domingo, 8 de maio de 2016

Os Farrapos - 1

OS FARRAPOS 

O CENÁRIO

 O RIO GRANDE DO SUL
                                                          
            O RS foi colonizado muito depois dos demais estados brasileiros. Um século antes da chegada dos alemães (1725) os lagunenses começaram a desbravar o deserto verde que ia de Torres até a Colônia do Sacramento e se mantiveram somente nas áreas próximas ao litoral do Atlântico.  Anos mais tarde, casais açoritas foram trazidos pelo governo português para povoar as terras da margem direita do rio Guaíba e da Lagoa dos Patos, para se ocupar dos afazeres da lavoura a que estavam habituados na vida insular. Começou então a saga que nunca mais teria fim: os problemas na distribuição das famílias nos lotes prometidos. A região da campanha não os queria e depois de muitas protelações, foram assentados em Viamão e parte dali transferidos para Triunfo, Taquarí, Santo Amaro, Santo Antônio da Patrulha, Rio Pardo e outras regiões. Estes açorianos imprimiram e mantiveram  até hoje as características que distinguem estas cidades das demais do estado.
            Incompetência, má administração e corrupção nos órgãos públicos responsáveis, marcaram o início da destinação oficial das propriedades rurais, males  que  para sempre se mantiveram presentes e hoje mais do que nunca.
            Quase todas as terras devolutas do estado já estavam invadidas pelos militares que participaram das lutas platinas e seus familiares, executando por conta própria o povoamento das terras, incluindo as até então chamadas “campos neutrales”.  O governo acabou por sancionar como doações de sesmaria as terras que já estavam ocupadas, apenas legalizando fato consumado, já que o objetivo inicial havia sido alcançado: o povoamento da região meridional pelos lusitanos, efetivando a posse definitiva da região para a coroa portuguesa.
            Cada estancieiro era um guerreiro sempre pronto, juntamente com sua família, empregados e escravos, para ser recrutado gratuitamente pelo governo. Se apresentavam munidos de armas, os cavalos encilhados para transporte e se alimentavam de carne do gado abundante na região. Era um exército sem custos, aguerrido e conhecedor da região. Nas guerrilhas, era imbatível.
              A geografia do pampa com suas pastagens nativas abundantes, quase infinitas e gado alçado vagando, milhões de cabeças, sem dono pelos campos, depressa inclinou os povoadores para a pecuária extensiva, permanecendo apenas a agricultura de subsistência, não atingindo um dos objetivos iniciais do governo, o de fornecimento de gêneros alimentícios agrícolas para o exército regular e para os povoadores das cidades que já começavam a despontar,
              Graças aos lagunenses e a estes militares-estancieiros que ocuparam as terras de campo aberto (até então sem lei nem rei) juntamente com o exército  português existente no sul, nossas fronteiras meridionais foram alargadas e fixadas à ferro e fogo, durante um século, em lutas quase contínuas com os castelhanos.
            Estava pronto o cenário para o início da grande epopeia da imigração em massa de povos centro-europeus, de línguas e costumes completamente diferentes dos até então existentes no RS, sob a supervisão governamental. Sua influência e alcance jamais poderão ser medidos, nem as aventuras, padecimentos e sucessos dos imigrantes narrados em livros e mostrados em filmes editados com o vigor realístico que os demonstre, revelando ao gaúcho atual sua enorme dimensão e influência nos destinos do nosso estado. Hoje, cerca de quarenta por cento da nossa atual população é consequência dessa resolução de Dom Pedro I e seu filho D. Pedro II.                             
Depois da Independência, D. Pedro I, vendo que as terras de mato não eram ocupadas pelos estancieiros gaúchos, procurou e achou nova fonte de povoadores nos habitantes de língua germânica que viviam em condições difíceis em suas terras europeias e recém saídos de anos de conflitos armados. Não vieram como pedintes ou foragidos, mas atendendo insistente convite do governo brasileiro, que credenciou e contratou o major Schaeffer, para recrutar os agricultores a emigrar para o Brasil, encontrar o sonho de felicidade e terra própria.  Promessas mirabolantes não faltaram.
