca na
Caixa Rural. Da terra adquirida, seria reservada uma área (menos da metade), de
frente para o rio Taquari, destinada a um loteamento cuja receita cobriria as
deficiências financeiras da compra da área rural e os futuros gastos com o
cercamento da propriedade, terraplenagem, iluminação, água e construção da
pedana de tiro ao prato, sede social, aquisição de um aparelho de lançamento
dos pratos alvos e máquina manual de fabricação de pratos, aproveitando os
cacos dos pratos acertados pelos atiradores, mão de obra etc. O bosque restante
seria preservado.
A área destinada ao loteamento era
localizada em duas quadras paralelas, abrangendo três quarteirões grandes e
dois pequenos. Provavelmente de 60 a 70 terrenos, entre as ruas 26 de janeiro e
17 de dezembro, em todo o comprimento da compra. Os terrenos demarcados e
anteriormente desmatados foram vendidos à vista diretamente pela diretoria e
sem intermediários. Norberto Zart coordenou a venda dos lotes. Em Lajeado e
naquele local, os terrenos valiam pouco. O bairro chamava-se por razões óbvias,
Neggerberg (Morro dos Negros) e perto de uma casa de baixo meretrício
denominada “Martelo”. Não havia ruas, nem água e nem luz.Tinha dificuldade de
acesso nas enchentes. Era região de má fama.
Um dia, perguntei ao meu pai – Como
vai o loteamento?. – Todos os terrenos estão vendidos, menos um que ninguém
quis comprar por ser maior, mais caro e ter as quatro faces com metragem
diferentes. Fui ver o terreno e o comprei. Muitos anos depois, após considerar
que eu jamais voltaria a residir em Lajeado, vendi o terreno para Sérgio
Roberto Jaeschke Jaeger. Cito esses detalhes para que hoje se localize até onde
ia o loteamento (vide mapa ao final).
No período em que Mário Lampert era
prefeito municipal, foi construída e inaugurada a caixa d água da Corsan, dando
fim ao tormento dos poucos moradores locais e valorizando o bairro que se
chamaria Hidráulica. A partir daí, a área se desenvolveu.
Lembro de um fato curioso. Tornou-se
necessária a derrubada de cerca de quinze árvores para a construção da estrada
de acesso à sede social e da pedana. Num domingo e no início das obras, nos
deparamos com quinze covas no chão, destinadas ao plantio de quinze essências
vegetais comuns na região. As mudas estavam dentro de latas de compotas vazias
cujos fundos haviam sido retirados. Meu pai convidou cerca de dez presentes
para apadrinharem o plantio das mudas que compensariam as árvores derrubadas.
Tomou uma pá e soterrou a primeira
muda de cerca de 70 cm de altura, com lata e tudo, sob palmas, emoção e muitas
risadas. Passou a pá para Mário Jaeger plantar a sua, que a repassou para
Norberto Zart, Carlos Pereira Marques, Diamantino Cerutti e os demais. Fui o
último a plantar a “minha” árvore e as restantes todos ajudaram. Não sei se
ainda poderia localizá-la.
Assim Lajeado recebeu de presente – e
graças a um pequeno número de associados, um amplo clube que hoje (70 anos após
sucessivas e competentes diretorias) alcançou o estágio atual e que conta com
um patrimônio físico, cultural e social que ostenta com orgulho. Um Clube novo,
sem custo e sem dívidas. Uma façanha. Um pugilo de abnegados e uma meta
definida. Liderança, planejamento e execução. Creio que o Clube teria no máximo
duzentos associados.
Após os primeiros vinte anos dedicados
exclusivamente ao seu quadro de atiradores e amantes da natureza, realizando
treinamentos e torneios de tiro ao prato em diversas solenidades anuais (eu fui
o vencedor num concurso anual de tiro ao prato, denominado Rui Lopes, com
direito a taça. Dante Moraes foi o vice).
Encarecimento da munição, da licença
anual de caça e porte de arma de fogo, redução da fauna e custo de deslocamento
fez diminuir o número de associados e a própria diretoria, sendo Mário Lampert
o presidente, entendeu que deveria aceder aos apelos da população ainda não
associada e diversificasse as atividades de CTC, criando quadras de tênis e
outros esportes, assim como piscinas de recreação. Outras atividades sociais e
culturais que agregassem número maior de associados, especialmente a juventude.
Mário Lampert, muitas vezes reeleito
presidente, entendeu que seu tempo já havia passado e uma diretoria
completamente renovada e com outras lideranças traria o sucesso almejado. Assim
foi e assim será. Hoje, o CTC é referência positiva como clube social.
Eu, filho e neto de ex-presidentes do
Tiro de Guerra, filho do primeiro presidente do CTC e hoje verificando que eu
sou o único ainda vivo entre os vinte que assinaram a ata de fundação em 1946 e
que participou ativamente na estruturação do Clube, desejo com este depoimento,
legar à diretoria e associados a minha visão sobre o nascimento e vida do CTC,
sucedendo o Tiro de Guerra criado há um século.
Almejo à atual e cada nova diretoria
sucessos sem precedentes e registro o meu orgulho em ter participado do
nascimento do Clube Tiro e Caça.
Mapa do loteamento
MEUS AMIGOS JUDEUS
Em fevereiro de 1944, na juventude
dos meus quinze anos, comecei a trabalhar na ACIL, em Lajeado, na função de
“mandalete” (hoje office boy). Alem dos trabalhos de rua (bancos, correio,
repartições públicas, pequenas compras e impressão de cópias em mimeógrafo à
tinta), fui treinado para, nos finais de quinzena, emitir guias de aquisição de
estampilhas na coletoria estadual, relativas ao Imposto de Vendas e
Consignações para os contribuintes do fisco estadual - comerciantes e
industriais, associados da ACIL. Na guia, constariam o nome e a inscrição de
cada um e a descrição da quantidade e valor dos selos, até atingir o valor
quinzenal do imposto. Como todos deixavam para pagar no último dia da quinzena,
havia acúmulo de trabalho e eu colaboraria com os demais funcionários atrás do
balcão.
Logo de início, Jary Jaeger - o
colega que me ensinara - me disse: “Leandro, atenda esta pessoa”; e afastou-se.
Perguntei o nome do interlocutor, o qual me respondeu: “Nathan Wechsler”.
Escrevi o Natan sem o agá, pedi para ele soletrar seu sobrenome, sua inscrição
e ele me ditou os selos que ele precisava, num linguajar com sotaque
estrangeiro, terrível de entender. Depois de alguma demora, dei a guia para ele
assinar. Conferindo, me disse: “falta o agá no meu prenome”, e tive de começar
outra guia. O cidadão estava com pressa e nervoso - e eu meio sem jeito.
