sexta-feira, 6 de julho de 2018

TIO GASPAR E TIA CARULA

TIO GASPAR E TIA CARULA

            Meu trisavô paterno, Luiz Antônio Ramos, casado com Joaquina da Silva (vó Quinca) nascida em 1829, era um dos latifundiários que lotearam e venderam terras de sua propriedade em Venâncio Aires e Lajeado no início da colonização desses municípios.
            Uma de suas filhas, Marcolina da Silva Ramos (1850-1920) casou com Carlos Roberto Schroeder (1843-1909), então luterano que, ao casar, tornou-se católico e eram os pais de minha avó Joaquina Ramos Schroeder (1881-1934), que casou com meu avô Leopoldo Lampert (1871-1958), também luterano e que se tornou também católico. Tiveram sete filhos.
            Meus avós paternos herdaram 80 Ha de terras na Itaipava dos Ramos, área rural entre Cruzeiro do Sul e Mariante, chamada de Chácara, na barranca do rio Taquari e junto com a propriedade, gado e benfeitorias foi o tio Gaspar, casado com tia Carula, casal de afrodescendentes e na época em que eu ainda menino de 7 anos, o conheci. Segundo fui informado, nascera escravo de Luiz Antônio Ramos. Creio que ao receber a herança da sogra, meu avô Leopoldo atendeu à recomendação de zelar pela vida do tio Gaspar e o fez. Os demais seis irmãos de minha avó também herdaram propriedades rurais semelhantes, povoadas de gado e localizadas na Itaipava, Mariante e Taquari Mirim.
            A chácara situava-se perpendicular à barranca do rio e era cortada pela estrada Lajeado à Mariante, cerca de 50 m do rio. Havia a casa grande, de alvenaria, elevada do chão em face às enchentes, cerca de 1,20 m., no meio do terreno pequeno. Tinha duas portas dianteiras e duas escadas de pedras. O sótão era aproveitado por uma escada interna e também tinha dormitórios.  Afastada cerca de 5 m à direita, a cozinha, ligada à casa grande por uma passarela em declive, coberta por telhas, prevenção habitual contra incêndios na cozinha. Em ângulo reto, a casa do capataz. No pátio, uma magnífica figueira, cujos ramos atravessavam a estrada e se aproximavam das casas.
Tio Gaspar e tia Carula moravam sozinhos em uma casa de madeira dentro do potreiro que era ladeado por lavouras, do outro lado da estrada. Já era um homem velho, franzino, de carapinha branca e continuava como empregado da área rural. Sua esposa era uma mulher alta, forte e tinha um bócio enorme no pescoço. Estava sempre faceira. Junto a casa, um cercado com aves, horta, aipim e árvores frutíferas. Os filhos do casal eram marinheiros no rio Taquari e as filhas já eram casadas. Tinham vida própria.
            Tio Gaspar era tratado com respeito pelos demais peões solteiros, pois gozava de alta consideração com meu avô e por nós, seus netos. Era um homem de confiança.
            Não tinha função específica, mas zelava pela propriedade e tinha seus próprios horários. Não precisava de comando do capataz Neco. Sua principal função era providenciar que as éguas e suas crias atravessassem a estrada, das baias para o potreiro sem problemas de tráfego na rodovia.
            Lembro-me ainda, como se fosse ontem que, sendo um sábado, encarregou-se de matar, esfolar e carnear um cabrito que seria assado no churrasco do domingo. Apresentei-me como espectador único e fiquei curioso, olhando a operação.
            Tio Gaspar amarrou uma soga no pé do cabrito e passou a corda num galho de uma árvore, deixando-o dependurado. O bicho ficou berrando feito louco. Colocou uma bacia grande no chão, debaixo, puxou uma faca e segurando o animal, fechando sua boca, passou a lâmina debaixo do pescoço, degolando-o. O sangue caiu dentro da bacia. Não me assustei com o espetáculo.
            Morto o bicho, amarrou uma segunda corda no outro pé, de maneira a ficar com as pernas abertas, facilitando a tirada do couro.
            Ia me explicando - tem que cuidar para não fazer furo no couro. Ao abrir o ventre com um corte vertical, disse – tem que cuidar para não furar as tripas e por aí a fora. Colocou as vísceras na bacia já lavada pela tia Carula e foi me dando a primeira aula de anatomia em um mamífero. Apontou com a faca e disse – coração, em outra víscera disse – figo – e depois – os bofe. Esfolado o cabrito, deixou-o cortado ao meio no sentido vertical e dependurado na árvore, bem alto do chão até o outro dia quando estaria “oreado” e seria espetado para o churrasco dominical. Creio que era aniversário do meu avô, naquela altura da vida já viúvo.
            Perto das casas e na beira do rio, um enorme galpão com um corredor no meio que abrigava as éguas e o garanhão (meu avô tinha um haras e criava cavalos Puro Sangue Inglês, com registros no Stud Boock do Rio de Janeiro). Menino ainda, eu dedilhava as comunicações de coberturas e nascimentos dos equinos na máquina de escrever do pai, uma Royal e as enviava pelo correio.
            Quando fiz nove anos, meu avô Leopoldo adquiriu dois petiços para seus netos de Lajeado e Cruzeiro do Sul. Todos os sábados, depois do meio dia, eu ou meu irmão Luciano o acompanhávamos até a casa de seu genro, tio Osvaldo Lopes, em Cruzeiro do Sul, para que um dos meus três primos, Gabí, Marino ou Ciro se juntasse a nós na viagem até a chácara, 14 km de Lajeado, costeando o rio Taquari abaixo. Pode se imaginar o orgulho de viajar montado, com dois netos tagarelas e ávidos de conhecimento.
            Tio Gaspar já estava nos esperando, desencilhava os três animais e os conduzia a um potreiro pequeno. Dalí em diante, ficava com os guris enquanto meu avô conversava com o Neco. Sempre tinha alguma novidade para mostrar. Um ninho de Quero-Quero com dois filhotes no potreiro, uma toca de “largato” (ele espetava uma vara na toca e o fazia sair apavorado) para alegria nossa, que estávamos seguros em cima de uma taipa de pedra. Informava-nos o nome das éguas e dos potros. O pai era o cavalo argentino que meu avô mandara comprar, seu nome era El Raro, preto lustroso, sinal branco na cabeça e quatro patas brancas. Era uma beleza de se ver. Era uma fera e jamais foi montado. Nos levava até o fundo do potreiro onde havia um açude para ver garças, frangos d‘água  e socós. Sabia os nomes de todas as aves. Nos levava a pescar lambaris na beira do rio. Sabia onde havia amoras, pitangas, coquinhos e butiás. No rio Taquari, havia a cachoeira e a passagem de barcos era próxima à barranca e o lugar chamava-se “furado”. Havia trânsito contínuo de barcos no rio Taquari.
            Tio Gaspar passava o sábado e o domingo junto aos guris, protegendo-os dos perigos dos animais e ensinando os nomes das coisas que os meninos da cidade não conheciam. Aprendemos muitas coisas com ele, inclusive desconhecendo para sempre o preconceito racial.
            Quando um produtor rural trazia uma égua no cio para cobertura, era o tio Gaspar o encarregado de nos levar para um lugar afastado. Um dia, ouvimos o Neco informar o dono da égua no momento da entrega – foi “servida” duas vezes.
            Tia Carula, nas safras de goiaba e marmelo ia, inicialmente a pé e depois pelo ônibus para Cruzeiro do Sul, na casa de minha tia Zaira e em Lajeado na nossa, tomando a frente da produção de marmelada e goiabada para consumo da família durante o ano. Era tratada com carinho e, lembro ainda, dormia num quarto do galpão, usava o banheiro do peão e fazia suas refeições em separado, segundo os costumes da época.
            Sua foto com minha irmã Leonor no colo lá por 1930 (talvez a única da vida dela) retrata o carinho recíproco dela e nossa família.