            A escolha da região para a colonização não encontrou impedimento por parte dos estancieiros, pois não provocava concorrência na posse da terra nem no ramo de atividade. Até pelo contrário, a existência de glebas de floresta sem dono, para colonização, permitiria que os intrusos e posseiros (ilícito já então existente no meio rural) encontrassem locais para assentamento, reduzindo a pressão sobre os ruralistas.
            A chegada de imigrantes de origem alemã não provocou discriminação racial contra os novos povoadores. Não havia sequer contato recíproco. Mais tarde, a discriminação passou a ser social e econômica. Esta, com o progresso material e cultural dos imigrantes, o tempo se encarregaria de minorar e extinguir.
            O trabalho braçal na lavoura ou artesanato, dali em diante, perderia o conceito de vergonhoso, até então existente na mentalidade do povo. Trabalho duro era para negro escravo.
            Durante 50 anos, à partir de 1824, com a interrupção de 10 anos no período da  Revolução Farroupilha, milhares de colonizadores atenderam ao chamamento e vieram participar com seu concurso  obstinado no desbravamento da nova terra. Depois da guerra dos farrapos, também iniciou-se a colonização patrocinada pela província do RS e igualmente, por agentes particulares, que compravam, loteavam, vendiam e financiavam as terras para os novos colonos, introduzindo a prática curiosa de separação dos assentamentos de acordo com a religião dos compradores. Havia óbvias razões econômicas. Bastava uma única igreja, escola, cemitério, etc. Era a reforma agrária privatizada.  Teve total sucesso e deixava o agricultor liberto da orientação burocrática do governo. Passado o período desbravador no vale do rio dos Sinos, toda a colonização das áreas excluídas dos povoamentos iniciais, foi feita somente pela iniciativa privada durante o século seguinte. O tempo mostrou que agricultores subsidiados reduziam-se à economia de sobrevivência quando cessava a ajuda do governo. Ainda hoje é assim.
            Cinquenta anos após a chegada dos alemães iniciou-se a colonização italiana, que também durou quase 50 anos. Estes bravos italianos que emigraram pelos mesmos motivos dos alemães, foram jogados na agreste região serrana sem a menor assistência ou estradas de acesso. Mesmo assim, sobreviveram e progrediram. Encontramos cópia de propaganda de convencimento dos italianos para emigrar para o Brasil. Dizia “Brasile, il paese della cuccagna” (Brasil, o país da fartura). A fartura só foi encontrada depois de muitos anos de   trabalho e sacrifícios.  Partiram do acidentado nordeste da Itália, região do Vêneto e encontraram aqui o mesmo perfil montanhoso de suas terras de origem. A principal diferença era que no RS ainda havia terra, mato e passarinho à vontade. Também trouxeram seus usos e costumes, durante muito tempo exclusivos seus e somente muito mais tarde, lentamente incorporados aos já existentes em nosso Estado. Na alimentação, nos trouxeram o galeto, a polenta, o salame, as massas e o consumo de radicci. Tentaram nos trazer o vinho italiano, mas não tiveram sucesso por terem suas videiras destruídas por pragas e falta de adaptação ao solo e ao clima. No caso do vinho, foram socorridos pelos descendentes dos alemães que cultivavam viníferas  ha muitos anos e já tinham suas cantinas industriais no vale do Caí. A Revista do Vinho, em seu número 4, ano I, de janeiro e fevereiro de 1988, publicação da UVIBRA, em artigo “História da uva e do vinho no Rio Grande do Sul”, em artigo de Rinaldo Dal Pizzol, nos conta à pg. 30, que um dos casais pioneiros imigrantes  italianos Tommaso e Maria Radaelli, conseguiram os primeiros bacelos de videira adaptada  ao solo e clima, junto ao  imigrante e agricultor  Jacob Ruschel, de Linha Feliz, nosso antepassado pela linha materna. Fato conhecido da nossa família por tradição oral.
            Os alemães, pelo menos tinham os rios, a estrada que anda, permitindo o transporte fluvial que os imigrantes já estavam habituados a utilizar nos rios  existentes em sua antiga pátria, para o transporte de pessoas e  produção agrícola. Os italianos nem isto.
