OS FARRAPOS
O CENÁRIO
O RIO GRANDE DO SUL
O
RS foi colonizado muito depois dos demais estados brasileiros. Um século antes
da chegada dos alemães (1725) os lagunenses começaram a desbravar o deserto
verde que ia de Torres até a Colônia do Sacramento e se mantiveram somente nas
áreas próximas ao litoral do Atlântico.
Anos mais tarde, casais açoritas foram trazidos pelo governo português
para povoar as terras da margem direita do rio Guaíba e da Lagoa dos Patos,
para se ocupar dos afazeres da lavoura a que estavam habituados na vida
insular. Começou então a saga que nunca mais teria fim: os problemas na
distribuição das famílias nos lotes prometidos. A região da campanha não os
queria e depois de muitas protelações, foram assentados em Viamão e parte dali
transferidos para Triunfo, Taquarí, Santo Amaro, Santo Antônio da Patrulha, Rio
Pardo e outras regiões. Estes açorianos imprimiram e mantiveram até hoje as características que distinguem
estas cidades das demais do estado.
Incompetência, má administração e
corrupção nos órgãos públicos responsáveis, marcaram o início da destinação
oficial das propriedades rurais, males
que para sempre se mantiveram
presentes e hoje mais do que nunca.
Quase todas as terras devolutas do
estado já estavam invadidas pelos militares que participaram das lutas platinas
e seus familiares, executando por conta própria o povoamento das terras,
incluindo as até então chamadas “campos neutrales”. O governo acabou por sancionar como doações
de sesmaria as terras que já estavam ocupadas, apenas legalizando fato consumado,
já que o objetivo inicial havia sido alcançado: o povoamento da região
meridional pelos lusitanos, efetivando a posse definitiva da região para a
coroa portuguesa.
Cada estancieiro era um guerreiro
sempre pronto, juntamente com sua família, empregados e escravos, para ser
recrutado gratuitamente pelo governo. Se apresentavam munidos de armas, os
cavalos encilhados para transporte e se alimentavam de carne do gado abundante
na região. Era um exército sem custos, aguerrido e conhecedor da região. Nas guerrilhas,
era imbatível.
A geografia do pampa com suas pastagens nativas abundantes, quase
infinitas e gado alçado vagando, milhões de cabeças, sem dono pelos campos,
depressa inclinou os povoadores para a pecuária extensiva, permanecendo apenas
a agricultura de subsistência, não atingindo um dos objetivos iniciais do
governo, o de fornecimento de gêneros alimentícios agrícolas para o exército
regular e para os povoadores das cidades que já começavam a despontar,
Graças aos lagunenses e a estes militares-estancieiros que ocuparam as
terras de campo aberto (até então sem lei nem rei) juntamente com o
exército português existente no sul,
nossas fronteiras meridionais foram alargadas e fixadas à ferro e fogo, durante
um século, em lutas quase contínuas com os castelhanos.
Estava pronto o cenário para o
início da grande epopeia da imigração em massa de povos centro-europeus, de línguas
e costumes completamente diferentes dos até então existentes no RS, sob a
supervisão governamental. Sua influência e alcance jamais poderão ser medidos,
nem as aventuras, padecimentos e sucessos dos imigrantes narrados em livros e
mostrados em filmes editados com o vigor realístico que os demonstre, revelando
ao gaúcho atual sua enorme dimensão e influência nos destinos do nosso estado.
Hoje, cerca de quarenta por cento da nossa atual população é consequência dessa
resolução de Dom Pedro I e seu filho D. Pedro II.
Depois da Independência, D. Pedro I,
vendo que as terras de mato não eram ocupadas pelos estancieiros gaúchos,
procurou e achou nova fonte de povoadores nos habitantes de língua germânica
que viviam em condições difíceis em suas terras europeias e recém saídos de
anos de conflitos armados. Não vieram como pedintes ou foragidos, mas atendendo
insistente convite do governo brasileiro, que credenciou e contratou o major
Schaeffer, para recrutar os agricultores a emigrar para o Brasil, encontrar o
sonho de felicidade e terra própria.
Promessas mirabolantes não faltaram.
