sexta-feira, 6 de julho de 2018

O MOTORISTA ACIDENTADO

O MOTORISTA ACIDENTADO

            Ao entardecer de um dia em 1964, já depois do expediente, o telefone toca em minha sala no escritório velho da Cosuel. Era do hospital Santa Terezinha em Encantado, informando que dera entrada um ferido em acidente de caminhão. Pelos documentos, tomaram conhecimento do nome do motorista, do dono do veículo e por uma nota fiscal de compra de soja, o nome do produtor associado da Cosuel que residia em Ibirubá.
            Ao ser atendido por populares, só teve tempo de pronunciar a palavra Leandro e desmaiou. Por isso, pediram que fosse até o hospital identificá-lo.
            Lá chegando, não o reconheci, não conhecia o dono do caminhão, mas sabia quem era o associado da Cosuel. Informei logo que a Cosuel assumiria os encargos necessários.
            O médico de plantão me comunicou que o ferido, em estado de choque, iria a óbito em razão dos ferimentos recebidos. Informou-me que faria uma injeção no paciente, que voltaria a si por algum tempo e depois iria falecer.
            Assisti a injeção e fiquei sentado perto da cama. Ficamos no quarto somente eu o ferido. Minutos após, vi que ele abriu os olhos, surpreso. Logo me apresentei: Sou o Leandro, você está ferido e no hospital de Encantado sob cuidados médicos.  Estendeu-me a mão e ficou segurando a minha com força. Informou-me que o dono da soja lha fizera uma observação: No caso de algum problema,       que falasse com o Leandro. Por isso, mencionou o meu nome aos que o acudiram. Falou sobre o acidente, distraiu-se, saiu do leito da estrada e bateu no barranco. Logo falou que tinha esposa e um filhinho pequeno, que morava no interior de Ibirubá e que a esposa deveria estar preocupada com sua demora. Falei que os funcionários do hospital já a haviam informado do acidente.
            Continuou falando e segurando minha mão. Eu sugeri: Vamos rezar um pouco? Vamos fechar os olhos e rezar em silêncio. Orei por ele. Ao cabo de alguns minutos, senti que sua mão apertava menos e logo se desprendeu da minha. Pressenti que ele havia falecido. Procurei o médico, que logo constatou o óbito. Novamente os familiares foram avisados.
            Só me restava tomar as providências necessárias no preparo do velório, mas sem qualquer experiência, precisava de ajuda. O médico informou que o hospital teria um quarto disponível para o velório.
            Nesse momento, chegou um funcionário da Cosuel e se propôs auxiliar. Logo chegaram mais dois e mais cinco. Fizemos uma pequena conferência e perguntei: Quem vai comprar o caixão? Eu vou. Eu vou junto. Eu vou falar com o padre. Eu vou comprar uma coroa e flores. Eu vou no Cartório conseguir a certidão de óbito e passo na polícia para obter a licença de conduzir o cadáver para Ibirubá. Eu vou ver com funcionários do hospital sobre a roupa e se necessário comprar alguma. Assim, cada um assumiu seu compromisso  e  demos início ao preparo do velório.  Comprem com
modéstia que a Cosuel amanhã irá pagar.
            Tudo encaminhado e fui para casa me preparar para o velório. Algum tempo depois voltei ao hospital. O corpo já estava vestido dentro do caixão, velas acesas e os documentos disponíveis na mão. O padre não demorou e fez a encomenda do falecido. Ficamos nós fazendo a vigília do velório.
            Em silêncio permanecemos irmanados na tristeza e na solidariedade. Meus pensamentos se dirigiram à banalidade da vida e em reflexões aos mistérios da morte.
            Meditei sobre o carinho e a eficiência dos funcionários do hospital em relação ao acidentado e suas consequências. Com satisfação, assisti a presença de funcionários da Cosuel, que voluntariamente se dispuseram a prestar sua participação numa fatalidade que atingira uma pessoa desconhecida.
            À meia noite, sugeri aos companheiros: Amanhã é dia de trabalho e quem quiser ir para casa, pode ir, não tem problema. Eu ficarei aqui até a chegada dos familiares que deverá ocorrer só depois das três horas da manhã. Todos permaneceram. Até hoje lembro os nomes deles. Cresceram no meu conceito.
            Ouvimos o ruído quando chegaram os familiares e sugeri: Vamos deixá-los a sós com o falecido e depois retornamos para apresentar nossas condolências.
            Vieram sete pessoas num automóvel e numa camionete. Um deles, irmão da viúva procurou-me para reembolsar as despesas ocorridas. Fomos à recepção e eu apresentei a relação dos custos. Efetuou o pagamento a mim e acertou com a tesouraria do hospital.
            Ajudamos levar o caixão até a camionete, ao lado da esposa em desespero. Empreenderam a viagem de volta à Ibirubá.
            Dois ou três meses depois, um padre de batina assomou ao meu escritório na Cosuel. Estava visivelmente nervoso.
                              - Seu Leandro?
                              - Sim, por favor, sente-se.
            Ele entrou e fechou a porta atrás de si e falou
                                - O que tenho para dizer está em parte protegido por segredo de confessionário e vou falar o mínimo necessário. Por favor, não faça perguntas.
                              - Sem problemas padre. Pode falar.
                              - Lembra do acidente com um caminhão de Ibirubá, perto de Anta Gorda, pois uma pessoa esteve no local, mexeu no porta-luvas do caminhão, encontrou um revolver e furtou-o. Algum tempo depois, o remorso tirou-lhe a paz e ao confessar-se com um padre, informou que quereria devolver à família a arma furtada, sem que ela soubesse quem foi. Sugeriu que o padre levasse a arma até a Cosuel em Encantado e procurasse o Leandro que daria um jeito na devolução.
                                 - Eu tenho o número do telefone do irmão da viúva e garanto que vou tomar as medidas necessárias para cumprir o desejo do arrependido. Pode ir em paz.
            Na mesma hora, consegui falar com ele e informou que na sexta feira da semana seguinte passaria na Cosuel.