Conferida a guia, assinou-a e eu lhe disse: “Na próxima vez, traga um papel com
seu nome e inscrição e o valor total do imposto, e deixa que eu discrimino os
valores dos selos”. Fez um aceno com a mão esquerda e retirou-se. Notei que os
meus colegas de balcão estavam se divertindo às minhas custas e davam sorrisos
marotos da minha dificuldade como aprendiz. Nathan entendeu perfeitamente que o
utilizaram para me passar um trote e deve ter resolvido amparar-me.
No fim da quinzena seguinte, fiz-lhe
um aceno e ele passou-me um papel, com os dados que eu lhe pedira. Fiz a guia,
ele conferiu, assinou e afastou-se com um gesto com a mão que interpretei como
um até logo. Dali em diante, por opção dele, fui o único a atendê-lo nos
próximos três anos e meio que trabalhei na ACIL Meus colegas o chamavam o
“amigo do Leandro”. Nunca tive um diálogo com o Nathan. Apenas uma simpatia
recíproca.
Eu queria trabalhar na indústria,
pois estava recém formado com o título de “contador” (estudei à noite) e era a
área da minha preferência. Pedi demissão e fui trabalhar no escritório do
frigorífico de suínos e bovinos de Ritter & Cia., em Lajeado, e nunca mais
vi meu amigo Nathan.
Em 1949 fui emancipado e convidado à
ser gerente administrativo do frigorífico Sociedade Bom Retirense de Produtos
Suínos Ltda. em Bom Retiro do Sul (dois km além da vila), onde exerci a função
durante mais de onze anos. Enquanto solteiro, morei cinco anos dentro da
fábrica.
Em 1956, uma grande enchente ocorreu
no rio Taquari. O frigorífico ficava na barranca do rio e acima das águas.
Normalizado o nível do rio, os funcionários me informaram que uma pedra de
mármore estava, a meio barranco, encravada no meio da vegetação e entulho. Retirado o mármore, surpreendeu seu tamanho.
Media 80 x 180 e com uma polegada de grossura, retificado em três lados. Impecável.
Tornado público, ninguém se apresentou
para reclamá-lo e ficou encostado a uma parede externa dum prédio.
Tempos depois, estava sentado em minha mesa de
trabalho e ouvi alguém falar. “Com licença, boa tarde”. Aquela voz, sotaque e
nariz eram inconfundíveis. Logo perguntei: “Oi Nathan, o que você está fazendo
aqui?” Surpreso: “Leandro...”. Deu-me um sorriso, lembrando-se de mim.
Disse-me que soubera por aí que
tínhamos encontrado uma pedra de mármore na barranca do rio e ela talvez fosse
dele, perdida quando sua loja de móveis novos e usados no Passo de Estrela foi
atingida pela enchente do rio Taquari em 1956. Argumentei que sua loja fica
vinte quilômetros rio acima e pedi-lhe que descrevesse a pedra. Sua informação
coincidiu com a pedra que tínhamos encontrado na barranca do rio e concluí que
era mesmo a dele.
Eu disse-lhe: “Encoste teu
caminhãozinho, porque vou chamar dois operários para colocá-la na carroceria”.
Colocada a pedra no veículo, desceu e tirou do bolso uma gorda carteira de
dinheiro e perguntou-me: “Quanto paga?” “Não paga nada Nathan, a pedra é sua e
pode levá-la”. Notei que seu olhar era de descrença e em seguida de alegria.
Estava sempre com pressa. Despediu-se
e vi a sua mão abanando pela janela do veículo até sumir-se da vista. Nunca
mais o vi.
Em 1961 fui morar em Encantado e
assumi o cargo de Diretor do frigorifico da Coop. dos Suinocultores de
Encantado Ltda.
Lá também havia uma única família de
judeus: Jacob Markus Katz. Eu frequentava o Lyons Clube e o Markus e sua esposa
- D. Berta - também.
Um dia, depois de terminada uma
reunião, vi que o sobrenome paterno de D. Berta era Wechsel.
- Conheci um Nathan Wechsel em
Lajeado. Era seu conhecido?
- Era o meu pai.
Contei as histórias da guia de imposto
e a cena da pedra de mármore. Eles desconheciam e rimos bastante dessa
descoberta, tantos anos depois.
Markus tinha uma pequena loja de
conserto de máquinas de costura e tinha um sítio onde criava suínos. Era sócio
da Cooperativa e logo travamos laços de amizade. A suinocultura atravessava,
mais uma vez, uma época de dificuldades e os criadores estavam
descapitalizados. De vez em quando, de tardezinha ele aparecia para uma
conversa.
Certa manhã ele apareceu com a
fisionomia alterada e perguntou-me:
- Você viu na TV a guerra entre Israel
e os árabes?
- Ví.
- Eu resolvi. Vou emigrar para Israel
com minha família.
- Desejo uma boa viagem. Me diga
quantos filhos você tem?
- Você sabe que eu tenho seis filhos
homens.
- Seis soldados. Muito bom para
Israel. Todo o mundo sabe que essas guerras religiosas são cruéis e o número de
mortos sempre é muito grande, mas você com seis filhos e com um pouco de sorte,
lhe restarão três ou quatro vivos, número suficiente para deixar herdeiros.
Bati pesado.
Nisto tocou o telefone e atendendo
fiquei olhando para ele. Seu olhar ficou distante. Chocado, levantou-se e foi
embora enquanto eu terminava meu telefonema. Sumiu.
Dias depois, terminada a guerra,
apareceu de manhã, sorridente,
Você viu, mais umas vez o David matou
o Golias.
Nunca mais falou-se em emigração para
a Israel.
Um dia, ele procurou-me, pois decidira
criar frangos de corte e contou-me seu problema: Tinha dinheiro só para comprar
os 2.000 pintos e necessitava de financiamentos
de rações balanceadas da Cosuel para o prazo de até 90 dias e sem juros.
(O frigorífico de aves demorava mais trinta dias para pagar e novo lote já
estaria em andamento). Markus foi o pioneiro na criação industrial de frangos
na região de Encantado.
O nutricionista da Cosuel era eu
mesmo. Fui um dos 14 brasileiros selecionados para usufruir de curso gratuito
sobre nutrição animal patrocinado pelo Ministério da Agricultura dos EEUU em
1957. Frequentei o North Carolina Land Grand College em Raleigh durante dois
meses. Entendia do assunto, mas nunca testara em escala uma criação de aves
para aquilatar a conversão física e econômica de empreendimento. A pequena
venda de ração para aves não comportava o custo de um teste adequado.