A escolha da região para a colonização
não encontrou impedimento por parte dos estancieiros, pois não provocava
concorrência na posse da terra nem no ramo de atividade. Até pelo contrário, a
existência de glebas de floresta sem dono, para colonização, permitiria que os
intrusos e posseiros (ilícito já então existente no meio rural) encontrassem
locais para assentamento, reduzindo a pressão sobre os ruralistas.
A chegada de imigrantes de origem
alemã não provocou discriminação racial contra os novos povoadores. Não havia
sequer contato recíproco. Mais tarde, a discriminação passou a ser social e
econômica. Esta, com o progresso material e cultural dos imigrantes, o tempo se
encarregaria de minorar e extinguir.
O trabalho braçal na lavoura ou
artesanato, dali em diante, perderia o conceito de vergonhoso, até então
existente na mentalidade do povo. Trabalho duro era para negro escravo.
Durante 50 anos, à partir de 1824,
com a interrupção de 10 anos no período da
Revolução Farroupilha, milhares de colonizadores atenderam ao chamamento
e vieram participar com seu concurso
obstinado no desbravamento da nova terra. Depois da guerra dos farrapos,
também iniciou-se a colonização patrocinada pela província do RS e igualmente,
por agentes particulares, que compravam, loteavam, vendiam e financiavam as
terras para os novos colonos, introduzindo a prática curiosa de separação dos
assentamentos de acordo com a religião dos compradores. Havia óbvias razões
econômicas. Bastava uma única igreja, escola, cemitério, etc. Era a reforma
agrária privatizada. Teve total sucesso
e deixava o agricultor liberto da orientação burocrática do governo. Passado o
período desbravador no vale do rio dos Sinos, toda a colonização das áreas
excluídas dos povoamentos iniciais, foi feita somente pela iniciativa privada
durante o século seguinte. O tempo mostrou que agricultores subsidiados
reduziam-se à economia de sobrevivência quando cessava a ajuda do governo.
Ainda hoje é assim.
Cinquenta anos após a chegada dos
alemães iniciou-se a colonização italiana, que também durou quase 50 anos.
Estes bravos italianos que emigraram pelos mesmos motivos dos alemães, foram
jogados na agreste região serrana sem a menor assistência ou estradas de
acesso. Mesmo assim, sobreviveram e progrediram. Encontramos cópia de
propaganda de convencimento dos italianos para emigrar para o Brasil. Dizia
“Brasile, il paese della cuccagna” (Brasil, o país da fartura). A fartura só
foi encontrada depois de muitos anos de
trabalho e sacrifícios. Partiram
do acidentado nordeste da Itália, região do Vêneto e encontraram aqui o mesmo
perfil montanhoso de suas terras de origem. A principal diferença era que no RS
ainda havia terra, mato e passarinho à vontade. Também trouxeram seus usos e
costumes, durante muito tempo exclusivos seus e somente muito mais tarde,
lentamente incorporados aos já existentes em nosso Estado. Na alimentação, nos
trouxeram o galeto, a polenta, o salame, as massas e o consumo de radicci.
Tentaram nos trazer o vinho italiano, mas não tiveram sucesso por terem suas
videiras destruídas por pragas e falta de adaptação ao solo e ao clima. No caso
do vinho, foram socorridos pelos descendentes dos alemães que cultivavam viníferas ha muitos anos e já tinham suas cantinas
industriais no vale do Caí. A Revista do Vinho, em seu número 4, ano I, de
janeiro e fevereiro de 1988, publicação da UVIBRA, em artigo “História da uva e
do vinho no Rio Grande do Sul”, em artigo de Rinaldo Dal Pizzol, nos conta à
pg. 30, que um dos casais pioneiros imigrantes
italianos Tommaso e Maria Radaelli, conseguiram os primeiros bacelos de
videira adaptada ao solo e clima, junto
ao imigrante e agricultor Jacob Ruschel, de Linha Feliz, nosso antepassado
pela linha materna. Fato conhecido da nossa família por tradição oral.
Os alemães, pelo menos tinham os rios,
a estrada que anda, permitindo o transporte fluvial que os imigrantes já
estavam habituados a utilizar nos rios
existentes em sua antiga pátria, para o transporte de pessoas e produção agrícola. Os italianos nem isto.