            Chegado, logo lhe falei o mínimo necessário sobre a origem da arma e imitei o padre. Por favor, não faça perguntas. Devolvi a arma que estava num pacote tosco sem tê-lo aberto. Nunca mais encontrei essa pessoa, mas o episódio ficou gravado por mais de meio século na minha memória.

A COOPERATIVA AURORA (SC) E EU

  A COOPERATIVA AURORA (SC) E EU

Uma história quase inverossímil

            Em outubro de 1961 assumi o cargo de Superintendente na Cooperativa dos Suinocultores de Encantado Ltda., no ramo principal de industrialização de suínos - ramo no qual eu já tinha 13 anos de experiência em duas empresas industriais de caráter particular. O cooperativismo era novidade para mim. Me limitei a comandar a aquisição, industrialização e a venda dos produtos originados, assim como o comando das finanças da cooperativa, com as habituais deficiências de caixa.
            Em pouco tempo, consegui modificar completamente a situação. A obtenção de resultados econômicos que fortaleceram o nome e o caixa da empresa me trouxe conceito no meio cooperativo, apesar das críticas à minha administração modelo “capitalista”. Eu a considerava Cooperativismo de Resultados.
            A Cosuel operava também como uma Central Cooperativa, e tinha número razoável de cooperativas Agrícolas Mistas ou Cooperativas Tritícolas associadas. Elas encaminhavam à Cosuel parte da produção de suínos e soja dos seus associados, não havendo obrigação de fidelidade.
            Até cerca de 1964, as cooperativas eram subsidiadas pelo governo do Estado, que as isentava do Imposto de Vendas e Consignações (6 %) na aquisição da produção pecuária e igual montante descontável no imposto a ser pago sobre as vendas da produção a terceiros. A soma das duas isenções resultava em uma vantagem de cerca de 6% sobre as vendas num ramo de negócios que, bem administrado, gerava cerca de 3% de resultado positivo sobre o montante de vendas. Isto durou até que o Estado modificou o imposto sobre as vendas (ICMS, 15%), igualando o imposto das cooperativas ao mesmo valor das empresas privadas.
            Com o passar do tempo, fui sendo procurado em Encantado por diretores das cooperativas associadas – e também por outras desconhecidas –, que vinham trazer ao meu conhecimento seus problemas administrativos, procurando conselhos para resolvê-los. Na maioria dos casos, já era tarde demais para quaisquer providências. Vi homens com os olhos rasos d’água ao saírem do meu escritório. Uma vida em torno de um ideal, perecendo inexoravelmente. Num ano, mais de 600 cooperativas fecharam suas portas. Já estavam insolventes com uma administração incompetente e distante da realidade. Sempre os mesmos erros: compras e vendas mal feitas, dívidas incobráveis de terceiros e de associados decadentes, além de artifícios contábeis para esconder prejuízos. Diretores não sabiam nem ler e identificar um balanço geral, que dirá um exame de velocidade de rotação dos estoques, e muito menos verificar o índice de liquidez financeira, em plano decrescente a cada balanço.

            Entre outros, lembro alguns casos em que, chamado, fiz intervenção:

PADRE FELIX BUSATTA – Vigário de Paraí, 100 km ao norte de Encantado.
            Me visitou em Encantado. Estava desesperado e me contou a sua história: Fundaram uma cooperativa industrial de soja, e compraram uma pequena prensa expeller japonesa. Trabalharam durante seis meses e não conseguiram vender nenhum quilo da torta e nem de óleo bruto. Ingênuos. Não conheciam a área. Pediu socorro e apelou que eu fosse a Paraí para ver de perto o problema. Fui no dia seguinte e logo vi o tamanho do rolo. O padre já tinha visto que a prensa tirava apenas a metade do óleo de soja, sendo que o óleo produzido era estocado em tanques horizontais sem torneira para retirar o precipitado por decantação. Óleo com acidez e torta estocada já rançosa. Os salários estavam atrasados e havia dificuldade para pagar a energia elétrica. Que rolo. Pediu socorro para evitar o desastre de entrar em liquidação. A Cosuel se propôs a adquirir o óleo, a torta (ambos precisavam de rebeneficiamento) e também sugeri que vendessem a soja. Era perigoso arriscar a aquisição de matéria prima semi elaborada e que ninguém queria comprar. A Cosuel pagaria a primeira carga de torta e de óleo à vista para sanear as contas mais urgentes. Sugeri que dentro de uma semana me informasse acerca do andamento das coisas. Informei que haveria um grande prejuízo, mas era o melhor que eu poderia propor. O Padre não esperou, tal a ansiedade – fechou o negócio na hora. Mandou o óleo, a torta e todo o estoque de soja. A Cosuel pagou e nunca mais tive noticias além de que a pequena cooperativa tinha fechado as portas. Não fui o curandeiro. Fui o coveiro.

COOP. TRITÍCOLA DE NÃO ME TOQUE - Uma associada. Tudo idem, com duas prensas iguais. Um mês depois, já souberam da solução de Paraí e desejavam  tratamento igual. OK. Mas havia uma diferença: a tritícola já era uma Cooperativa viável. O seu presidente tinha o sobrenome Roos.

COOPS. TRITÍCOLAS DE SANTA BÁRBARA, ERVAL SECO E A OUTRA POSSIVELMENTE DE PALMEIRA. – Eram associadas. Mandaram me chamar, pois estavam insolventes e queriam fazer fusão numa AGE coletiva num sábado próximo - queriam a minha opinião. Fui. Me convidaram para sentar junto à mesa. O clima era favorável (na minha opinião, três se afogando e cada um agarrado no outro. Morte certa). Juntando três quebradas, daria uma inteira. Ao pedir a minha palavra, elogiei a iniciativa de buscar uma solução conjunta, mas na minha opinião não deveriam formalizá-la por escrito. A situação atual era devida em razão de que a cobrança dos serviços (pesagem, secagem, armazenagem e carregamento da produção agrícola) não pagava o custo operacional e que deviam, em conjunto, fazer um estudo do custo real, mais a inflação e mais a cobertura do prejuízo do ano para a safra seguinte. Fizeram uma pausa para o churrasco e logo me despedi, deixando liberdade para cada um se manifestar sem o constrangimento de minha presença. Se os associados não aceitassem, que providenciassem na extinção das cooperativas. Lei seca. Mais tarde, e por terceiros, soube que tinham aceitado a minha sugestão. Nunca mais tive qualquer notícia. Estão vivas, separadas e operantes até hoje.