Fiz uma sugestão: “Vou lhe atender,
mas você se compromete a registrar todos os custos decorrentes, assim com o a
conversão do alimento em peso vivo, o percentual de mortalidade, conversão
econômica e me relatar”. Negócio fechado.
Meticuloso, Markus era o homem
adequado a conduzir o teste.
Depois perguntou-me: “e se o lote der
prejuízo?” “Conversaremos”.
Tudo na mais absoluta confiança
recíproca.
Como os resultados foram
satisfatórios e a Cosuel continuou financiando o Markus até que em breve sua
conta corrente se equilibrou com naturalidade. Tive a confirmação do valor
nutritivo da ração da Cosuel, dentro do esperado.
Em 1972 fui morar em Serafina Corrêa
e nunca mais vi o Markus. Soube que D. Berta havia falecido.
Um dia, em Xangri-Lá, um dos filhos
do Markus procurou-me e deu-me um livro com uma série de 51 crônicas saborosas
semanais dele na rádio de Encantado: Filósofo
de aldeia.
Mandei para ele um exemplar do meu
livro: Os Lampert – Origens, História e
Genealogia.
Markus, aos 95 anos, foi chamado por
Jeová e deixou na paisagem de Encantado a sua participação ativa na história da
comunidade.
COMPRANDO FEIJÃO NO
OESTE DE SC
Creio que corria o mês de janeiro do
ano de 1957, e na época eu morava em Bom Retiro do Sul. Já era casado com a
Lucy, e meu primogênito tinha um ano de idade. Eu era gerente administrativo da
Sociedade Bom Retirense de Produtos Suínos Ltda., que tinha como diretor e
principal cotista Octávio Trierweiler (também sócio titular da firma
Trierweiler & Cia. Ltda., de Lajeado, cujo ramo era o comércio de cereais,
navegação fluvial, engenho de arroz, moinho de trigo, transporte rodoviário de
cargas etc.).
Líder empresarial em Lajeado, Octávio
foi meu patrão durante mais de onze anos - penso que aprendi com ele as artes e
ofícios do comércio.
Os matadouros de suínos estavam
sujeitos à safra e entressafra. Excesso de oferta (preço baixo) e depois
carência de animais para abate (preço elevado) ocorriam de janeiro a abril.
Pouco trabalho no frigorífico.
A região do Vale do Taquari produzia
a cada ano menos feijão, e seria de bom alvitre também compra-lo no oeste de
Santa Catarina, com farta colheita em dezembro e janeiro, para exporta-lo
diretamente para o Rio de Janeiro via representante de vendas.
Seu Octávio escolheu-me para ser o
encarregado de ir para SC, escolher uma cidade, alugar um prédio, registrar o
posto de compras na Prefeitura e Coletoria Estadual, contratar um empregado,
morar num hotel, comprar feijão, pagá-lo, trocar a sacaria e, por fim, embarcar
via rodoviária para o Rio de Janeiro. Segundo ele, tudo muito fácil.
Administrar uma empresa é uma técnica, mas o comércio é uma arte que eu desconhecia.
Eu nem sabia os nomes das espécies dos feijões que eu iria comprar, que dirá
afirmar a sua qualidade e mercado. Me deram vários envelopes com amostras e respectivos nomes: preto, branco, mouro, enxofre e
cavalo claro.
Seu Octávio me deu uma procuração,
lotou um jipe 1954 capota de lona com sacaria vazia nova, duas agulhas, linha
de costurar sacos e um calador. Restava apenas um lugarzinho apertado para o
motorista, sua maleta de roupas e uma grande pasta de couro lotada com dinheiro
vivo para pagar as compras de feijão. Deu-me um mapa do RS e SC e disse: “Vai”.
Fui com o coração apertado. Seu Octávio disse que seria tudo fácil. Fácil? Só
para quem sabe, e eu não sabia.
Comecei
a viagem de madrugada em Lajeado com destino à Mariante, depois Venâncio Aires,
Soledade, Carazinho até Iraí onde cruzaria o rio Uruguai. Depois, Santa
Catarina até encontrar uma cidade para sede do posto de compras de sua firma.
Percorreria cerca de 500 quilômetros em estrada de chão batido e muita poeira.
Na travessia o barqueiro
perguntou-me para onde eu ia. Eu não sabia ainda, mas ia à procura de feijão.
Sugeriu-me Palmitos, que ficaria no meio da produção, tinha correio e telégrafo
- eu já sabia que não existiam bancos na região para operar com dinheiro, e
também não havia telefone.
Já de noite, cheguei ao hotel em
Palmitos, moído, cansado e todo vermelho da poeira da estrada. Que aventura.
Daquelas de contar mais tarde para os netos.
De manhã falei com o hoteleiro para
alugar uma casa. Sugeriu-me alugar um salão de baile que estava disponível,
logo na esquina à esquerda do hotel e duas quadras abaixo. Aluguei-o por dois
meses e aluguei também uma balança com rodas, para 300 Kg. Contratei um
empregado local, que entendia de feijão e conhecia colonos produtores da região.
Sondei o mercado e comecei as compras, pagando à vista no momento da entrega da
mercadoria. A firma Trierweiler já era conhecida na região, e assim que acabou
o dinheiro comecei a comprar fiado para pagar em dez dias, quando receberia
novo lote de dinheiro.
Na região, logo falaram que eu seria
um “cobra” no comércio de feijão. Nem imaginavam que eu era apenas um reles
principiante que tinha sido orientado a “sentir” o clima comercial e agir com
independência.
Eu sabia que o comércio de feijão
era de alto risco. Permitia ou tirava resultados.
Eu estava sempre com a pasta de
dinheiro na mão e discretamente armado.
Telegrafei para Lajeado, pedindo
mais dinheiro, e soube que as vendas do “meu” feijão estavam ocorrendo
normalmente. Foi fácil.
A Lucy foi trabalhar comigo aos 14
anos. Aos 18 nos casamos e com 20 anos tivemos o primeiro filho. Nas minhas
ausências eventuais, ela assumia o comando do escritório. Em 1958 tornei-me o
único gerente da Bom Retirense, assumindo também a gerência industrial,
auxiliado cada vez mais pela Lucy. Ela trabalhou comigo por 10 anos. Em abril
de 1959, a Bom Retirense trocou sua razão social para Trierweiler & Cia.
Ltda.