Os imigrantes depressa aprenderam a não pedir
nem esperar nada do governo. Quanto mais longe das autoridades, melhor. Era a
opinião generalizada. Se o governo não estorvasse, já estava muito bom. Não
mudou muito até hoje. As pendências eram solucionadas com a lógica e a
sabedoria populares da mesma forma como haviam sido resolvidas em suas
localidades de origem na Europa.
Formaram-se então núcleos isolados
de colonização com pessoas de origem, mentalidade e língua diferentes, que
raramente necessitavam comunicar-se entre si. Descendentes
de lusitanos, alemães e italianos mantiveram vivos por muito tempo seus
costumes originais e preconceitos recíprocos, alguns existentes ainda hoje.
A colonização com imigrantes alemães
e italianos, foi a principal responsável pela acentuada diferença econômica
entre a homogênea e operosa metade norte do RS, de pequenas propriedades rurais
e industrial, e a estagnada metade sul, de
latifúndios e sem indústrias, que se acentua cada vez mais. Os
descendentes destes imigrantes não se limitaram ao Rio Grande do Sul. Iniciaram
a diáspora dos gaúchos e estenderam, mais tarde, também o mesmo progresso,
colonizando de forma similar e sem o estorvo do governo, o oeste de Santa
Catarina e sudoeste do Paraná, que são gaúchos em sua mentalidade e condições
sócio econômicas. Apenas a geografia
física os separa. Individualistas, tinham a coragem e o ânimo dos que sempre
serão vencedores. Não havia lugar para fracassados. Hoje, os encontramos no Mato Grosso, Goiás,
Bahia, Rondônia, Roraima, Amazonas, Brasília e em toda a parte. Conhecemos
quase todos os estados do Brasil e muitas vezes, ao nos identificarem como
gaúchos pedem que mandemos mais dessa gente para lá, para serem fatores de
desenvolvimento. Localizamos ainda, famílias Lampert, emigradas do RS para a Argentina,
Paraguai, Estados Unidos, Áustria e Suécia.
A colonização pela pequena
propriedade rural gerou riquezas que levaram as famílias numerosas ter a
necessidade de migração para os demais estados da federação, levando seus
descendentes mais ativos e o capital acumulado pelo rendimento agrícola a
adquirir novas glebas de terras, por sua conta e risco, empobrecendo o RS de
pessoas capacitadas e descapitalizando implacavelmente nosso estado, que perdeu
para sempre homens e capitais que nunca mais retornarão. Este processo, que já
dura meio século, ainda hoje e cada vez mais, continua atual. Seria de esperar
que os agricultores excedentes adquirissem e colonizassem as áreas existentes e
disponíveis na região sul do RS, mas preferiram ir para outros estados, onde se
agruparam por interesses econômicos e não mais por etnias. A democracia racial
se efetivou com naturalidade, ainda que lentamente, mas a discriminação
religiosa continua viva até hoje. Não era tão fácil esquecer e eliminar
preconceitos arraigados na cultura e nas famílias tanto tempo. Possivelmente o
fato da região sul ter sido palco de extrema e
impiedosa violência duas gerações atrás, na época da revolução
Federalista, inibisse qualquer colono pacato a transferir-se para aquela
região.
Outra consequência da geração de
riquezas na zona rural de policultura e pequenas propriedades é a criação de
indústrias artesanais, inicialmente caseiras, logo mais de estabelecimentos
médios nas cidades e por fim transformados em parques industriais que trouxeram
riqueza e progresso à partir dos núcleos iniciais de assentamento dos
imigrantes, alemães nos vales dos rios dos Sinos, Taquari, Caí, Pardo e Jacui e
italianos em cima da serra, na região de
Caxias do Sul. A indústria e seu complemento, o comércio, logo acompanharam a
dispersão das colonizações. Surgiram de humildes iniciativas industriais os
atuais grandes empresários que, graças à sua dinâmica e capacidade
administrativa se distinguiram e continuam impulsionando a formação de novas
riquezas.