             Os imigrantes depressa aprenderam a não pedir nem esperar nada do governo. Quanto mais longe das autoridades, melhor. Era a opinião generalizada. Se o governo não estorvasse, já estava muito bom. Não mudou muito até hoje. As pendências eram solucionadas com a lógica e a sabedoria populares da mesma forma como haviam sido resolvidas em suas localidades de origem na Europa.
            Formaram-se então núcleos isolados de colonização com pessoas de origem, mentalidade e língua diferentes, que raramente necessitavam comunicar-se entre si.    Descendentes de lusitanos, alemães e italianos mantiveram vivos por muito tempo seus costumes originais e preconceitos recíprocos, alguns existentes ainda hoje.
            A colonização com imigrantes alemães e italianos, foi a principal responsável pela acentuada diferença econômica entre a homogênea e operosa metade norte do RS, de pequenas propriedades rurais e industrial, e a estagnada metade sul, de  latifúndios e sem indústrias, que se acentua cada vez mais. Os descendentes destes imigrantes não se limitaram ao Rio Grande do Sul. Iniciaram a diáspora dos gaúchos e estenderam, mais tarde, também o mesmo progresso, colonizando de forma similar e sem o estorvo do governo, o oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná, que são gaúchos em sua mentalidade e condições sócio econômicas.  Apenas a geografia física os separa. Individualistas, tinham a coragem e o ânimo dos que sempre serão vencedores. Não havia lugar para fracassados.   Hoje, os encontramos no Mato Grosso, Goiás, Bahia, Rondônia, Roraima, Amazonas, Brasília e em toda a parte. Conhecemos quase todos os estados do Brasil e muitas vezes, ao nos identificarem como gaúchos pedem que mandemos mais dessa gente para lá, para serem fatores de desenvolvimento. Localizamos ainda, famílias Lampert, emigradas do RS para a Argentina, Paraguai, Estados Unidos, Áustria e Suécia.  
            A colonização pela pequena propriedade rural gerou riquezas que levaram as famílias numerosas ter a necessidade de migração para os demais estados da federação, levando seus descendentes mais ativos e o capital acumulado pelo rendimento agrícola a adquirir novas glebas de terras, por sua conta e risco, empobrecendo o RS de pessoas capacitadas e descapitalizando implacavelmente nosso estado, que perdeu para sempre homens e capitais que nunca mais retornarão. Este processo, que já dura meio século, ainda hoje e cada vez mais, continua atual. Seria de esperar que os agricultores excedentes adquirissem e colonizassem as áreas existentes e disponíveis na região sul do RS, mas preferiram ir para outros estados, onde se agruparam por interesses econômicos e não mais por etnias. A democracia racial se efetivou com naturalidade, ainda que lentamente, mas a discriminação religiosa continua viva até hoje. Não era tão fácil esquecer e eliminar preconceitos arraigados na cultura e nas famílias tanto tempo. Possivelmente o fato da região sul ter sido palco de extrema e  impiedosa violência duas gerações atrás, na época da revolução Federalista, inibisse qualquer colono pacato a transferir-se para aquela região.
            Outra consequência da geração de riquezas na zona rural de policultura e pequenas propriedades é a criação de indústrias artesanais, inicialmente caseiras, logo mais de estabelecimentos médios nas cidades e por fim transformados em parques industriais que trouxeram riqueza e progresso à partir dos núcleos iniciais de assentamento dos imigrantes, alemães nos vales dos rios dos Sinos, Taquari, Caí, Pardo e Jacui e italianos em  cima da serra, na região de Caxias do Sul. A indústria e seu complemento, o comércio, logo acompanharam a dispersão das colonizações. Surgiram de humildes iniciativas industriais os atuais grandes empresários que, graças à sua dinâmica e capacidade administrativa se distinguiram e continuam impulsionando a formação de novas riquezas.  