Seu Octávio mandou uma maleta de dinheiro para
a Lucy em Bom Retiro do Sul para que fosse a Porto Alegre de ônibus, contatasse
por telefone com a filial no cais do porto para completar o dinheiro
necessário, recebesse a passagem da Varig para destino em Iraí e tomasse o
avião DC3. Eu a estaria esperando no aeroporto rudimentar de Iraí. A Lucy
jamais tinha viajado de avião e levaria sua bagagem e uma maleta com dinheiro
para me entregar no desembarque. Projeto de uma imprudência irracional, mas deu
tudo certo. Eu confiava no desembaraço da Lucy.
No desembarque dela nosso olhos se
cruzaram, com um sentimento de recíproco carinho e confiança. Ficaria alguns
dias comigo em Palmitos.
O que eu não sabia era que a região
ainda estava sendo desbravada e a violência campeava. Hotéis e restaurantes
precários, com banheiros “lá fora”. Quase não havia roubo, mas as brigas e
assassinatos eram comuns. Muitos aventureiros. Logo na primeira tarde, a Lucy e
eu ouvimos um alarido perto do hotel e fomos ver o que havia. Uma briga de dois
compadres, que depois de umas e outras, estavam engalfinhados. Um deles mordeu
e decepou com os dentes parte da orelha do outro. Gente fina e sangue à
vontade.
Paguei o feijão que devia e comprei
mais um pouco para pagar quando voltasse de Lajeado, depois de levar de jipe a
Lucy para Bom Retiro do Sul. Traria mais outra mala com dinheiro.
Assim, entre idas e vindas de jipe,
comprei feijão em janeiro e fevereiro, adquirindo experiência para voltar no
ano seguinte. Voltei. Já havia, então, um banco em Palmitos. Exportei dezenas
de cargas de feijão para o Rio de Janeiro. Correspondi às expectativas
esperadas.
Em janeiro do ano seguinte, reiniciei
as compras de feijão em Palmitos, no mesmo local e com o mesmo empregado,
instruindo outro gerente da firma Trierweiler a substituir-me na segunda
quinzena até meados de fevereiro, quando se encerrariam as compras.
Nos dois verões seguintes, no mesmo
jipe, fui incumbido de comprar arroz em casca dos rizicultores de Taquari, Rio
Pardo, Venâncio Aires, General Câmara e Candelária, indo nos sábados e voltando
no dia seguinte. Um atoleiro atrás do
outro. Comprei arroz com casca tipo japonês e blue rose - então, os únicos
existentes nas lavouras e hoje já desaparecidos.
O gerente da filial de Mariante, meu
colega e primo-irmão Loreno Lopes foi o meu substituto em Palmitos e o parceiro
na compra de arroz.
Em 1961 mudei de residência para
Encantado e fui nomeado diretor superintendente da Cosuel, matadouro
frigorífico de suínos. Entrei também no ramo de óleos vegetais, rações
balanceadas, supermercado, leite em Arroio do Meio, vinho em Nova Bréscia e
erva mate em Burro Feio, no município de Anta Gorda.
Palmitos e similares nunca mais. Não
se abusa da sorte.
TIO GASPAR E TIA CARULA
Meu trisavô paterno, Luiz Antônio
Ramos, casado com Joaquina da Silva (vó Quinca) nascida em 1829, era um dos
latifundiários que lotearam e venderam terras de sua propriedade em Venâncio
Aires e Lajeado no início da colonização desses municípios.
Uma de suas filhas, Marcolina da
Silva Ramos (1850-1920) casou com Carlos Roberto Schroeder (1843-1909), então
luterano que, ao casar, tornou-se católico e eram os pais de minha avó Joaquina
Ramos Schroeder (1881-1934), que casou com meu avô Leopoldo Lampert
(1871-1958), também luterano e que se tornou também católico. Tiveram sete filhos.
Meus avós paternos herdaram 80 Ha de
terras na Itaipava dos Ramos, área rural entre Cruzeiro do Sul e Mariante,
chamada de Chácara, na barranca do rio Taquari e junto com a propriedade, gado
e benfeitorias foi o tio Gaspar, casado com tia Carula, casal de
afrodescendentes e na época em que eu ainda menino de 7 anos, o conheci.
Segundo fui informado, nascera escravo de Luiz Antônio Ramos. Creio que ao
receber a herança da sogra, meu avô Leopoldo atendeu à recomendação de zelar
pela vida do tio Gaspar e o fez. Os demais seis irmãos de minha avó também
herdaram propriedades rurais semelhantes, povoadas de gado e localizadas na
Itaipava, Mariante e Taquari Mirim.
A chácara situava-se perpendicular à
barranca do rio e era cortada pela estrada Lajeado à Mariante, cerca de 50 m do
rio. Havia a casa grande, de alvenaria, elevada do chão em face às enchentes,
cerca de 1,20 m., no meio do terreno pequeno. Tinha duas portas dianteiras e
duas escadas de pedras. O sótão era aproveitado por uma escada interna e também
tinha dormitórios. Afastada cerca de 5 m
à direita, a cozinha, ligada à casa grande por uma passarela em declive,
coberta por telhas, prevenção habitual contra incêndios na cozinha. Em ângulo
reto, a casa do capataz. No pátio, uma magnífica figueira, cujos ramos
atravessavam a estrada e se aproximavam das casas.
Tio Gaspar e tia Carula moravam
sozinhos em uma casa de madeira dentro do potreiro que era ladeado por
lavouras, do outro lado da estrada. Já era um homem velho, franzino, de
carapinha branca e continuava como empregado da área rural. Sua esposa era uma
mulher alta, forte e tinha um bócio enorme no pescoço. Estava sempre faceira.
Junto a casa, um cercado com aves, horta, aipim e árvores frutíferas. Os filhos
do casal eram marinheiros no rio Taquari e as filhas já eram casadas. Tinham
vida própria.
Tio Gaspar era tratado com respeito
pelos demais peões solteiros, pois gozava de alta consideração com meu avô e
por nós, seus netos. Era um homem de confiança.
Não tinha função específica, mas
zelava pela propriedade e tinha seus próprios horários. Não precisava de
comando do capataz Neco. Sua principal função era providenciar que as éguas e
suas crias atravessassem a estrada, das baias para o potreiro sem problemas de
tráfego na rodovia.
Lembro-me ainda, como se fosse ontem
que, sendo um sábado, encarregou-se de matar, esfolar e carnear um cabrito que
seria assado no churrasco do domingo. Apresentei-me como espectador único e
fiquei curioso, olhando a operação.
Tio Gaspar amarrou uma soga no pé do
cabrito e passou a corda num galho de uma árvore, deixando-o dependurado. O
bicho ficou berrando feito louco. Colocou uma bacia grande no chão, debaixo,
puxou uma faca e segurando o animal, fechando sua boca, passou a lâmina debaixo
do pescoço, degolando-o. O sangue caiu dentro da bacia. Não me assustei com o
espetáculo.