COOP. AGRÍCOLA MISTA RIO PARDINHO – SANTA CRUZ DO SUL. - Associada. Mandaram me chamar para uma reunião do Conselho. Estavam insolventes e a produção de suínos local era enviada ao concorrente de S. Cruz do Sul. Queriam socorro. Repeti a sugestão que já tivera sucesso em outras cooperativas. A cooperativa seguiria comprando os suínos a 30 dias e a Cosuel os pagaria a vista em dinheiro ou mercadorias de venda nas lojas, transferidas ao mesmo preço praticado com as 24 lojas da Cosuel. Fidelidade obrigatória. Na minha opinião, seriam necessárias 2 cargas de suínos por mês para a sobrevivência e três para o desenvolvimento. Com menos de 2 cargas por mês, a cooperativa não sobreveria. Primeiro mês, sucesso – 3 cargas. No segundo, duas, e no terceiro uma. Fim de papo. O presidente veio a Encantado explicar que a suinocultura estava sendo trocada pela fumicultura e queria adquirir mercadorias de loja a prazo. Neguei e dei as dicas para fecharem a cooperativa, dando o mínimo de prejuízo para os associados. Sou um defensor da eutanásia de empresas. Não deixe morrer. Mate. Primeiras coisas a fazer: não pagar os impostos nem duplicatas de fornecedores. Vender ou hipotecar o imóvel para saldar dívidas bancárias com aval de colonos e pagar os sócios pequenos. A cooperativa iria à liquidação voluntária e os credores, inclusive os funcionários, seguiriam dentro dos preceitos legais de precedência.

COOPERATIVA TRITÍCOLA DE SOLEDADE. - Associada. Seu presidente na época tinha o sobrenome Pederiva. Os associados pecuaristas (alguns já associados à Cosuel, que limitara o número de criadores de gado) o convenceram a contragosto a edificar um matadouro de gado na cidade. Estavam escavando os alicerces quando o presidente resolveu me procurar. Estava receoso de má iniciativa. Dei totais garantias de insucesso. Fui curto e positivo. Não se meta onde você não entende. Associados da Cosuel só entregavam gado para abate de janeiro a maio, época de fartura. Desistiu. Dois anos depois, nos encontramos. Ele, rindo, me agradeceu por tê-lo livrado de uma iniciativa ruinosa. Até hoje ninguém construiu matadouro bovino com Inspeção Federal em Soledade. Foi o único que me agradeceu.