                                         
                                         Foto Leonor Lampert Marques

            Anos depois, já mais crescidos, eu, meu irmão e os três primos já com outros interesses nos fins de semana, além do início de linha de ônibus entre Lajeado e Venâncio Aires, meu avô vendeu os petiços e seu cavalo de montaria. Encerrou também as atividades do haras, desfazendo-se nos animais.
            Passei alguns anos sem ir à chácara e quando fui, vi que a casa do tio Gaspar já tinha sido demolida e perguntei por ele. Informaram-me que havia falecido e tia Carula, com dificuldade de locomoção, fora morar com uma de suas filhas em Cruzeiro do Sul. Vi também com tristeza que a figueira tinha morrido.
            Viveram a vida humilde dos peões rurais, analfabetos e sem perspectivas de crescimento profissional, mas encontraram o amparo necessário às dificuldades nas suas velhices. Deixaram somente emoção e suaves lembranças dos tempos que já vão longe. Só passaram pela vida. Não viveram.
            Foi bom conhecê-los tio Gaspar e tia Carula.
            Descendente por via paterna e materna de latifundiários e loteadores, não recebi de herança sequer um palmo de terras. 
            Parte da chácara (60 Ha), consta que coube às duas filhas de meu primo irmão falecido Ciro Lopes. Uma gleba coube ao primo irmão do meu pai, ainda vivo, Antonio (Toninho) Schroeder na beira do Arroio Taquari Mirim, divisa de Venâncio Aires com General Câmara. Vinte Ha foram vendidos a um vizinho.


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