Com a colonização alemã, D. Pedro I
tinha como objetivo a ocupação das terras de floresta ainda incultas e próximas
da capital e a região missioneira, esta em face da proximidade com os platinos,
sempre inconformados pela permuta efetivada entre Portugal e Espanha daquela
vasta região pela pequena e sempre contestada vila da Colônia do Sacramento, no
extremo sul do Uruguai, de acordo com o tratado de Madri em 1750. A colonização das
terras do Alto Uruguai se fez esperar por mais sessenta anos para que se
efetivasse naturalmente em ondas sucessivas. O isolamento e as distâncias da
capital Porto Alegre, talvez tivessem sido as principais razões da falta de
interesse dos emigrantes em povoá-las. Eram indispensáveis os meios de
comunicação e transporte da produção agrícola e pecuária para as cidades
consumidoras ou destinadas à exportação. Muitos anos se fizeram necessários até
que o governo da república providenciasse
em resolver os problemas de transporte, abrindo o caminho para a
colonização espontânea.
Era evidente, também, o desejo de
“branqueamento” da população.
Igualmente, tendo em vista que a
alforria dos escravos não os fazia tornar parte nos mecanismos da produção e da
economia, pois para o ex escravo, na época, o supremo objetivo era o ócio. Ele
passava a trabalhar somente tantos dias quantos eram necessários para sua
sobrevivência, sem capacidade de exercitar seu direito na participação da
economia do regime capitalista, onde poderia e deveria ser inserido. Era mais uma razão para trazer imigrantes
que se constituíssem, com o tempo, em uma pequena burguesia rural e artesanal
que se incorporasse ao processo econômico.
Nem em sonhos o português D. Pedro I e sua
esposa austríaca D. Leopoldina poderiam imaginar que o empreendimento de
iniciar a emigração de agricultores centro-europeus para RS atingisse o sucesso
que alcançou. D. Pedro foi feliz na escolha da época, do lugar e das pessoas.
A
REVOLUÇÃO FARROUPILHA - 1835
Os
emigrantes também não conseguiram livrar-se das guerras no novo mundo e todas
as suas tragédias decorrentes. O imigrante Michael Lampert, 26.12.1817, 6º
filho do imigrante Johann Jakob Lampert (e avô no nosso futuro Marechal do Ar
Miguel Lampert), no decorrer da revolução Farroupilha, foi engajado em
07.05.1838 e serviu no exército legalista, por três anos, como soldado sob o
comando do Major Ferdinand August Maximilian Kersting, Comandante da Cia. de
Caçadores de Voluntários Alemães e defensor vitorioso na luta contra os
Farrapos que tentaram tomar Dois Irmãos, reduto legalista e quando Porto Alegre
e São Leopoldo já se achavam em poder deles. Esse militar era irmão de Carlos
Clemente Kersting, nascido em 28.12.1815 em Celle, Hanôver e falecido em
06.02.1899, casado com Maria Catharina Lampert, 4º filho do mesmo Johann Jakob
(Os Emigrantes Alemães e a Revolução Farroupilha, pg. 196 de Germano Oscar
Moehlecke).
Na
revolução não faltaram os desmandos dos Farroupilhas, quando em pequenos
grupos, dizendo-se mandatários dos revolucionários, atacavam as casas dos
colonos para "requisitar" à força, alimentos, cavalos e gado. Não
foram poucos os que, revoltando-se no ato, foram barbaramente trucidados na
frente de seus familiares. Livros históricos os relacionam.
Por
sua índole pacata, de adventícios no novo continente e por atavismo histórico,
os emigrantes, com raras exceções, ficaram sempre do lado da legalidade. O
Imperador D. Pedro II representava a Lei e a Ordem. Era o único capaz de
sensibilizar os imigrantes para a guerra, depois de tantas más recordações da
pátria de origem. Os imigrantes apenas participaram das lutas fratricidas no
sul, quando seus lares e bens foram atacados e violados pelos revolucionários.