COOPERATIVA AURORA – SC - Não me admirei do convite feito pela Aurora. Era simples rotina. Eu não iria à Chapecó sem ter sido convidado (e gratuitamente) por alguém que não merecesse a minha consideração – no caso, o prefeito de Encantado, Adilar Bertuol, irmão de Valmor Bertuol, ligado à administração da Coperalfa ou Aurora.
                       Eventualmente, eu dava assessoria a uma série de cooperativas que andavam mal das pernas. Para muitas, eu não receitava remédio e simplesmente dava logo a extrema unção. Uma cooperativa somente terá sucesso se for necessária aos associados.
                    Eu tinha salvado a Cosuel da derrocada e gozava de alto conceito no meio cooperativo e, consequentemente, no Banco do Brasil. Talvez o Valmor Bertuol, na Aurora, sufocado por um empréstimo do BB que provavelmente não viria mais, pediu ao irmão que me convidasse para dar uma ajuda. Fomos eu e o Nelson Schwambach, diretor industrial da Cosuel. Esperavam-nos várias pessoas desconhecidas: Valmor Bertuol, provavelmente o gerente do BB e mais duas ou três pessoas ligadas à administração da Aurora.
                         Eu apenas escutei o que tinham a dizer, e tomei algum conhecimento. Quando surgiu a ideia de vender a cooperativa (creio que a sugestão foi dada por alguém do BB ) ao Plínio de Nes do Frigorífico Chapecoense e ninguém se manifestou, perguntei – por que não vamos lá? Eu não conhecia o Plínio de Nes nem ele a mim, mas ambos sabíamos quem o outro era. Fomos.  Era 14 de janeiro de 1972. O encontro aconteceu. O Plínio foi bastante atencioso e como todos se calaram e olharam para mim, eu é que tive de fazer a oferta, sem ter a menor autoridade para isso, recusada com polidez.
                     Voltamos à Aurora em clima de velório. Imaginei um tiro no escuro e eu sugeri se - quem sabe - uma correspondência minha ao BB ajudasse. Eu não tinha muita fé, mas era uma derradeira tentativa. Eu faria um reestudo e pequeno plano para abater 200 suínos por dia, com a lucratividade habitual de todos (3%), acrescido da posição de Chapecó, grande produtor de milho e suínos, ponto geográfico dos melhores e existência de um rebanho já com indícios visíveis da aceitação do suíno tipo carne, formado por várias cooperativas agrícola-mistas e outros argumentos. No fim do trabalho anotei que referências sobre mim poderiam ser obtidas na gerência do BB de Encantado. O reestudo foi entregue ao BB de Chapecó.  Dias após, o gerente do BB de Encantado me avisou que o BB de Florianópolis queria uma entrevista comigo. Eu disse – Não vou. Só irei se mandarem um avião me buscar.  Marcamos dia e hora e esperei pelo voo na pista do aeroclube em Estrela.
                        Aterrissado o avião e contatado o piloto, me apresentei como piloto privado de aeroclube e me permiti sugerir um plano do voo feito por mim. Voaríamos a 400 m de altura sobre o solo, direto para São Francisco de Paula, dali  para o Itaimbézinho e até o mar, subindo pelo litoral até Florianópolis. Deu uma risada e aceitou. Quando chegávamos ao Itaimbézinho perguntou-me. – Vi que você gosta de aventuras. Você já voou abaixo do solo? Não? Então agora vai! – e conduziu avião para dentro do cânion. Pelas janelas laterais da aeronave, vi apenas as paredes rochosas e vegetação. Aventura fascinante e inesquecível. No trajeto pela orla marítima, vislumbrei paisagens lindíssimas até o aeroporto. Quando passamos sobre um local, eu disse para o piloto: - Um dia terei uma casa nessa praia. Poucos anos depois, comprei terreno e construí uma casa na praia do Sonho, na rua Tangarás,   56.
                        Na reunião com o Banco do Brasil em Florianópolis (só agora concluí que também o BRDE e FUNDESC também estavam presentes) estiveram quatro pessoas, entre eles um que visivelmente era resistente à proposta. Me inquiriram à vontade. Queriam saber tudo. Diálogo proveitoso. Lentamente essa pessoa também passou a aceitar o plano e quando notei, durante o diálogo, não se usava mais a palavra “se” e sim “quando”. Fiquei razoavelmente otimista. Recomendaram a aceitação do reestudo de viabilidade e as Diretorias Financeiras Bancárias formalizaram os contratos de financiamento. Minha participação se encerrara e meu silêncio começava.
                        Eu soube pelo BB de Encantado da aceitação do meu trabalho e abertura de crédito para a Aurora. Nunca mais tive qualquer informação.
                        Um primeiro passo havia sido dado e agora cabia ao Conselho tomar as demais providências que seriam necessárias. Entre os conselheiros e participantes, temos os nomes de Orlando Jacob Cella, Nilson Olímpio Batiston, Victorino Setembrino Zanchet e Gil C. Tozzi, que em conjunto prosseguiram com as démarches juntos aos Bancos Financiadores e legalização junto às autoridades fiscais. Restava definir uma pessoa capacitada para exercer o comando efetivo da cooperativa. A escolha caiu sobre Aury Luiz Bodanese, acompanhado de outros diretores, que trataram logo, com sucesso, de todos os assuntos pertinentes ao desenvolvimento da Cooperativa Aurora.
                        Logo após a entrega do pedido ao BB, soube por terceiros que Aury Luiz Bodanese assumira a presidência da Aurora e acompanhei de longe, orgulhoso, o desenvolvimento que ele imprimiu para levantar a Aurora ao nível de sucesso e segurança financeira e econômica.
                        Pouco tempo depois, fui a um simpósio de cooperativas em Recife e vi que Aury Luiz Bodanese era um dos participantes. Procurei-o e ao encontrá-lo me identifiquei como sendo o autor do reestudo de viabilidade econômica junto aos bancos de Florianópolis. Aury, sem dizer uma palavra, retirou-se. À tarde, procurei-o novamente e outro afastamento. Não entendi o acontecido. Tempos depois, num outro simpósio, nem nos olhamos. Aquele homem me detestava. Por quê?
                        Mesmo com suas deselegâncias comigo, tive satisfação do desenvolvimento dele. Afinal, eu me considerava um dos “padrinhos” da Aurora e o sucesso dele também era o meu.
                          Calei durante quase meio século, esquecendo o episódio e não me perturbei. Nesse ínterim, a notícia aterradora da TV sobre o desastre com o avião que levava jogadores e diretores do Chapecoense para a Colômbia, matando quase todos os passageiros e tripulantes. Chocante.
                        Eu não acompanho jogos de futebol. Sabia que o Chapecoense era um time da primeira divisão, mas não sabia que a Aurora o patrocinava.
                        Vendo e ouvindo as notícias na TV, tive um choque emocional e me contive, desligando a TV, para não chorar. Aquela gurizada com camisetas da Aurora, a bananada do piloto, a minha afilhada Aurora de luto. Por já ter tido uma pane num avião que eu pilotava (um monomotor Paulistinha) e feito um pouso sem motor – perfeito, em uma roça de fumo - sabia da emoção e lembrança do caso frustrante e inexplicável da Aurora/Bodanese. Que tragédia. Me recuperei e tornei a  ligar a TV de novo.
                        Contei o fato para meu amigo fraterno Milton Lunardi, de Chapecó. Ele interessou-se em descobrir o que poderia ter acontecido com o Aury, segundo ele, um gentleman, para me tratar daquela maneira. Iria tentar descobrir o que poderia ter acontecido. Localizou Orlando Jacob Cella, ex secretário da Aurora na época e um dos que me aguardavam em Chapecó, ainda vivo e lúcido. Inquiriu-o e ele disse que um “alemão” e um companheiro fizeram um reestudo de viabilidade econômica da Aurora, ele o lera e achara bom. Milton lhe perguntou se seria o Leandro Lampert, disse-lhe: Era mesmo ele.
                        Pesquisando no Google, Milton achou crônica sob o tópico Aury Luiz Bodanese, e me passou informações que permitiram eu também encontra-la, referências elogiosas a um líder cooperativista gaúcho, vítima imprudente de um fato lamentável que conto em meu livro – FATOS E CRÕNICAS – sem citar nomes, mas agora, repito o que escrevi nominando empresas e pessoas. Para que o fato seja conhecido com o subtítulo de Reminiscências Profissionais 1. Segue abaixo