Morto o bicho, amarrou uma segunda
corda no outro pé, de maneira a ficar com as pernas abertas, facilitando a
tirada do couro.
Ia me explicando - tem que cuidar
para não fazer furo no couro. Ao abrir o ventre com um corte vertical, disse –
tem que cuidar para não furar as tripas e por aí a fora. Colocou as vísceras na
bacia já lavada pela tia Carula e foi me dando a primeira aula de anatomia em
um mamífero. Apontou com a faca e disse – coração, em outra víscera disse –
figo – e depois – os bofe. Esfolado o cabrito, deixou-o cortado ao meio no
sentido vertical e dependurado na árvore, bem alto do chão até o outro dia
quando estaria “oreado” e seria espetado para o churrasco dominical. Creio que
era aniversário do meu avô, naquela altura da vida já viúvo.
Perto das casas e na beira do rio,
um enorme galpão com um corredor no meio que abrigava as éguas e o garanhão
(meu avô tinha um haras e criava cavalos Puro Sangue Inglês, com registros no
Stud Boock do Rio de Janeiro). Menino ainda, eu dedilhava as comunicações de
coberturas e nascimentos dos equinos na máquina de escrever do pai, uma Royal e
as enviava pelo correio.
Quando fiz nove anos, meu avô
Leopoldo adquiriu dois petiços para seus netos de Lajeado e Cruzeiro do Sul.
Todos os sábados, depois do meio dia, eu ou meu irmão Luciano o acompanhávamos
até a casa de seu genro, tio Osvaldo Lopes, em Cruzeiro do Sul, para que um dos
meus três primos, Gabí, Marino ou Ciro se juntasse a nós na viagem até a
chácara, 14 km de Lajeado, costeando o rio Taquari abaixo. Pode se imaginar o
orgulho de viajar montado, com dois netos tagarelas e ávidos de conhecimento.
Tio Gaspar já estava nos esperando,
desencilhava os três animais e os conduzia a um potreiro pequeno. Dalí em
diante, ficava com os guris enquanto meu avô conversava com o Neco. Sempre
tinha alguma novidade para mostrar. Um ninho de Quero-Quero com dois filhotes
no potreiro, uma toca de “largato” (ele espetava uma vara na toca e o fazia
sair apavorado) para alegria nossa, que estávamos seguros em cima de uma taipa
de pedra. Informava-nos o nome das éguas e dos potros. O pai era o cavalo
argentino que meu avô mandara comprar, seu nome era El Raro, preto lustroso,
sinal branco na cabeça e quatro patas brancas. Era uma beleza de se ver. Era
uma fera e jamais foi montado. Nos levava até o fundo do potreiro onde havia um
açude para ver garças, frangos d‘água e
socós. Sabia os nomes de todas as aves. Nos levava a pescar lambaris na beira
do rio. Sabia onde havia amoras, pitangas, coquinhos e butiás. No rio Taquari,
havia a cachoeira e a passagem de barcos era próxima à barranca e o lugar
chamava-se “furado”. Havia trânsito contínuo de barcos no rio Taquari.
Tio Gaspar passava o sábado e o domingo
junto aos guris, protegendo-os dos perigos dos animais e ensinando os nomes das
coisas que os meninos da cidade não conheciam. Aprendemos muitas coisas com
ele, inclusive desconhecendo para sempre o preconceito racial.
Quando um produtor rural trazia uma
égua no cio para cobertura, era o tio Gaspar o encarregado de nos levar para um
lugar afastado. Um dia, ouvimos o Neco informar o dono da égua no momento da
entrega – foi “servida” duas vezes.
Tia Carula, nas safras de goiaba e
marmelo ia, inicialmente a pé e depois pelo ônibus para Cruzeiro do Sul, na
casa de minha tia Zaira e em Lajeado na nossa, tomando a frente da produção de
marmelada e goiabada para consumo da família durante o ano. Era tratada com
carinho e, lembro ainda, dormia num quarto do galpão, usava o banheiro do peão
e fazia suas refeições em separado, segundo os costumes da época.
Sua foto com minha irmã Leonor no
colo lá por 1930 (talvez a única da vida dela) retrata o carinho recíproco dela
e nossa família.
Foto Leonor Lampert Marques
Anos depois, já mais crescidos, eu,
meu irmão e os três primos já com outros interesses nos fins de semana, além do
início de linha de ônibus entre Lajeado e Venâncio Aires, meu avô vendeu os
petiços e seu cavalo de montaria. Encerrou também as atividades do haras,
desfazendo-se nos animais.
Passei alguns anos sem ir à chácara
e quando fui, vi que a casa do tio Gaspar já tinha sido demolida e perguntei por
ele. Informaram-me que havia falecido e tia Carula, com dificuldade de
locomoção, fora morar com uma de suas filhas em Cruzeiro do Sul. Vi também com
tristeza que a figueira tinha morrido.
Viveram a vida humilde dos peões
rurais, analfabetos e sem perspectivas de crescimento profissional, mas
encontraram o amparo necessário às dificuldades nas suas velhices. Deixaram
somente emoção e suaves lembranças dos tempos que já vão longe. Só passaram
pela vida. Não viveram.
Foi bom conhecê-los tio Gaspar e tia
Carula.
Descendente por via paterna e
materna de latifundiários e loteadores, não recebi de herança sequer um palmo
de terras.
Parte da chácara (60 Ha), consta que
coube às duas filhas de meu primo irmão falecido Ciro Lopes. Uma gleba coube ao
primo irmão do meu pai, ainda vivo, Antonio (Toninho) Schroeder na beira do
Arroio Taquari Mirim, divisa de Venâncio Aires com General Câmara. Vinte Ha
foram vendidos a um vizinho.
O MOTORISTA ACIDENTADO
Ao
entardecer de um dia em 1964, já depois do expediente, o telefone toca em minha
sala no escritório velho da Cosuel. Era do hospital Santa Terezinha em
Encantado, informando que dera entrada um ferido em acidente de caminhão. Pelos
documentos, tomaram conhecimento do nome do motorista, do dono do veículo e por
uma nota fiscal de compra de soja, o nome do produtor associado da Cosuel que
residia em Ibirubá.
Ao ser atendido por populares, só
teve tempo de pronunciar a palavra Leandro e desmaiou. Por isso, pediram que
fosse até o hospital identificá-lo.
Lá chegando, não o reconheci, não
conhecia o dono do caminhão, mas sabia quem era o associado da Cosuel. Informei
logo que a Cosuel assumiria os encargos necessários.
O médico de plantão me comunicou que
o ferido, em estado de choque, iria a óbito em razão dos ferimentos recebidos.