Venceram todas as revoluções pelo lado do Império e da República. É
interessante ver que no RS quem festeja as revoluções são os perdedores. De uma
delas, festeja-se a data do início, 20.9.1835, mas não a data do fim
melancólico, com um arremedo de acordo
honroso, em 28.2.1845. Esse acordo foi assinado apenas por
26 oficiais Farrapos, que enumeravam suas aspirações para a conclusão da
guerra. Era consequência implícita das exigências do Império: Os Farrapos
deviam dar por encerrada a aventura da república; Os Farrapos aceitavam a
monarquia constitucional vigente e reconheciam D. Pedro II como chefe supremo
do Brasil, e o Imperador anistiava os insurgentes. A República Riograndense,
nos seus nove anos vida, jamais foi reconhecida no conserto das nações. Nem o
vizinho Uruguai a reconheceu como país. Em verdade, a República, durante seus
nove anos existência, foi diminuindo de território, a cada ano, até restar
apenas um pequeno reduto em torno de Alegrete, junto à fronteira com o Uruguai
e a Argentina.
Os
Farrapos perderam a revolução no mesmo dia da eclosão da revolta, ao tomar e não conseguir manter mais do que poucos dias suas tropas nos portos de Rio
Grande e São José do Norte, única saída para o mar e decisiva para manter as
tropas do império afastadas do território gaúcho. O porto igualmente era
necessário para a exportação do charque gaúcho, que teve asfixiada sua
atividade pastoril-industrial, reduzindo o preço do gado para um pouco mais de
nada. Perdido o porto, perdida a revolução. Outro erro imperdoável foi permitir
a fuga, por barco fluvial, do Presidente da Província. O governo não foi
deposto, apenas trocou de endereço. A capital passou a ser Rio Grande.
Segundo
o manifesto de Bento Gonçalves, a revolução tinha como objetivo afastar o
Presidente do Estado, por má e odiosa administração e restaurar o império da
Lei, mas mesmo depois de ter sido trocado o Presidente da Província, a
revolução prosseguiu em seu destino.
Em
todo o Brasil, incluindo o Rio Grande do Sul, na época da monarquia, a
população gozava de todas as liberdades e direitos possíveis. Havia uma
Constituição em vigor, respeitada por todos e a população, pelo voto partidário
e livre, escolhia os seus representantes no legislativo. Os gaúchos eram
dirigidos pela aristocracia latifundiária e escravocrata.
Quando
foi deflagrada a revolução Farroupilha, o Rio Grande do Sul desfrutava de
grande prosperidade. Sua principal atividade pecuária, a criação de gado era
altamente valorizada pela produção de charque, destinado à alimentação dos
milhares de escravos mantidos nos estados leste-setentrionais do Brasil. Assim,
nunca poderia ser objetivo dos Farrapos a abolição da escravatura, que somente
levaria sua única produção pecuária à prejuízos, pois perderia os compradores
de charque. Escravo liberto jamais iria comprar charque para sua
alimentação. A escravatura no RS
atingiu o máximo de sua abjeta existência, justamente nos estabelecimentos
degradantes de abate de gado bovino e sua transformação em charque. Já o
escravo do estancieiro, cavalgava e trabalhava em lides campeiras ao lado de
seu dono, comia a mesma comida, corria os mesmos riscos no trabalho e cumpria,
no mínimo, o mesmo horário. Nas revoluções, voluntário ou não, era convocado ao
serviço militar sob as ordens de seu amo e lutava com igual valentia. No calor
da refrega, era matar ou morrer.
Os Farrapos não obtiveram nada do que serviu
como pretexto para a revolução. Ficou no mesmo o valor do imposto na exportação
do charque, perderam a independência e a república, e não obtiveram a alforria
dos escravos que lutaram ao seu lado.
Bastava um ato de vontade, mas não alforriaram nem seus próprios
escravos. Bento Gonçalves, falecido pouco depois do término da revolução,
deixou em seu espólio, como herança, 33 escravos, entre eles, companheiros de
luta. Conseguiram apenas que o imposto sobre o charque importado do Uruguai
fosse elevado para 25%, o que melhorava as condições de competição, e o direito
de indicar o presidente da província, já existente antes da revolução, que
acabou recaindo sobre Caxias, que havia sido o mentor dos últimos movimentos
militares que tiraram por completo as condições dos Farrapos continuarem
resistindo por mais tempo e construtor das condições amenizadas que deram fim
ao movimento guerreiro. Caxias cedeu aos Farrapos muito mais do que estava
autorizado a fazer, assim como David Canabarro concedeu ao Império muito mais
do que o limite imposto por seus companheiros Farrapos. Sem a menor dúvida, o
Império necessitava ter novamente em suas fileiras os militares revoltosos que com
destemor, o haviam enfrentado, de igual para igual, durante quase dez anos.