REMINISCÊNCIAS PROFISSIONAIS - 1

                        Em 1961, quando assumimos cargo de Diretor Superintendente da Cooperativa dos Suinocultores de Encantado Ltda., já encontramos um acordo verbal em vigor entre as cooperativas de produção e as de consumo. Estas dariam uma preferência de compras àquelas e que em retribuição adotariam o prazo de vendas de 45 dias, em lugar dos habituais 30 dias vigentes no comércio tradicional.
                       Como as cooperativas de consumo pagavam habitualmente no prazo faturado, não existiriam maiores problemas. Assim se passaram alguns anos sob constante vigilância da Cosuel.
                Entretanto, verificamos que essas cooperativas de consumo de funcionários de grandes empresas econômicas (Coop. dos Bancários e Coop dos Funcionários Públicos), entre outras, passaram a atrasar os compromissos, pagando juro de mora pelo atraso que chegava a 15 dias. Assim, compravam e pagavam a 60 dias e venderiam no máximo em teóricos 30 dias, uma vez que o consumo mensal dos seus associados seria descontado nas folhas de pagamento das categorias com associados de padrão médio. O fato despertou um alerta íntimo. Havíamos encontrado algo inexplicável.
                 Era fácil prever o sucesso dessas cooperativas de consumo, desde que houvesse um limite técnico e rigoroso para o consumo mensal de cada associado, baseado no valor nominal do salário de cada um. Sem limite, desastre previsível.
                 Em 1966 quando a Cosuel decidiu entrar no ramo de supermercado para atender seus associados e funcionários, cabia uma visita às cooperativas de consumo já existentes e que gozavam de alta consideração por sua organização e eficiência.
                  Solicitamos uma visita às duas maiores para formarmos uma ideia de um ramo desconhecido para nós. Convidados, lá nos apresentamos.
                  Recebidos com gentilezas, fomos conduzidos às instalações físicas adequadas e também aos escritórios de contabilidade e tesouraria. Tudo dentro dos conformes.
                    Nos foi entregue um balancete atualizado e um balanço do exercício anterior. Rapidamente avaliamos a sua liquidez financeira, bastante razoável, mas nos chamou a atenção um imenso ativo realizável a curto prazo. Inquirimos o contador que nos explicou que aquele montante era o valor dos débitos de compras de todos os associados e para nossa surpresa, igual à soma de dois meses de venda. Assim, o prazo médio real de venda seria de 60 dias e não no mês subsequente como a teoria indicava. Daí o aperto financeiro. Horrorizados, previmos que isso acabaria mal em pouco tempo.
                        As diretorias permitiram que os associados se endividassem progressivamente, sem nenhum critério de responsabilidade. Certamente contavam com esses votos para se reeleger nos cargos administrativos. .
                         Desses devedores, possivelmente a maioria, mantinha suas contas em dia e para que desse essa média, uma minoria deveria estar com grandes atrasos e esse débito seria rolado cada mês e jamais seria ressarcido. Em resumo, a cooperativa estava, na realidade, insolvente e a situação progrediria até que um dia estourasse.
                         Não demonstramos surpresa, agradecemos e fomos à outra cooperativa de consumo. Constatamos existir situação idêntica e que logo generalizamos a todas as cooperativas de consumo, nossas maiores clientes. Em caso de quebra generalizada, seríamos os primeiros a sofrer as consequências. O valor que perderíamos, seria igual à venda de dois meses para elas. Não teríamos como suportar.
                          Seria preciso enérgica providência e o sigilo era absolutamente necessário. Determinamos por escrito a cada unidade de venda em Porto Alegre, que, sem maiores explicações, suspendessem a venda a prazo para todas as cooperativas de consumo, alegando ordens superiores.
                         A ordem causou enorme rebuliço e contestação. Nos recusamos a explicar. Quebraria o sigilo indispensável.  Pedimos que confiassem e que sabíamos o que estávamos fazendo. Nem ao nosso presidente revelei. Ninguém bota fora, sem razão, uma clientela que representava mais de um terço das vendas em Porto Alegre.
                         As unidades de venda, bem gerenciadas, logo conquistaram novos clientes e a venda mensal continuou a mesma.
                        A Cooperativa dos Suinocultores de Getulio Vargas assumiu o nosso lugar sem a menor consulta a nós ou aviso. Logo entendemos que ela seria a vítima voluntária e inocente a ser sacrificada no altar da voracidade do comércio e indústria. Problema dela. Ignorara que não existe almoço grátis.
                        Dentro de dois meses, a Cosuel não tinha mais nenhum haver das cooperativas de consumo.
                      Era só esperar pelo estouro que certamente em breve viria.
            Pouco tempo depois, numa reunião mensal do Sindicato das Indústrias de Produtos Suínos do RGS, um colega, diretor de uma média indústria na região italiana, nos puxou para o lado e perguntou se era verdade que suspendêramos as vendas para todas as cooperativas de consumo. Confirmamos e depois perguntou por quê. Nos encaramos e  lhe dissemos em dialeto vêneto – Fate furbo – Faça-te experto ou abra os olhos e nos afastamos. Logo vimos que ele segredava para outro colega alguma coisa e fazia gestos em nossa direção. Entendemos que ele estava recomendando para ele também suspender as vendas aos mesmos clientes.
                        O estouro estava iminente e logo aconteceu. Ninguém mais quis vender a prazo para essas cooperativas de consumo. O déficit financeiro logo apareceu e em seguida cerraram as portas por falta de mercadorias e crédito.
                      Prejuízos em larga escala para muitos fornecedores.
                        Cooperativas não entram em falência e sim em liquidação. Dezenas fecharam as portas e não pagaram nenhum credor. Os patrimônios serviram apenas para pagar os encargos trabalhistas. Ufa, escapamos por pouco.
                        Os associados, por óbvio, não resgataram seus débitos com as cooperativas e ainda rasparam fiado os saldos do estoque.
                         Fomos severamente criticados por não alertar as outras cooperativas de produção, mas o sigilo absoluto era necessário para que nos salvássemos dum enorme prejuízo. Os diretores da Getúlio Vargas é que foram imprudentes.
                        A cooperativa industrial que nos substituiu junto às cooperativas de consumo teve o destino previsto.
                        Ficamos sabendo que essa cooperativa solicitara auxilio de Aury Luiz Bodanese para que a Aurora a encampasse. Para tanto e certamente, atribuíram mim as culpas pelo ocorrido. Um traidor do sistema cooperativo. Daí, concluí, a reação negativa de Aury sobre a minha pessoa. A Aurora recusou a incorporação.
                        Minha responsabilidade era apenas com a Cosuel, que pagava os meus salários. As demais cooperativas, que abrissem os olhos – fate furbo.
                        Em Getúlio Vargas, com os mesmos associados e diretores, havia a Cooperativa Tritícola, que terminou por absorver a coirmã insolvente e passou a gerenciar a atividade industrial com seu nome até novo incidente que a seguir relato em
REMINISCÊNCIAS PROFISSIONAIS - 3