Informou-me que faria uma injeção no paciente, que voltaria a si por algum
tempo e depois iria falecer.
Assisti a injeção e fiquei sentado
perto da cama. Ficamos no quarto somente eu o ferido. Minutos após, vi que ele
abriu os olhos, surpreso. Logo me apresentei: Sou o Leandro, você está ferido e
no hospital de Encantado sob cuidados médicos.
Estendeu-me a mão e ficou segurando a minha com força. Informou-me que o
dono da soja lha fizera uma observação: No caso de algum problema, que falasse com o Leandro. Por isso,
mencionou o meu nome aos que o acudiram. Falou sobre o acidente, distraiu-se,
saiu do leito da estrada e bateu no barranco. Logo falou que tinha esposa e um
filhinho pequeno, que morava no interior de Ibirubá e que a esposa deveria
estar preocupada com sua demora. Falei que os funcionários do hospital já a
haviam informado do acidente.
Continuou falando e segurando minha
mão. Eu sugeri: Vamos rezar um pouco? Vamos fechar os olhos e rezar em
silêncio. Orei por ele. Ao cabo de alguns minutos, senti que sua mão apertava
menos e logo se desprendeu da minha. Pressenti que ele havia falecido. Procurei
o médico, que logo constatou o óbito. Novamente os familiares foram avisados.
Só me restava tomar as providências
necessárias no preparo do velório, mas sem qualquer experiência, precisava de
ajuda. O médico informou que o hospital teria um quarto disponível para o
velório.
Nesse momento, chegou um funcionário
da Cosuel e se propôs auxiliar. Logo chegaram mais dois e mais cinco. Fizemos
uma pequena conferência e perguntei: Quem vai comprar o caixão? Eu vou. Eu vou
junto. Eu vou falar com o padre. Eu vou comprar uma coroa e flores. Eu vou no
Cartório conseguir a certidão de óbito e passo na polícia para obter a licença
de conduzir o cadáver para Ibirubá. Eu vou ver com funcionários do hospital
sobre a roupa e se necessário comprar alguma. Assim, cada um assumiu seu
compromisso e demos início ao preparo do velório. Comprem com
modéstia
que a Cosuel amanhã irá pagar.
Tudo encaminhado e fui para casa me
preparar para o velório. Algum tempo depois voltei ao hospital. O corpo já
estava vestido dentro do caixão, velas acesas e os documentos disponíveis na
mão. O padre não demorou e fez a encomenda do falecido. Ficamos nós fazendo a
vigília do velório.
Em silêncio permanecemos irmanados
na tristeza e na solidariedade. Meus pensamentos se dirigiram à banalidade da
vida e em reflexões aos mistérios da morte.
Meditei sobre o carinho e a
eficiência dos funcionários do hospital em relação ao acidentado e suas
consequências. Com satisfação, assisti a presença de funcionários da Cosuel,
que voluntariamente se dispuseram a prestar sua participação numa fatalidade
que atingira uma pessoa desconhecida.
À meia noite, sugeri aos companheiros:
Amanhã é dia de trabalho e quem quiser ir para casa, pode ir, não tem problema.
Eu ficarei aqui até a chegada dos familiares que deverá ocorrer só depois das
três horas da manhã. Todos permaneceram. Até hoje lembro os nomes deles.
Cresceram no meu conceito.
Ouvimos o ruído quando chegaram os
familiares e sugeri: Vamos deixá-los a sós com o falecido e depois retornamos
para apresentar nossas condolências.
Vieram sete pessoas num automóvel e
numa camionete. Um deles, irmão da viúva procurou-me para reembolsar as
despesas ocorridas. Fomos à recepção e eu apresentei a relação dos custos.
Efetuou o pagamento a mim e acertou com a tesouraria do hospital.
Ajudamos levar o caixão até a
camionete, ao lado da esposa em desespero. Empreenderam a viagem de volta à
Ibirubá.
Dois ou três meses depois, um padre
de batina assomou ao meu escritório na Cosuel. Estava visivelmente nervoso.
- Seu Leandro?
- Sim, por favor,
sente-se.
Ele entrou e fechou a porta atrás de
si e falou
- O que tenho
para dizer está em parte protegido por segredo de confessionário e vou falar o
mínimo necessário. Por favor, não faça perguntas.
- Sem problemas
padre. Pode falar.
- Lembra do
acidente com um caminhão de Ibirubá, perto de Anta Gorda, pois uma pessoa
esteve no local, mexeu no porta-luvas do caminhão, encontrou um revolver e
furtou-o. Algum tempo depois, o remorso tirou-lhe a paz e ao confessar-se com
um padre, informou que quereria devolver à família a arma furtada, sem que ela
soubesse quem foi. Sugeriu que o padre levasse a arma até a Cosuel em Encantado
e procurasse o Leandro que daria um jeito na devolução.
- Eu tenho o número do
telefone do irmão da viúva e garanto que vou tomar as medidas necessárias para
cumprir o desejo do arrependido. Pode ir em paz.
Na mesma hora, consegui falar com
ele e informou que na sexta feira da semana seguinte passaria na Cosuel.
Chegado, logo lhe falei o mínimo
necessário sobre a origem da arma e imitei o padre. Por favor, não faça
perguntas. Devolvi a arma que estava num pacote tosco sem tê-lo aberto. Nunca
mais encontrei essa pessoa, mas o episódio ficou gravado por mais de meio
século na minha memória.
A
BARRA DO DUDULHA E UM DIÁLOGO BIZARRO
Lá
por 1970, o meu parceiro Erny Griebeler convidou-me para uma excursão
cinegética nos alagados da lagoa Mirim, no sudeste do RS, e perguntou se
poderia levar junto mais dois amigos. Concordei, e no dia e hora certa eu já
estava na casa dele em Vila Scharlau.
Apresentou-os apenas com o prenome e disse para um:
-
Informe ao Leandro quem é você.
- Nasci em Novo Hamburgo ……
Erny,
então, falou a mesma coisa ao outro:
- Eu nasci num lugar que ninguém
conhece e não se sabe onde fica.
Interrompi
e perguntei que lugar era aquele.
- Barra do Dudulha.
- Epa! Eu sei onde fica e já estive
lá na minha infância levado pelo meu pai. Lá tem um cemitério onde foram
sepultados revolucionários mortos em combate.
- Duvido!
- Não duvide... E tem mais,
provavelmente também sei o seu sobrenome, que deve ser Stürmer. Certo?
- Não acredito que você até adivinhou
o meu sobrenome. Me explique.