Eram insubstituíveis. Mas a paz foi feita graças à esses dois patriotas e transigentes brasileiros. Ninguém reclamou.
Uma
das causas Implícitas que originaram a revolução foi a notícia que seria
cobrado pelo Império um imposto sobre as terras dos pecuaristas. O imposto
territorial, segundo o padre Amstad, seria no valor anual de dez mil reis por
légua quadrada (4.356 ha ),
valor irrisório, além da informação que maiores medidas seriam tomadas para
coibir o contrabando de gado e mercadorias com o Uruguai. Não havia causas
econômicas locais. A proximidade com o Uruguai, a existência de fronteiras
secas e tendo brasileiros como grandes proprietários de terras no norte de Uruguai,
necessitava de liberdade de passagem de gado e mercadorias contrabandeadas
entre os dois países. A quebra dessa liberdade (não chamamos esta atividade de
crime) contrariava um costume arraigado. A prática não aviltava o bom nome dos
envolvidos e era aceita com naturalidade por toda a sociedade da época.
A
abolição da escravatura em 1889 foi a causa econômica que deflagrou a revolução
de 1893, quando então sim, pela falta de compradores do nosso charque, as
terras de pecuária e o gado bovino perderam substancial valor, além de novo
arrocho à prática do contrabando.
Já
tarde demais, Bento Gonçalves lamentou a falta de um porto e a inexistência de
navios de guerra suficientes para contrabalançar a armada dos imperiais. Bento
Gonçalves, após o desastre militar na ilha do Fanfa, onde todo o seu exército,
foi aprisionado, inclusive ele próprio.
Quando se encontrava preso em fortaleza do Rio de Janeiro, recebeu a
visita de Giuseppe Garibaldi e com ele contratou o estabelecimento de corso para
atacar os navios mercantes do império, mediante o recebimento de um terço da
carga pilhada do navio atacado, como forma de pagamento (Garibaldi e a guerra
dos Farrapos, de Lindolfo Collor), não ajudou o suficiente. Foi o único
corsário em atividade nos mares e nas águas interiores do Brasil. A busca de um
porto marítimo levou os Farrapos à aventura que terminou no fracasso de tomar e
manter Laguna (SC) e criar a República Juliana. Durante algum tempo, Garibaldi
utilizou o porto para abastecimento do Seival para as atividades de corso. A
resposta do Império não demorou. Ou afundava o Seival ou tomava o seu porto de
abastecimento. Fez os dois. Uma frota de navios de guerra do Império irrompeu
pelo canal de acesso ao porto e derrotou mais uma vez os Farrapos, afundando o
Seival que lutou corajosamente até o fim. Foi a pique na única batalha que
participou. Gloriosamente, afundou crivado de balas e com seus canhões
vomitando fogo sobre os imperiais até o último cartucho. Seu parceiro de
travessia terrestre, o Farroupilha, já havia naufragado em temporal na viagem de
Tramandaí à Laguna. Este navio de guerra afundou sem jamais ter disparado um único
tiro de canhão. Estes heroicos riograndenses não sabiam lutar em batalhas
convencionais e estáticas, nem manobrar navios de guerra ou atirar com
eficiência com os canhões postados na periferia do porto e no canal de acesso.
Seu lugar de combate era a coxilha do pampa. Retornaram ao Rio Grande do Sul,
desfalcados de seus soldados e desiludidos com o esforço despendido em vão.
Acabaram odiados pelos Lagunenses que tinham ido auxiliar. Em poucos meses,
acabaram sendo execrados pelos seus habitantes que inicialmente os receberam
como salvadores. A tomada do porto de Laguna asfixiou o comércio e empobreceu a
população local. A própria ideia do uso do porto de Laguna para as exportações
gaúchas não tinha qualquer viabilidade prática de êxito. Único saldo positivo
da aventura, foi o surgimento de Anita Garibaldi, nossa heroína de dois
mundos.que teve um filho nascido em Mostardas no RS. Numa época que a mulher sempre era sempre
submissa, ela, com muita coragem, rompeu com seu casamento infeliz, enfrentou o
preconceito local e foi viver seu amor e sua aventura com Garibaldi.