                         Em 1961, assumimos como Diretor Superintendente da Cooperativa dos Suinocultores de Encantado Ltda. e constatamos que a Cosuel já tomara medidas competentes para se atualizar industrialmente. Construíra um túnel de congelamento de carne suína e respectiva câmara de estocagem para 70 toneladas. Iniciara a produção, lotara a câmara e o túnel. Produzira mas não vendera um quilo sequer. Assim a encontramos.
                          As vendas da produção industrial da Cosuel eram todas realizadas por intermédio da União Sul Brasileira de Cooperativas Ltda., uma cooperativa central à qual a Cosuel era filiada. Ela recebia, vendia, cobrava, prestava contas e enviava o dinheiro pelo banco. O critério de pagamento era o da antiguidade do crédito. Justo, mas excessivamente demorado. Criava problemas no fluxo de caixa e era imprevisível. Os preços obtidos eram adequados e estavam dentro de valores plenamente aceitáveis.
                         Como a União não tinha câmaras frias e não entendia do ramo, não se interessou em intermediar a produção de carne congelada suína da Cosuel e a produção ficou encalhada. Nenhuma outra medida foi tomada. Depois de 6 meses congelada, a carne suína perde o valor comercial. Oxida e ninguém mais a compra.
                        De imediato, tomamos as primeiras medidas para iniciar a venda. Conhecíamos uma representação no Rio de Janeiro, que efetuara as vendas durante os 11 anos em que trabalhamos num frigorífico de Bom Retiro do Sul. Corretos e competentes. Vendiam por pedidos, mediante comissão e o faturamento era direto pela Cosuel, que tinha a possibilidade de descontar a duplicata em bancos, obtendo o dinheiro no dia seguinte ao embarque. Mudou completamente o fluxo financeiro.
                        Aos poucos, o mesmo representante foi autorizado a vender outras mercadorias fabricadas pela Cosuel. No mínimo serviriam como parâmetro para comparar com as vendas da União. Igualavam-se nos preços, mas o faturamento direto permitia a obtenção imediata do dinheiro no banco.
                        Junto à União, constantemente reclamávamos da demora e imprevisibilidade do dinheiro. Cada vez mais mercadorias para o representante e menos para a União. Nunca fomos a uma Assembleia. A Cosuel sempre foi representada por seu presidente.
                         Numa Assembleia Geral Ordinária, sem sermos consultados, nos elegeram por um ano como um dos três membros do Conselho Fiscal.
                         No escritório da União, procuramos nos atualizar nos sistemas, sempre atendidos com frieza - e até mesmo hostilidade. Começamos fazendo perguntas banais até sermos classificados como ingênuos e inofensivos. Eles veriam quanto.
                         Numa oportunidade e na ausência do contador, pedimos a um funcionário a abertura de um ativo realizável a curto prazo de valor expressivo. Tínhamos constatado que esse valor era o mesmo do balanço do ano anterior e no mínimo esse ativo, não seria de “curto prazo”. Na série de fichas a que tivemos acesso, o último lançamento era de seis anos atrás e dizia apenas - saldo devedor. Eram mais de 10 fichas, todas em nome de cooperativas desconhecidas. Fizemos mais algumas perguntas inocentes e nos retiramos.
                        Ante o Diretor Administrativo, fizemos uma pergunta em tom casual. Que Cooperativa era aquela que se chamava ………..…. – Essa cooperativa já fechou as portas há muitos anos atrás. Conclusão: esse enorme ativo realizável a curto prazo  era composto de créditos de cooperativas que já tinham cerrado suas portas há muito tempo  e simplesmente não valiam mais nada.
                         O Ativo do balanço tinha o Caixa, o Imobilizado e o Ativo (ir)realizável. Feito novo exame, constatamos que a União, simplesmente estava insolvente e irrecuperável.
                        Não tivemos qualquer dúvida, como membro do Conselho Fiscal, em aprovar as contas daquele exercício. O problema era muito anterior ao nosso mandato. Oportunamente, quando os haveres da Cosuel tivessem sido ressarcidos, ele seria devidamente considerado. Novamente, o sigilo seria necessário.
                        Daquele dia em diante e sem justificativa, não enviamos mais nenhuma mercadoria para ser vendida pela União. Mantivemos sigilo total. Dentro de três meses a União havia pago todos os nossos créditos. Tínhamos nos safado mais uma vez de um considerável e previsível prejuízo.
                        Na AGO seguinte, no momento de ser aprovado o balanço, pedimos a palavra e solicitamos a abertura daquele ativo. Surpresa geral, estupor e correria. Assembleia suspensa e conhecimento de todos da real situação da União. A Diretoria demitiu-se. Falou-se em eleger novos diretores. Afastamo-nos para um lado e não participamos das tratativas. Já sabíamos que a União estava liquidada.
                        Nos afastaríamos da Cosuel no fim do mês e me atribuí, antes disso, o dever de erradicar a União, burocrática e já desnecessária. Não seria preciso eutanásia. Ela já estava morta no mínimo há seis anos e ninguém vira. Que incompetentes. Diretores e associados completamente cegos. Não viram em anos o que eu percebera em apenas um minuto. A erradicação era necessária, pois eu acreditava que com o meu afastamento a Cosuel viria novamente vender seus produtos através União. Foi o meu último ato cooperativo e despertei novos rancores.
                       Na minha opinião, o fechamento da União não faria nenhuma falta. Cada cooperativa deveria ter o seu próprio marketing e comandar as vendas segundo seus interesses e necessidades financeiras.
                        Todas as demais cooperativas filiadas tiveram que suportar a sua proporção no prejuízo no enceramento das atividades. Não receberam seus créditos. Muitas entraram em liquidação. A Cosuel foi a única que nada perdeu.
                          O abalo foi de tal monta, que nem chegamos a ser criticados pela manutenção do sigilo até que o momento fosse oportuno.
                         Foi então que a Tritícola Getulio Vargas, por sua vez, tornou-se insolvente e sem capital de giro, teve de alugar suas instalações industriais para a Pamplona Alimentos de Santa Catarina até hoje.
                        Um grupo de diretores de cooperativas associadas à União consultou-nos se aceitaríamos presidi-la. Recusamos, é lógico. Era início de março de 1973 e no dia 31 sairíamos da Cosuel. Dentro de um mês, em 1º de maio, numa AGO já convocada, assumiríamos como diretor do Frigorifico Ideal em Serafina Corrêa, onde atuamos durante nove anos.
                         Nesse ínterim, projetamos, construímos e ativamos o matadouro de aves e todos os seus departamentos: produção de ovos, incubatório, galpões automatizados para produção de frangos, caminhões para distribuição de rações a granel, licenciado para exportação e que há muitos anos abate 180.00 aves diariamente. Mudou completamente a fisionomia econômica e social daquele município.
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                        Retornando ao meu diálogo com Milton Lunardi, ele continuou com as pesquisas e a Aurora o abasteceu com uma ata da COOPERATIVA CENTRAL OESTE CATARINENSE LTDA, datada de 28 de março de 1973, que registra o seguinte relatório:






                        Sempre que houvesse alguma dúvida na administração das empresas em que fui diretor, mentalmente, eu trocava de lugar com o lado contrário para formar uma opinião segura. Foi o que eu fiz em relação à Aury Luiz Bodanese. Se um colega e amigo confiável me informasse que o diretor de uma cooperativa coirmã agira de modo destrutivo e criasse uma cilada em relação à minha empresa e a prejudicasse, eu também agiria com essa pessoa da mesma forma com que Aury agiu comigo. No caso, o informante que estava pedindo auxílio deve ter contado a história de maneira envenenada, eximindo-se de ter agido afoitamente e sem a necessária cautela para o fato de um dirigente aceitar clientes que a colega rejeitara, sem procurar a razão disso, foi de uma imprudência abissal. Custou-lhe caro. Para safar a Cosuel, o sigilo absoluto era necessário. Jamais fiz qualquer sugestão para alguém assumir o nosso lugar numa operação que, eu antevia, terminaria em desastre. Por isso, livro Aury Luiz Bodanese de qualquer suspeita de má fé.
                        A desgraça se repetiria com o desastre da União. No caso, a Tritícola de Getúlio Vargas deixaria de receber os valores que tinha a receber dela e, por sua vez, ficaria ela própria insolvente a ponto de ter de alugar o estabelecimento industrial de abate de suínos para outra empresa de Santa Catarina, a Pamplona Alimentos, concorrente da Aurora. Mais uma consequência da má administração da Cooperativa dos Suinocultores de Getúlio Vargas – a mesma que administrara vários anos a União das Cooperativas.
                        Tenho certeza que Aury agiria da mesma forma que tive de agir para salvar a empresa da qual eu era funcionário. Creio que o Aury, pela forma de agir, tinha relativa semelhança com a minha maneira de administrar uma cooperativa.
                        Num momento crucial eu fora um elo decisivo na corrente da vida inicial da Aurora e gostaria que os atuais diretores tenham conhecimento da minha participação. Já fui muito gratificado pelo sucesso da Cooperativa.