- Não adivinhei nada e posso
explicar: Lá por 1945 eu fui trabalhar na Associação Comercial de Lajeado e
conheci um associado com o nome de Pedro Eugênio Stürmer, que trabalhava no
ramo de pedras semipreciosas. Ele tinha um irmão que era seu sócio e escavava
uma jazida num cafundó entre os velhos municípios de Lajeado e Soledade, quase
desabitado, chamado Barra do Dudulha, na foz com o rio Fão. Uma vez, em 1947/8,
eu preenchi para ele uma guia de exportação federal que acompanhava um lote de
pedras para a Alemanha. Eu sabia que seu irmão trabalhava na mina e foi fácil
raciocinar que você seria um filho dele.
Por
acaso, você falou com uma das raras pessoas que conheciam o local.
Pedro
Eugênio negociava com pedras semipreciosas semi elaboradas e tinha um forno
para “queimar” as pedras de ametista antes de vendê-las para o exterior.
A
área tinha muitas jazidas sendo exploradas e trouxe resultados econômicas para
os municípios de Lajeado e Soledade. Hoje, quase esgotadas as minas, a maior
produção de ametista de localiza no municio de Ametista do Sul, no RS.
Rindo, perguntei-lhe se conhecia a
história da Revolução Constitucionalista de São Paulo em 1932, da qual meu pai
Mário Lampert participara e o combate havido na Barra do Dudulha, em que forças
de Lajeado e Soledade, comandadas pelo General Candoca - leais a São Paulo -
foram fragorosamente derrotadas pela Brigada Militar do RS, comandada pelo
interventor Flores da Cunha.
Como
seu pai em 1932, além de menino, ainda não residira na Barra, o episódio do
combate não lhe marcou fundo e eu tive de contar-lhe, ainda que resumida, a
história de seu local de nascimento, que eu conhecia como poucos.
Foram
excelentes parceiros, na volta nos despedimos e jamais tive qualquer notícia
deles.
Contatando com familiares de Pedro
Eugênio (seu genro Valmir Petter), soube que um dos meus parceiros chama-se Ary
Eugênio Stürmer, já falecido e o nome do irmão e sócio João Armindo Stürmer.
VIAGEM AO PASSADO DE VILA PROGRESSO
Em setembro de 2003 recebi e guardei
um exemplar do suplemento de turismo do jornal O Informativo, de Lajeado, com
reportagens sobre todos os municípios do vale do rio Taquari. Entre as várias
comunidades, encontrei também a de Progresso, que me fez voltar ao tempo por
mais de 70 anos.
Creio que era fevereiro de 1937 ou
1938, meu pai e familiares, entre eles eu com 8 a 9 anos, fomos de “auto de
praça” de Lajeado até vila Fão, que naquele tempo se chamava Bela Vista. Dali
tomamos uma diligência que fazia a linha até Progresso, que naquele tempo se
chamava Gramado. A diligência (igual às do filme do Zorro) era puxada por seis
mulas. Seguimos serra acima, tendo que parar várias vezes e ajudar a
empurrá-la, pois as mulas não conseguiam subir os terríveis aclives existentes.
Toda a vez que parava, o condutor acionava uma manivela que era a trava. Em
cada etapa para descanso dos animais, estes aproveitavam a parada para fazer
xixi. Todos, ao mesmo tempo, “naquela” posição constrangedora. Cena jocosa e
inesquecível. Na partida, acionava
novamente a manivela da trava.
Aquela viagem e a novidade me
convenceram que a profissão de boleeiro, seria um bom emprego para mim. Eu
adorava livros de aventuras. Guardei na
memória até hoje o nome do condutor - Ricardo Tomazzi.
À tarde chegamos à Progresso.
Hospedamo-nos no hotel do José Pretto, que recebia hóspedes que veraneavam
naquela vila. Localizava-se vis-a-vis à
subprefeitura. As atrações eram a uva, os figos, o clima fresco, povo simples e
comunicativo e as paisagens agrestes, com um conforto mínimo. Alimentação
saudável, colchões de palha de milho desfiada, penico debaixo das camas e
banheiro “lá fora”. As casas, em apenas duas ruas, eram quase todas de madeira
vertical e cobertas por telhas de tabuinhas. Foi meu primeiro contato com
região de colonizadores italianos.
Lá ficamos dez dias. O subprefeito Florisbelo Rodrigues França era
também o subdelegado e tinha um filho da minha idade chamado Odacy. Ele me introduziu no conhecimento das
brincadeiras locais, diferentes para um filho da cidade de Lajeado, como eu
era. Caçadas de rolinhas com bodoque ou pintassilgos e canários terra com
gaiola com alçapão. À noite, procura de
vagalumes que eram guardados num vidrinho e serviriam como lanterna
Numa manhã, assisti a saída dos presos
da cadeia, localizada no porão da subprefeitura. Os presos iam a pé ao lado de
uma pequena carreta chamada de galeota, que era puxada por um burrico branco O
capataz ia na carreta junto com as ferramentas de trabalho de estrada. Ele
levava na mão uma açoiteira muito comprida, que servia para compelir o muar e
os presos recalcitrantes, segundo informou-me o filho do subdelegado.
A igreja estava quase pronta e seu
construtor era o vigário Frei Constantino, que gozava de grande
consideração. Dirigia com firmeza e
bondade seus paroquianos. Tinha grande
influência e sua palavra era lei. Todos os moradores eram católicos. O frei
capuchinho convidou meu pai, Mário Lampert, para tomar um cálice de vinho na
casa canônica, e muito gentil, também serviu um para mim.
Num domingo, fomos à missa e vi pela
primeira vez que a “coleta” era feita de banco em banco com uma vara comprida e
que na ponta tinha um saquinho marrom para depositar o óbolo. Na saída de igreja
meu pai encontrou-se com Martim Bernardo dos Santos, apelidado de Martim
Perigoso, que fora seu companheiro no fracassado combate do Arroio Dudulha,
durante a revolução de 1932. Num abraço fraterno, reminiscências e muitas
risadas,
A família Bagatini administrava uma
bodega de “secos e molhados”, que tinha de tudo. Vendia fiado, por “caderno” e
era ponto de reunião da freguesia. Em
frente à cada estabelecimento, havia um dispositivo de madeira horizontal destinado
à amarrar os cavalos e as mulas enquanto as pessoas estivessem em compras no
local.
Nas ruas sem calçamento, pessoas bem
vestidas, à cavalo, montando mulas ou à pé. Os homens com chapéu na cabeça.
Todos se cumprimentavam ao passar.
Em frente da igreja e um pouco à
esquerda, havia uma cantina de vinho, uma novidade para mim. O dono era
Fioravante Pretto, irmão do hoteleiro. Guardei para sempre aquele aroma. Também
se fabricavam pipas e barris ali.