Mais
tarde, os Farrapos tentaram tomar o porto de São José do Norte. Cavalgaram
quase trezentos quilômetros pela orla do Atlântico, sem ponto de apoio, pela
via que até hoje é chamada de Estrada do Inferno, onde só tem mar, areia, solidão
e tristeza. Garibaldi levou junto consigo Anita, grávida de sete meses, que
ficou abrigada na choupana de um morador dos arredores de Mostardas até o
nascimento de seu primeiro filho. Um desafio aos mais valentes. Passaram, num inverno gelado e chuvoso,
todas as agruras possíveis, que culminaram em mais uma derrota. A armada
imperial de Rio Grande prestou socorro aos defensores de São José de Norte e
foi fator decisivo na batalha.
Sempre
a história é contada pelos vencedores, mas no Rio Grande do Sul, a história é
contada com orgulho pelos vencidos, que cultuam seus heróis, alguns
controversos, omitindo os nomes dos vencedores.
Ficou para sempre a
memória da epopeia da revolução, a bravura e o cavalheirismo de todos os seus
participantes. Foi uma revolução sem degola de prisioneiros.
Os
colonos tinham uma visão diametralmente oposta à dos estancieiros,
protagonistas da revolução, inicialmente de reivindicações, seguida de desafio
à autoridade por mudanças na administração pública, e posteriormente,
separatista e republicana. Os colonos do RS não foram contagiados pela
histórica vocação oposicionista e rebelde do nosso estado, que se perpetua até
hoje. A cidade de Porto Alegre recebeu com apatia inicial a vitória local dos
Farrapos. Apenas aceitou a dominação Farroupilha. Tomada à força, em menos de
nove meses livrou-se do invasor, que apesar de sitiá-la por largo período de
quatro anos, nunca mais voltou a ocupa-la. Nestes quatro anos, a população teve
as suas necessidades e sua fome saciadas unicamente com o fornecimento de
gêneros alimentícios trazido pelos colonos alemães de São Leopoldo, que, por
via fluvial tinham acesso à cidade. Os Farrapos conquistaram a cidade mas não
tomaram nenhuma medida de acionar o comércio e evitar a estagnação das atividades
econômicas. Não emitiram moeda e as que giravam na praça foram logo
entesouradas, deixando a população sem possibilidades de sobrevivência
econômica. O episódio da retomada de Porto Alegre, iniciada por um Major do
Império, imigrante alemão, Henrique Guilherme Mosye com apenas mais três
militares legalistas que se evadiram no mesmo dia, mostra que estes tinham a
adesão da população. Por este motivo é que Porto Alegre recebeu do Império o
título de mui leal e valorosa, ostentado até hoje com orgulho. A cidade
homenageia com uma estátua equestre o general
Bento Gonçalves, mentor da revolução, e que foi, durante quatro anos, o
algoz que comandou o sítio infrutífero de Porto Alegre, que suportou
estoicamente o cerco férreo, até que os sitiantes desistiram e se retiraram
derrotados. Bento Gonçalves da Silva, pelos seus valores e desempenho pessoal,
projetou-se historicamente à condição de maior herói do RS.
Não
encontramos qualquer referência do que era feito com os prisioneiros da guerra.
Não foram assassinados e não havia instalações para mantê-los fora de novo
engajamento com os inimigos. Em nosso entender, eram soltos ou apenas trocavam
de lado. Se fosse necessário, em uma batalha próxima trocariam outra vez de
partido. Ser monarquista ou republicano não fazia qualquer diferença para o
convocado analfabeto. Se um General
trocou de lado quatro vezes, por quê um soldado não poderia fazer o mesmo?
A
história da revolução farroupilha não necessita de omissões, mitos, inverdades
e distorções para que continue sendo a maior e duradoura epopeia do Brasil, que
marcou a identidade dos gaúchos para sempre e delineou o nosso imaginário. Basta a verdade nua e crua para que
permaneçamos apaixonados e orgulhosos pelos episódios épicos do decênio 35 a 45.