            Com a colonização alemã, D. Pedro I tinha como objetivo a ocupação das terras de floresta ainda incultas e próximas da capital e a região missioneira, esta em face da proximidade com os platinos, sempre inconformados pela permuta efetivada entre Portugal e Espanha daquela vasta região pela pequena e sempre contestada vila da Colônia do Sacramento, no extremo sul do Uruguai, de acordo com o tratado de Madri em 1750. A colonização das terras do Alto Uruguai se fez esperar por mais sessenta anos para que se efetivasse naturalmente em ondas sucessivas. O isolamento e as distâncias da capital Porto Alegre, talvez tivessem sido as principais razões da falta de interesse dos emigrantes em povoá-las. Eram indispensáveis os meios de comunicação e transporte da produção agrícola e pecuária para as cidades consumidoras ou destinadas à exportação. Muitos anos se fizeram necessários até que o governo da república providenciasse  em resolver os problemas de transporte, abrindo o caminho para a colonização espontânea.
            Era evidente, também, o desejo de “branqueamento” da população.
            Igualmente, tendo em vista que a alforria dos escravos não os fazia tornar parte nos mecanismos da produção e da economia, pois para o ex escravo, na época, o supremo objetivo era o ócio. Ele passava a trabalhar somente tantos dias quantos eram necessários para sua sobrevivência, sem capacidade de exercitar seu direito na participação da economia do regime capitalista, onde poderia e deveria ser inserido.   Era mais uma razão para trazer imigrantes que se constituíssem, com o tempo, em uma pequena burguesia rural e artesanal que se incorporasse ao processo econômico.                   
 Nem em sonhos o português D. Pedro I e sua esposa austríaca D. Leopoldina poderiam imaginar que o empreendimento de iniciar a emigração de agricultores centro-europeus para RS atingisse o sucesso que alcançou. D. Pedro foi feliz na escolha da época, do lugar e das pessoas.


A REVOLUÇÃO FARROUPILHA - 1835
                                                                                                                                              Os emigrantes também não conseguiram livrar-se das guerras no novo mundo e todas as suas tragédias decorrentes. O imigrante Michael Lampert, 26.12.1817, 6º filho do imigrante Johann Jakob Lampert (e avô no nosso futuro Marechal do Ar Miguel Lampert), no decorrer da revolução Farroupilha, foi engajado em 07.05.1838 e serviu no exército legalista, por três anos, como soldado sob o comando do Major Ferdinand August Maximilian Kersting, Comandante da Cia. de Caçadores de Voluntários Alemães e defensor vitorioso na luta contra os Farrapos que tentaram tomar Dois Irmãos, reduto legalista e quando Porto Alegre e São Leopoldo já se achavam em poder deles. Esse militar era irmão de Carlos Clemente Kersting, nascido em 28.12.1815 em Celle, Hanôver e falecido em 06.02.1899, casado com Maria Catharina Lampert, 4º filho do mesmo Johann Jakob (Os Emigrantes Alemães e a Revolução Farroupilha, pg. 196 de Germano Oscar Moehlecke).
            Na revolução não faltaram os desmandos dos Farroupilhas, quando em pequenos grupos, dizendo-se mandatários dos revolucionários, atacavam as casas dos colonos para "requisitar" à força, alimentos, cavalos e gado. Não foram poucos os que, revoltando-se no ato, foram barbaramente trucidados na frente de seus familiares. Livros históricos os relacionam.
            Por sua índole pacata, de adventícios no novo continente e por atavismo histórico, os emigrantes, com raras exceções, ficaram sempre do lado da legalidade. O Imperador D. Pedro II representava a Lei e a Ordem. Era o único capaz de sensibilizar os imigrantes para a guerra, depois de tantas más recordações da pátria de origem. Os imigrantes apenas participaram das lutas fratricidas no sul, quando seus lares e bens foram atacados e violados pelos revolucionários. Venceram todas as revoluções pelo lado do Império e da República. É interessante ver que no RS quem festeja as revoluções são os perdedores. De uma delas, festeja-se a data do início, 20.9.1835, mas não a data do fim melancólico, com um arremedo de  acordo honroso,  em  28.2.1845. Esse acordo foi assinado apenas por 26 oficiais Farrapos, que enumeravam suas aspirações para a conclusão da guerra. Era consequência implícita das exigências do Império: Os Farrapos deviam dar por encerrada a aventura da república; Os Farrapos aceitavam a monarquia constitucional vigente e reconheciam D. Pedro II como chefe supremo do Brasil, e o Imperador anistiava os insurgentes. A República Riograndense, nos seus nove anos vida, jamais foi reconhecida no conserto das nações. Nem o vizinho Uruguai a reconheceu como país. Em verdade, a República, durante seus nove anos existência, foi diminuindo de território, a cada ano, até restar apenas um pequeno reduto em torno de Alegrete, junto à fronteira com o Uruguai e a Argentina.