TIO GASPAR E TIA CARULA

TIO GASPAR E TIA CARULA

            Meu trisavô paterno, Luiz Antônio Ramos, casado com Joaquina da Silva (vó Quinca) nascida em 1829, era um dos latifundiários que lotearam e venderam terras de sua propriedade em Venâncio Aires e Lajeado no início da colonização desses municípios.
            Uma de suas filhas, Marcolina da Silva Ramos (1850-1920) casou com Carlos Roberto Schroeder (1843-1909), então luterano que, ao casar, tornou-se católico e eram os pais de minha avó Joaquina Ramos Schroeder (1881-1934), que casou com meu avô Leopoldo Lampert (1871-1958), também luterano e que se tornou também católico. Tiveram sete filhos.
            Meus avós paternos herdaram 80 Ha de terras na Itaipava dos Ramos, área rural entre Cruzeiro do Sul e Mariante, chamada de Chácara, na barranca do rio Taquari e junto com a propriedade, gado e benfeitorias foi o tio Gaspar, casado com tia Carula, casal de afrodescendentes e na época em que eu ainda menino de 7 anos, o conheci. Segundo fui informado, nascera escravo de Luiz Antônio Ramos. Creio que ao receber a herança da sogra, meu avô Leopoldo atendeu à recomendação de zelar pela vida do tio Gaspar e o fez. Os demais seis irmãos de minha avó também herdaram propriedades rurais semelhantes, povoadas de gado e localizadas na Itaipava, Mariante e Taquari Mirim.
            A chácara situava-se perpendicular à barranca do rio e era cortada pela estrada Lajeado à Mariante, cerca de 50 m do rio. Havia a casa grande, de alvenaria, elevada do chão em face às enchentes, cerca de 1,20 m., no meio do terreno pequeno. Tinha duas portas dianteiras e duas escadas de pedras. O sótão era aproveitado por uma escada interna e também tinha dormitórios.  Afastada cerca de 5 m à direita, a cozinha, ligada à casa grande por uma passarela em declive, coberta por telhas, prevenção habitual contra incêndios na cozinha. Em ângulo reto, a casa do capataz. No pátio, uma magnífica figueira, cujos ramos atravessavam a estrada e se aproximavam das casas.
Tio Gaspar e tia Carula moravam sozinhos em uma casa de madeira dentro do potreiro que era ladeado por lavouras, do outro lado da estrada. Já era um homem velho, franzino, de carapinha branca e continuava como empregado da área rural. Sua esposa era uma mulher alta, forte e tinha um bócio enorme no pescoço. Estava sempre faceira. Junto a casa, um cercado com aves, horta, aipim e árvores frutíferas. Os filhos do casal eram marinheiros no rio Taquari e as filhas já eram casadas. Tinham vida própria.
            Tio Gaspar era tratado com respeito pelos demais peões solteiros, pois gozava de alta consideração com meu avô e por nós, seus netos. Era um homem de confiança.
            Não tinha função específica, mas zelava pela propriedade e tinha seus próprios horários. Não precisava de comando do capataz Neco. Sua principal função era providenciar que as éguas e suas crias atravessassem a estrada, das baias para o potreiro sem problemas de tráfego na rodovia.
            Lembro-me ainda, como se fosse ontem que, sendo um sábado, encarregou-se de matar, esfolar e carnear um cabrito que seria assado no churrasco do domingo. Apresentei-me como espectador único e fiquei curioso, olhando a operação.
            Tio Gaspar amarrou uma soga no pé do cabrito e passou a corda num galho de uma árvore, deixando-o dependurado. O bicho ficou berrando feito louco. Colocou uma bacia grande no chão, debaixo, puxou uma faca e segurando o animal, fechando sua boca, passou a lâmina debaixo do pescoço, degolando-o. O sangue caiu dentro da bacia. Não me assustei com o espetáculo.
            Morto o bicho, amarrou uma segunda corda no outro pé, de maneira a ficar com as pernas abertas, facilitando a tirada do couro.
            Ia me explicando - tem que cuidar para não fazer furo no couro. Ao abrir o ventre com um corte vertical, disse – tem que cuidar para não furar as tripas e por aí a fora. Colocou as vísceras na bacia já lavada pela tia Carula e foi me dando a primeira aula de anatomia em um mamífero. Apontou com a faca e disse – coração, em outra víscera disse – figo – e depois – os bofe. Esfolado o cabrito, deixou-o cortado ao meio no sentido vertical e dependurado na árvore, bem alto do chão até o outro dia quando estaria “oreado” e seria espetado para o churrasco dominical. Creio que era aniversário do meu avô, naquela altura da vida já viúvo.
            Perto das casas e na beira do rio, um enorme galpão com um corredor no meio que abrigava as éguas e o garanhão (meu avô tinha um haras e criava cavalos Puro Sangue Inglês, com registros no Stud Boock do Rio de Janeiro). Menino ainda, eu dedilhava as comunicações de coberturas e nascimentos dos equinos na máquina de escrever do pai, uma Royal e as enviava pelo correio.
            Quando fiz nove anos, meu avô Leopoldo adquiriu dois petiços para seus netos de Lajeado e Cruzeiro do Sul. Todos os sábados, depois do meio dia, eu ou meu irmão Luciano o acompanhávamos até a casa de seu genro, tio Osvaldo Lopes, em Cruzeiro do Sul, para que um dos meus três primos, Gabí, Marino ou Ciro se juntasse a nós na viagem até a chácara, 14 km de Lajeado, costeando o rio Taquari abaixo. Pode se imaginar o orgulho de viajar montado, com dois netos tagarelas e ávidos de conhecimento.
            Tio Gaspar já estava nos esperando, desencilhava os três animais e os conduzia a um potreiro pequeno. Dalí em diante, ficava com os guris enquanto meu avô conversava com o Neco. Sempre tinha alguma novidade para mostrar. Um ninho de Quero-Quero com dois filhotes no potreiro, uma toca de “largato” (ele espetava uma vara na toca e o fazia sair apavorado) para alegria nossa, que estávamos seguros em cima de uma taipa de pedra. Informava-nos o nome das éguas e dos potros. O pai era o cavalo argentino que meu avô mandara comprar, seu nome era El Raro, preto lustroso, sinal branco na cabeça e quatro patas brancas. Era uma beleza de se ver. Era uma fera e jamais foi montado. Nos levava até o fundo do potreiro onde havia um açude para ver garças, frangos d‘água  e socós. Sabia os nomes de todas as aves. Nos levava a pescar lambaris na beira do rio. Sabia onde havia amoras, pitangas, coquinhos e butiás. No rio Taquari, havia a cachoeira e a passagem de barcos era próxima à barranca e o lugar chamava-se “furado”. Havia trânsito contínuo de barcos no rio Taquari.
            Tio Gaspar passava o sábado e o domingo junto aos guris, protegendo-os dos perigos dos animais e ensinando os nomes das coisas que os meninos da cidade não conheciam. Aprendemos muitas coisas com ele, inclusive desconhecendo para sempre o preconceito racial.
            Quando um produtor rural trazia uma égua no cio para cobertura, era o tio Gaspar o encarregado de nos levar para um lugar afastado. Um dia, ouvimos o Neco informar o dono da égua no momento da entrega – foi “servida” duas vezes.
            Tia Carula, nas safras de goiaba e marmelo ia, inicialmente a pé e depois pelo ônibus para Cruzeiro do Sul, na casa de minha tia Zaira e em Lajeado na nossa, tomando a frente da produção de marmelada e goiabada para consumo da família durante o ano. Era tratada com carinho e, lembro ainda, dormia num quarto do galpão, usava o banheiro do peão e fazia suas refeições em separado, segundo os costumes da época.
            Sua foto com minha irmã Leonor no colo lá por 1930 (talvez a única da vida dela) retrata o carinho recíproco dela e nossa família.

                                         
                                         Foto Leonor Lampert Marques

            Anos depois, já mais crescidos, eu, meu irmão e os três primos já com outros interesses nos fins de semana, além do início de linha de ônibus entre Lajeado e Venâncio Aires, meu avô vendeu os petiços e seu cavalo de montaria. Encerrou também as atividades do haras, desfazendo-se nos animais.
            Passei alguns anos sem ir à chácara e quando fui, vi que a casa do tio Gaspar já tinha sido demolida e perguntei por ele. Informaram-me que havia falecido e tia Carula, com dificuldade de locomoção, fora morar com uma de suas filhas em Cruzeiro do Sul. Vi também com tristeza que a figueira tinha morrido.
            Viveram a vida humilde dos peões rurais, analfabetos e sem perspectivas de crescimento profissional, mas encontraram o amparo necessário às dificuldades nas suas velhices. Deixaram somente emoção e suaves lembranças dos tempos que já vão longe. Só passaram pela vida. Não viveram.
            Foi bom conhecê-los tio Gaspar e tia Carula.
            Descendente por via paterna e materna de latifundiários e loteadores, não recebi de herança sequer um palmo de terras. 
            Parte da chácara (60 Ha), consta que coube às duas filhas de meu primo irmão falecido Ciro Lopes. Uma gleba coube ao primo irmão do meu pai, ainda vivo, Antonio (Toninho) Schroeder na beira do Arroio Taquari Mirim, divisa de Venâncio Aires com General Câmara. Vinte Ha foram vendidos a um vizinho.