No hotel, por ocasião do carnaval,
houve um baile infantil vespertino. Quando entrei, tive medo. Todos os meninos,
de cabeças raspadas, estavam com o rosto mascarado com riscos negros. Uma
novidade e um susto para mim. Custei para descobrir qual era o meu amigo. Logo
aprendi com os demais meninos com quem eu comecei a brincar, que um chamava o
outro de Tchó e não de Tchê, como era nosso costume.
Na rua de acesso que desembocava no
hotel, num pequeno matadouro, vi de perto, pela primeira vez, abaterem uma cabeça
de gado. Fiquei horrorizado. Estranhei muito que o magarefe cortou a jugular do
boi com uma faca, tendo na outra mão uma chaira.
Devia ser comum no hotel abater
animais para consumo da família e hóspedes.
Assisti ao sacrifício de um porco no pátio do hotel. Duas pessoas seguravam a vítima de barriga
para cima. Um terceiro espetou-lhe uma faca no pescoço. Num arranco, o animal livrou-se dos que o
seguravam e disparou rua afora sangrando e aos guinchos, alertando e divertindo
toda a vizinhança que acompanhava a cena
em gargalhadas. Foi perseguido de perto e finalmente
alcançado para cumprir a sua sina de transformar-se em banha e linguiça
defumada.
Perguntei pelos veículos a motor e fui
informado que um automóvel já havia chegado a Progresso. Tinha sido o de um
médico de Boqueirão do Leão, de nome Dr. Storck. Depois disso nenhum outro.
O destino, na minha vida, nunca mais
proporcionou que eu lá voltasse.
Recebeu o 1º lugar em concurso da
ALIVAT – Academia Literária do Vale do Taquari no tema Crônicas Históricas, em
28 de setembro de 2011 e fará parte de livro junto com as crônicas dos demais
agraciados, a ser editado pela ALIVAT
A CANÇÃO DO IMIGRATE
Nun ade, du mein lieb Hematland.
Refrão: Nun ade, du mein lieb Heimatland
lieb Heimatland ade. Es geht jezt fort zum fremden Strandt,
lieb Heimatland ade!
lieb Heimatland ade. Es geht jezt fort zum fremden Strandt,
lieb Heimatland ade!
1.Und so
sing ich denn mit frohem Mut,
wie man singet wenn man wandern tut,
lieb Heimatland ade!
2. Wie du lachst mit deines Himmels Blau,
Wie du grüssest mich mit Feld und Au
lieb Heimatland ade!
3. Gott weis, zu dir steht mein Sinn,
doch jetzt zur ferne ziehts mich hin,
lieb Heimatland ade!
4. Begleitest mich, du leiber Fluss,
Bist traurig das ich wandern muss,
lieb Heimatland ade!
5.Vom Moos’gen Stein und Wald’gen tal,
da grüss ich dich zum letzten mal,
mein Heimatland ade!
wie man singet wenn man wandern tut,
lieb Heimatland ade!
2. Wie du lachst mit deines Himmels Blau,
Wie du grüssest mich mit Feld und Au
lieb Heimatland ade!
3. Gott weis, zu dir steht mein Sinn,
doch jetzt zur ferne ziehts mich hin,
lieb Heimatland ade!
4. Begleitest mich, du leiber Fluss,
Bist traurig das ich wandern muss,
lieb Heimatland ade!
5.Vom Moos’gen Stein und Wald’gen tal,
da grüss ich dich zum letzten mal,
mein Heimatland ade!
Obs: Moos’gen =
Moosigen = coberto de musgo
u n’gen = waldigen = coberto de mato
u n’gen = waldigen = coberto de mato
Link da canção: : http://www.youtube.com/watch?v=wB7-uD5rBhA
Para ouvir a canção, pressionar Ctrl e apontar e clicar a
seta do mouse no link
TRADUÇÃO DA CANÇÃO DO
IMIGRANTE
Solicitamos
que Arnilo Brönstrup traduzisse o teor
em alemão para o português.e
recebemos a
seguinte resposta:
Meu caro Leandro,
A canção “u nade, Du mein lieb Heimatland” é um Lied
composto no século 18 pelo estudante de teologia August Desselhoff na cidade de
Amsberg, e se tornou tão popular, que se tornou matéria escolar, e é conhecida
em todo o mundo. Desselhoff fazia parte de um grupo de rapazes que fazia
caminhadas e excursões na sua cidade Natal, e quando aos 18 ou 19 anos teve que
se mudar de cidade, para estudar teologia (tornou-se pastor protestante) compôs
esta canção, que hoje tem um monumento em sua cidade. Ela contem termos ou
palavras que são nitidamente locais da Westfália, como AU, Moos’gen e Wald’gen
Tal etc.
Como podes ver, ela não foi composta para os emigrantes,
era uma despedida para a cidade natal e os amigos,mas se tornou tão popular
entre os emigrantes, considerando-a , como seu hino. Tenho um amigo em Porto
Alegre, Horst Märtin, que me contou uma história muito triste a respeito desta
canção. O Horst perdeu o pai na ultima guerra, quando esta terminou era um
menino de parece-me 6 anos. Pouco depois faleceu a mãe. Ele foi entregue a um
tio. A seguir toda família emigrou para os Estados Unidos, o tio resolveu vir
para o Brasil, e o Horst junto. No momento que passaram pelo cabo na saída do
porto, todos os emigrantes estavam no deck, cantaram esta canção, no meio de
muito choro.
Versão obtida com dois tradutores:
Stefan Martin Robert Wenzel e Arnilo Brönstrup.
(Obs.: O refrão é cantado no início de cada estrofe).
Refrão: Agora adeus, você, minha querida pátria
Pátria querida adeus. Agora é na terra estrangeira
Pátria querida adeus!
Pátria querida adeus. Agora é na terra estrangeira
Pátria querida adeus!
5. E assim eu canto com
felicidade e alegria
assim como se canta quando se peregrina
Pátria amada adeus
2. Como você está sorrindo com o azul do céu
Como você me saúda com os campos e riachos
Pátria amada adeus
3. Deus sabe, meus sentimentos estão contigo
Porem agora o distante está me chamando
Pátria amada adeus
4. Me acompanha, meu querido rio
que estás triste que eu me deva ausentar
Pátria amada adeus
5. Da pedra com musgo e do vale com matas
eu mando lembranças para ti, pela ultima vez
minha pátria adeus.
A VIDA É A SOMA DAS AVENTURAS QUE
PARTICIPAMOS
lampertele@bol.com.br --- leandrolampertblogspot.com.br
Leandro Lampert
Historiador
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