            Os Farrapos perderam a revolução no mesmo dia da eclosão da revolta, ao  tomar e não conseguir manter mais do que  poucos dias suas tropas nos portos de Rio Grande e São José do Norte, única saída para o mar e decisiva para manter as tropas do império afastadas do território gaúcho. O porto igualmente era necessário para a exportação do charque gaúcho, que teve asfixiada sua atividade pastoril-industrial, reduzindo o preço do gado para um pouco mais de nada. Perdido o porto, perdida a revolução. Outro erro imperdoável foi permitir a fuga, por barco fluvial, do Presidente da Província. O governo não foi deposto, apenas trocou de endereço. A capital passou a ser Rio Grande.
            Segundo o manifesto de Bento Gonçalves, a revolução tinha como objetivo afastar o Presidente do Estado, por má e odiosa administração e restaurar o império da Lei, mas mesmo depois de ter sido trocado o Presidente da Província, a revolução prosseguiu em seu destino.
            Em todo o Brasil, incluindo o Rio Grande do Sul, na época da monarquia, a população gozava de todas as liberdades e direitos possíveis. Havia uma Constituição em vigor, respeitada por todos e a população, pelo voto partidário e livre, escolhia os seus representantes no legislativo. Os gaúchos eram dirigidos pela aristocracia latifundiária e escravocrata.
            Quando foi deflagrada a revolução Farroupilha, o Rio Grande do Sul desfrutava de grande prosperidade. Sua principal atividade pecuária, a criação de gado era altamente valorizada pela produção de charque, destinado à alimentação dos milhares de escravos mantidos nos estados leste-setentrionais do Brasil. Assim, nunca poderia ser objetivo dos Farrapos a abolição da escravatura, que somente levaria sua única produção pecuária à prejuízos, pois perderia os compradores de charque. Escravo liberto jamais iria comprar charque para sua alimentação.   A escravatura no RS atingiu o máximo de sua abjeta existência, justamente nos estabelecimentos degradantes de abate de gado bovino e sua transformação em charque. Já o escravo do estancieiro, cavalgava e trabalhava em lides campeiras ao lado de seu dono, comia a mesma comida, corria os mesmos riscos no trabalho e cumpria, no mínimo, o mesmo horário. Nas revoluções, voluntário ou não, era convocado ao serviço militar sob as ordens de seu amo e lutava com igual valentia. No calor da refrega, era matar ou morrer.
             Os Farrapos não obtiveram nada do que serviu como pretexto para a revolução. Ficou no mesmo o valor do imposto na exportação do charque, perderam a independência e a república, e não obtiveram a alforria dos escravos que lutaram ao seu lado.  Bastava um ato de vontade, mas não alforriaram nem seus próprios escravos. Bento Gonçalves, falecido pouco depois do término da revolução, deixou em seu espólio, como herança, 33 escravos, entre eles, companheiros de luta. Conseguiram apenas que o imposto sobre o charque importado do Uruguai fosse elevado para 25%, o que melhorava as condições de competição, e o direito de indicar o presidente da província, já existente antes da revolução, que acabou recaindo sobre Caxias, que havia sido o mentor dos últimos movimentos militares que tiraram por completo as condições dos Farrapos continuarem resistindo por mais tempo e construtor das condições amenizadas que deram fim ao movimento guerreiro. Caxias cedeu aos Farrapos muito mais do que estava autorizado a fazer, assim como David Canabarro concedeu ao Império muito mais do que o limite imposto por seus companheiros Farrapos. Sem a menor dúvida, o Império necessitava ter novamente em suas fileiras os militares revoltosos que com destemor, o haviam enfrentado, de igual para igual, durante quase dez anos. Eram insubstituíveis. Mas a paz foi feita graças à esses dois patriotas e   transigentes brasileiros. Ninguém reclamou.
