O MOTORISTA ACIDENTADO
Ao
entardecer de um dia em 1964, já depois do expediente, o telefone toca em minha
sala no escritório velho da Cosuel. Era do hospital Santa Terezinha em
Encantado, informando que dera entrada um ferido em acidente de caminhão. Pelos
documentos, tomaram conhecimento do nome do motorista, do dono do veículo e por
uma nota fiscal de compra de soja, o nome do produtor associado da Cosuel que
residia em Ibirubá.
Ao ser atendido por populares, só
teve tempo de pronunciar a palavra Leandro e desmaiou. Por isso, pediram que
fosse até o hospital identificá-lo.
Lá chegando, não o reconheci, não
conhecia o dono do caminhão, mas sabia quem era o associado da Cosuel. Informei
logo que a Cosuel assumiria os encargos necessários.
O médico de plantão me comunicou que
o ferido, em estado de choque, iria a óbito em razão dos ferimentos recebidos.
Informou-me que faria uma injeção no paciente, que voltaria a si por algum
tempo e depois iria falecer.
Assisti a injeção e fiquei sentado perto
da cama. Ficamos no quarto somente eu o ferido. Minutos após, vi que ele abriu
os olhos, surpreso. Logo me apresentei: Sou o Leandro, você está ferido e no
hospital de Encantado sob cuidados médicos.
Estendeu-me a mão e ficou segurando a minha com força. Informou-me que o
dono da soja lha fizera uma observação: No caso de algum problema, que falasse com o Leandro. Por isso,
mencionou o meu nome aos que o acudiram. Falou sobre o acidente, distraiu-se,
saiu do leito da estrada e bateu no barranco. Logo falou que tinha esposa e um
filhinho pequeno, que morava no interior de Ibirubá e que a esposa deveria
estar preocupada com sua demora. Falei que os funcionários do hospital já a
haviam informado do acidente.
Continuou falando e segurando minha
mão. Eu sugeri: Vamos rezar um pouco? Vamos fechar os olhos e rezar em
silêncio. Orei por ele. Ao cabo de alguns minutos, senti que sua mão apertava
menos e logo se desprendeu da minha. Pressenti que ele havia falecido. Procurei
o médico, que logo constatou o óbito. Novamente os familiares foram avisados.
Só me restava tomar as providências
necessárias no preparo do velório, mas sem qualquer experiência, precisava de
ajuda. O médico informou que o hospital teria um quarto disponível para o
velório.
Nesse momento, chegou um funcionário
da Cosuel e se propôs auxiliar. Logo chegaram mais dois e mais cinco. Fizemos
uma pequena conferência e perguntei: Quem vai comprar o caixão? Eu vou. Eu vou
junto. Eu vou falar com o padre. Eu vou comprar uma coroa e flores. Eu vou no
Cartório conseguir a certidão de óbito e passo na polícia para obter a licença
de conduzir o cadáver para Ibirubá. Eu vou ver com funcionários do hospital
sobre a roupa e se necessário comprar alguma. Assim, cada um assumiu seu
compromisso e demos início ao preparo do velório. Comprem com
modéstia
que a Cosuel amanhã irá pagar.
Tudo encaminhado e fui para casa me
preparar para o velório. Algum tempo depois voltei ao hospital. O corpo já
estava vestido dentro do caixão, velas acesas e os documentos disponíveis na
mão. O padre não demorou e fez a encomenda do falecido. Ficamos nós fazendo a
vigília do velório.
Em silêncio permanecemos irmanados
na tristeza e na solidariedade. Meus pensamentos se dirigiram à banalidade da
vida e em reflexões aos mistérios da morte.
Meditei sobre o carinho e a
eficiência dos funcionários do hospital em relação ao acidentado e suas
consequências. Com satisfação, assisti a presença de funcionários da Cosuel,
que voluntariamente se dispuseram a prestar sua participação numa fatalidade
que atingira uma pessoa desconhecida.
À meia noite, sugeri aos
companheiros: Amanhã é dia de trabalho e quem quiser ir para casa, pode ir, não
tem problema. Eu ficarei aqui até a chegada dos familiares que deverá ocorrer
só depois das três horas da manhã. Todos permaneceram. Até hoje lembro os nomes
deles. Cresceram no meu conceito.
Ouvimos o ruído quando chegaram os
familiares e sugeri: Vamos deixá-los a sós com o falecido e depois retornamos
para apresentar nossas condolências.
Vieram sete pessoas num automóvel e
numa camionete. Um deles, irmão da viúva procurou-me para reembolsar as
despesas ocorridas. Fomos à recepção e eu apresentei a relação dos custos.
Efetuou o pagamento a mim e acertou com a tesouraria do hospital.
Ajudamos levar o caixão até a
camionete, ao lado da esposa em desespero. Empreenderam a viagem de volta à
Ibirubá.
Dois ou três meses depois, um padre
de batina assomou ao meu escritório na Cosuel. Estava visivelmente nervoso.
- Seu Leandro?
- Sim, por favor,
sente-se.
Ele entrou e fechou a porta atrás de
si e falou
- O que tenho para dizer está em parte
protegido por segredo de confessionário e vou falar o mínimo necessário. Por
favor, não faça perguntas.
- Sem problemas
padre. Pode falar.
- Lembra do
acidente com um caminhão de Ibirubá, perto de Anta Gorda, pois uma pessoa
esteve no local, mexeu no porta-luvas do caminhão, encontrou um revolver e
furtou-o. Algum tempo depois, o remorso tirou-lhe a paz e ao confessar-se com
um padre, informou que quereria devolver à família a arma furtada, sem que ela
soubesse quem foi. Sugeriu que o padre levasse a arma até a Cosuel em Encantado
e procurasse o Leandro que daria um jeito na devolução.
- Eu tenho o
número do telefone do irmão da viúva e garanto que vou tomar as medidas
necessárias para cumprir o desejo do arrependido. Pode ir em paz.
Na mesma hora, consegui falar com
ele e informou que na sexta feira da semana seguinte passaria na Cosuel.
Chegado, logo lhe falei o mínimo
necessário sobre a origem da arma e imitei o padre. Por favor, não faça
perguntas. Devolvi a arma que estava num pacote tosco sem tê-lo aberto. Nunca
mais encontrei essa pessoa, mas o episódio ficou gravado por mais de meio
século na minha memória.
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