            Uma das causas Implícitas que originaram a revolução foi a notícia que seria cobrado pelo Império um imposto sobre as terras dos pecuaristas. O imposto territorial, segundo o padre Amstad, seria no valor anual de dez mil reis por légua quadrada (4.356 ha), valor irrisório, além da informação que maiores medidas seriam tomadas para coibir o contrabando de gado e mercadorias com o Uruguai. Não havia causas econômicas locais. A proximidade com o Uruguai, a existência de fronteiras secas e tendo brasileiros como grandes proprietários de terras no norte de Uruguai, necessitava de liberdade de passagem de gado e mercadorias contrabandeadas entre os dois países. A quebra dessa liberdade (não chamamos esta atividade de crime) contrariava um costume arraigado. A prática não aviltava o bom nome dos envolvidos e era aceita com naturalidade por toda a sociedade da época.
            A abolição da escravatura em 1889 foi a causa econômica que deflagrou a revolução de 1893, quando então sim, pela falta de compradores do nosso charque, as terras de pecuária e o gado bovino perderam substancial valor, além de novo arrocho à prática do contrabando.
            Já tarde demais, Bento Gonçalves lamentou a falta de um porto e a inexistência de navios de guerra suficientes para contrabalançar a armada dos imperiais. Bento Gonçalves, após o desastre militar na ilha do Fanfa, onde todo o seu exército, foi aprisionado, inclusive ele próprio.  Quando se encontrava preso em fortaleza do Rio de Janeiro, recebeu a visita de Giuseppe Garibaldi e com ele contratou o estabelecimento de corso para atacar os navios mercantes do império, mediante o recebimento de um terço da carga pilhada do navio atacado, como forma de pagamento (Garibaldi e a guerra dos Farrapos, de Lindolfo Collor), não ajudou o suficiente. Foi o único corsário em atividade nos mares e nas águas interiores do Brasil. A busca de um porto marítimo levou os Farrapos à aventura que terminou no fracasso de tomar e manter Laguna (SC) e criar a República Juliana. Durante algum tempo, Garibaldi utilizou o porto para abastecimento do Seival para as atividades de corso. A resposta do Império não demorou. Ou afundava o Seival ou tomava o seu porto de abastecimento. Fez os dois. Uma frota de navios de guerra do Império irrompeu pelo canal de acesso ao porto e derrotou mais uma vez os Farrapos, afundando o Seival que lutou corajosamente até o fim. Foi a pique na única batalha que participou. Gloriosamente, afundou crivado de balas e com seus canhões vomitando fogo sobre os imperiais até o último cartucho. Seu parceiro de travessia terrestre, o Farroupilha, já havia naufragado em temporal na viagem de Tramandaí à Laguna. Este navio de guerra afundou sem jamais ter disparado um único tiro de canhão. Estes heroicos riograndenses não sabiam lutar em batalhas convencionais e estáticas, nem manobrar navios de guerra ou atirar com eficiência com os canhões postados na periferia do porto e no canal de acesso. Seu lugar de combate era a coxilha do pampa. Retornaram ao Rio Grande do Sul, desfalcados de seus soldados e desiludidos com o esforço despendido em vão. Acabaram odiados pelos Lagunenses que tinham ido auxiliar. Em poucos meses, acabaram sendo execrados pelos seus habitantes que inicialmente os receberam como salvadores. A tomada do porto de Laguna asfixiou o comércio e empobreceu a população local. A própria ideia do uso do porto de Laguna para as exportações gaúchas não tinha qualquer viabilidade prática de êxito. Único saldo positivo da aventura, foi o surgimento de Anita Garibaldi, nossa heroína de dois mundos.que teve um filho nascido em Mostardas no RS.  Numa época que a mulher sempre era sempre submissa, ela, com muita coragem, rompeu com seu casamento infeliz, enfrentou o preconceito local e foi viver seu amor e sua aventura  com Garibaldi.
            Mais tarde, os Farrapos tentaram tomar o porto de São José do Norte. Cavalgaram quase trezentos quilômetros pela orla do Atlântico, sem ponto de apoio, pela via que até hoje é chamada de Estrada do Inferno, onde só tem mar, areia, solidão e tristeza. Garibaldi levou junto consigo Anita, grávida de sete meses, que ficou abrigada na choupana de um morador dos arredores de Mostardas até o nascimento de seu primeiro filho. Um desafio aos mais valentes.   Passaram, num inverno gelado e chuvoso, todas as agruras possíveis, que culminaram em mais uma derrota. A armada imperial de Rio Grande prestou socorro aos defensores de São José de Norte e foi fator decisivo na batalha.
            Sempre a história é contada pelos vencedores, mas no Rio Grande do Sul, a história é contada com orgulho pelos vencidos, que cultuam seus heróis, alguns controversos, omitindo os nomes dos vencedores.
Ficou para sempre a memória da epopeia da revolução, a bravura e o cavalheirismo de todos os seus participantes. Foi uma revolução sem degola de prisioneiros.
            Os colonos tinham uma visão diametralmente oposta à dos estancieiros, protagonistas da revolução, inicialmente de reivindicações, seguida de desafio à autoridade por mudanças na administração pública, e posteriormente, separatista e republicana. Os colonos do RS não foram contagiados pela histórica vocação oposicionista e rebelde do nosso estado, que se perpetua até hoje. A cidade de Porto Alegre recebeu com apatia inicial a vitória local dos Farrapos. Apenas aceitou a dominação Farroupilha. Tomada à força, em menos de nove meses livrou-se do invasor, que apesar de sitiá-la por largo período de quatro anos, nunca mais voltou a ocupa-la. Nestes quatro anos, a população teve as suas necessidades e sua fome saciadas unicamente com o fornecimento de gêneros alimentícios trazido pelos colonos alemães de São Leopoldo, que, por via fluvial tinham acesso à cidade. Os Farrapos conquistaram a cidade mas não tomaram nenhuma medida de acionar o comércio e evitar a estagnação das atividades econômicas. Não emitiram moeda e as que giravam na praça foram logo entesouradas, deixando a população sem possibilidades de sobrevivência econômica. O episódio da retomada de Porto Alegre, iniciada por um Major do Império, imigrante alemão, Henrique Guilherme Mosye com apenas mais três militares legalistas que se evadiram no mesmo dia, mostra que estes tinham a adesão da população. Por este motivo é que Porto Alegre recebeu do Império o título de mui leal e valorosa, ostentado até hoje com orgulho. A cidade homenageia com uma estátua equestre o general  Bento Gonçalves, mentor da revolução, e que foi, durante quatro anos, o algoz que comandou o sítio infrutífero de Porto Alegre, que suportou estoicamente o cerco férreo, até que os sitiantes desistiram e se retiraram derrotados. Bento Gonçalves da Silva, pelos seus valores e desempenho pessoal, projetou-se historicamente à condição de maior herói do RS.
            Não encontramos qualquer referência do que era feito com os prisioneiros da guerra. Não foram assassinados e não havia instalações para mantê-los fora de novo engajamento com os inimigos. Em nosso entender, eram soltos ou apenas trocavam de lado. Se fosse necessário, em uma batalha próxima trocariam outra vez de partido. Ser monarquista ou republicano não fazia qualquer diferença para o convocado analfabeto.  Se um General trocou de lado quatro vezes, por quê um soldado não poderia fazer o mesmo?
            A história da revolução farroupilha não necessita de omissões, mitos, inverdades e distorções para que continue sendo a maior e duradoura epopeia do Brasil, que marcou a identidade dos gaúchos para sempre e delineou o nosso imaginário.  Basta a verdade nua e crua para que permaneçamos apaixonados e orgulhosos pelos episódios épicos do decênio 35 a 45.


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